Entre os mais de 32 mil títulos da Biblioteca Brasiliana Guita e José Mindlin (BBM), da Universidade de São Paulo (USP), há uma preciosa coleção das primeiras edições das 25 obras publicadas por Machado de Assis (1839-1908) ainda em vida. Dos 47 exemplares dessa coleção, 37 foram digitalizados e estão agora integralmente disponíveis on-line para consulta e pesquisa. Os exemplares também estão minuciosamente descritos em livro-catálogo ilustrado, lançado ontem (25/8) em conjunto com o site da coleção.
Quando se pensa em Machado de Assis, o que imediatamente vem à memória é a prosa do autor de romances, como Quincas Borba (1891) e Dom Casmurro (1899), e de contos como A cartomante (1884) e Missa do galo (1894). Mas ele também publicou poesia e peças de teatro, obras menos conhecidas que fazem parte do acervo. A crítica literária Ieda Lebensztayn, que realizou pesquisa na BBM, lembra, além disso, que a biblioteca tem também em sua coleção machadiana volumes de críticas, crônicas e correspondências reunidas postumamente.
“A possibilidade de ver esse conjunto de uma vez e em um só lugar permite compreender melhor a convivência entre vários gêneros na obra de Machado de Assis, que tem textos de natureza muito distinta, apesar de sua imagem mais difundida como um escritor restrito ao romance e aos contos”, aponta Hélio de Seixas Guimarães, professor de literatura brasileira no Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP. Guimarães, que é o principal responsável acadêmico pelo projeto do livro-catálogo e do site, conta que conheceu alguns exemplares da coleção ainda na biblioteca pessoal do bibliófilo José Mindlin (1914-2010) e de sua mulher, a restauradora de livros Guita Mindlin (1916-2006), antes de serem doados à USP em 2006 e abertos ao público em 2013. “Eu não tinha a dimensão do tamanho e de quão valioso e completo era esse conjunto de obras até o momento em que resolvemos fazer uma exposição presencial desse material”, conta.
A exposição ocorreu na BBM entre setembro e dezembro de 2018, com os livros apresentados em ordem cronológica de publicação. Para Guimarães, a exposição física, dessa forma, teve um aspecto revelador: “Foi significativo ver que até chegar ao livro que pôs o romance brasileiro em outro patamar, Memórias póstumas de Brás Cubas (1881), havia um percurso longuíssimo que inclui peças de teatro, poesias e contos”. De forma concreta, isso ilustra como se deu a transformação de Machado de Assis no escritor que hoje é lido e celebrado. “Sua prática e técnica literárias foram se desenvolvendo ao longo de décadas, passando por diferentes gêneros”, ressalta o pesquisador.
Marcas autógrafas
Um dos aspectos mais interessantes da coleção é a presença de obras com dedicatórias autografadas. Entre elas estão exemplares da peça Tu só, tu, puro amor (1880), que Machado dedicou ao abolicionista Joaquim Nabuco (1849-1910) e ao ator luso-brasileiro Furtado Coelho (1831-1900), que a encenou no papel do poeta português Luís de Camões (1524-1580). Escrita por ocasião do tricentenário da morte de Camões, a peça contém uma deferência à tradição e ao convencionalismo, como aponta Guimarães. No mesmo ano, Memórias póstumas de Brás Cubas era publicada por capítulos, quinzenalmente, em revista. “É muito intrigante perceber nesse conjunto de exemplares que, ao mesmo tempo que publica uma obra revolucionária, Machado também produz algo bastante reverente à tradição.”
“As dedicatórias manuscritas contam, em certa medida, as relações pessoais entre o autor da obra e seus leitores mais considerados”, afirma o pesquisador independente Felipe Rissato, responsável pela atribuição de autoria a Machado de uma crônica anônima publicada quando o escritor tinha 21 anos. “Em uma época na qual não havia noite de autógrafos, temos de convir que apenas amigos mais chegados recebessem tal mimo.”
Não apenas os mais próximos receberam livros com dedicatória de Machado, mas também alguns dos mais influentes. Por exemplo, o escritor dedicou um dos exemplares de seu segundo livro de poesia, Falenas (1870), para José Maria Latino Coelho (1825-1891), um político e escritor português conhecido por biografias de figuras ilustres. “Latino Coelho era um homem muito bem colocado, tinha prestígio no Brasil e em Portugal. Quando o brasileiro presta esse tributo, quer chamar a atenção dessa figura importante para o que está produzindo. Ele também se empenha para que sua obra circule em Portugal”, esclarece Guimarães.
O pesquisador explica que, nos anos 1860, Machado se inseriu ainda jovem no mundo luso-brasileiro do Rio de Janeiro. “As conexões do escritor com imigrantes portugueses radicados no Rio são importantíssimas nesse período. Sua inserção no mundo literário se dá também por meio desses emigrados, que constituem boa parte de suas amizades.” Guimarães afirma que muitos deles tinham ganhado dinheiro no Brasil, possuíam bibliotecas e coleções. “Eram ilustrados que formavam sociedades literárias das quais Machado participou ativamente e que definiram muito de sua vida artística e pessoal.”
Além das dedicatórias, outras marcas de interesse histórico estão presentes, como as feitas por colecionadores e críticos literários. Lebensztayn – que é coautora, com Guimarães, de dois livros sobre a recepção da obra de Machado por seus pares – destaca o exemplar do Memorial de Aires (1908) com uma dedicatória ao escritor e jornalista José Veríssimo (1857-1906). “Os trechos grifados pelo crítico, nesse exemplar, são os mesmos que citou ao resenhar o livro”, diz ela.
História editorial e gráfica
A coleção deve gerar interesse, igualmente, na pesquisa da história editorial e gráfica no Brasil oitocentista. Nesse aspecto, o valor histórico das primeiras edições das obras de Machado de Assis se multiplica quando se descobre que o escritor gostava de acompanhar de perto o processo de edição e composição gráfica de seus livros.
Ainda adolescente, Machado começou a trabalhar como tipógrafo. Depois foi revisor de provas em jornais e de livros publicados pelo pioneiro editor Francisco de Paula Brito (1809-1861), afrodescendente como o escritor – foi pela editora de Paula Brito que saíram, no mesmo ano, Queda que as mulheres têm para os tolos, uma tradução feita por Machado, e o primeiro livro de sua autoria, Desencantos (1861). Desse período, Machado herdou habilidades e conhecimentos que colocou em prática na edição de seus próprios livros, intervindo ativamente no suporte material de seus textos, da tipografia à qualidade do papel. Os exemplares da coleção machadiana da BBM fornecem material importante para pesquisadores que procuram saber mais sobre a história dos livros e das editoras no Brasil do século XIX, além de municiar investigações históricas acerca dessa faceta de Machado de Assis: a do escritor que cuidava de suas obras com olhos de editor e de tipógrafo.
Para Lebensztayn, além do vislumbre da diversidade de gêneros e estilos da escrita de Machado, o livro-catálogo e o site permitem notar “a inquietação do escritor com o apuro da escrita e a materialidade dos livros”. “O amor pelos livros que aproxima Machado e Mindlin, o escritor e o bibliófilo, é um convite para os leitores serem também amigos da literatura, da arte, da cultura.”
Machado de Assis, também conhecido como “?”
No século XIX, com frequência textos publicados na imprensa e em periódicos tinham o autor mascarado por um pseudônimo. E não era incomum que as assinaturas dos textos se resumissem a uma letra, um símbolo ou um conjunto impronunciável de letras ou símbolos. Machado de Assis, nessa prática, colecionou um número considerável de assinaturas. Em 1955, o escritor e pesquisador José Galante de Sousa já havia descoberto 25 delas. Dentre as quais, simplesmente “***” – sim, apenas três asteriscos.
Hoje, são conhecidas 87 assinaturas machadianas – em parte, graças ao garimpo digital do doutorando Fernando Borsato, do Programa de Pós-graduação em Literatura Brasileira da USP. Orientado por Hélio de Seixas Guimarães, Borsato descobriu em 2019, quando ainda cursava o mestrado, um texto inédito de Machado, assinado como “?”. Apenas um ponto de interrogação.
Borsato explica que Machado deixava muitas pistas em seus textos assinados ou mais facilmente identificáveis acerca de textos publicados sob pseudônimo. O escritor se referia a outros textos seus de forma frequentemente incompleta ou oblíqua, mas geralmente suficiente para que uma pesquisa diligente resolvesse o mistério. Em uma dessas autorreferências, sob um pseudônimo bem conhecido (“M-as”), Machado faz alusão a um texto em que abordaria a figura do folhetinista e sua relação com o jornal.
Com os recursos da Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional, Borsato descobriu que o texto que Galante de Sousa havia identificado como a referência da vaga alusão de “M-as” (“O jornal e o livro”, de 1859) não era o correto. E encontrou o verdadeiro: “Fisiologia do folhetinista” foi publicado em 1858, quando Machado tinha 19 anos, e apresentado por “?” como o primeiro capítulo de um livro ainda por publicar, “A lanterna de Diógenes”. A razão de “?” nunca ter publicado esse livro continua sendo uma incógnita.
Projeto
A autoria nos romances de Machado e Assis: unidade e dispersão (nº 21/03057-0); Modalidade Bolsa de doutorado; Pesquisador responsável Hélio de Seixas Guimarães (USP); Bolsista Fernando Borsato dos Santos; Investimento R$ 231.199,92.