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ENTREVISTA

Luís Henrique Dias Tavares: Uma guerra na Bahia

Luís Henrique Dias Tavares fala sobre a quase desconhecida guerra da independência do Brasil na Bahia

Há uma grande festa popular em Salvador que não está vinculada a santos ou orixás, não acontece no verão nem guarda, diferentemente de outros eventos do extenso calendário festivo da Bahia, maiores compromissos com a atração de turistas, fonte cada vez mais importante de receitas para o estado. De caráter cívico, essa festa repetida a cada 2 de julho – data que os baianos conhecem como a da independência da Bahia – celebra, na verdade, a vitória conquistada pelos brasileiros na guerra travada pela independência do Brasil na província da Bahia, ao longo de 17 meses.

Entenda-se: guerra, aqui, não é figura de retórica. É guerra mesmo, com sua triste substância de violência desenfreada, dores, legião de feridos, mortes, destruição de edificações, colapso dos serviços urbanos etc., travada nos moldes das guerras do começo do século 19, é claro, de fevereiro de 1822 a julho de 1823. Como outras, gerou seus heróis – neste caso, quase todos originários das camadas mais pobres da população e cultuados hoje ainda com carinho pelos baianos. Maria Quitéria, João das Botas e o Corneteiro Lopes são nomes inesquecíveis nesta saga inexistente nos livros didáticos de História do Brasil e, portanto, desconhecida da maioria dos brasileiros.

Aliás, injustamente desconhecida, segundo o historiador Luís Henrique Dias Tavares, que neste 28 de janeiro completa 80 anos, boa parte dos quais dedicados à pesquisa incansável da participação baiana no processo de independência do Brasil. Em dezembro último ele lançou um novo livro sobre o tema, Independência do Brasil na Bahia (Editora da UFBA, 245 páginas, R$ 35), título que vem se somar a outros 22 que publicou, distribuídos entre os estudos históricos e a ficção. Professor emérito da Universidade Federal da Bahia (UFBA), na qual se aposentou em 1991, depois de 38 anos de trabalho, entre 1977 e 1986 Luís Henrique Dias Tavares esteve algumas vezes em períodos de pós-doutoramento na Universidade de Londres.
Natural de Nazaré das Farinhas, no Recôncavo baiano, casado com dona Laurita, pai de dois filhos e uma filha, seis netos e uma bisneta, até agora, foi com uma infinita calma baiana, temperada com muita simpatia, que o professor Luís Henrique concedeu em novembro passado, a Pesquisa FAPESP, a entrevista da qual publicamos a seguir os principais trechos.

Professor, qual é a sua relação com a UFBA hoje?
Sou professor fundador do mestrado e doutorado em história e ciências sociais na Faculdade de Filosofia e Ciência Humanas. Sou também orientador na Faculdade de Educação. E, a partir do final de 2003, componho uma comissão que está organizando os eventos direcionados aos 60 anos da universidade, que se realizarão em 2 de julho de 2006.

Já que será em 2 de julho, por essa data caímos logo no tema da independência da Bahia. E a pergunta é: por que quase ninguém fora da Bahia sabe que aqui houve uma guerra pela independência?
Por causa das deformações no ensino da história do Brasil e das diferenças regionais em nosso país. São Paulo, Rio de Janeiro e Minas Gerais ganharam uma posição de destaque por causa da proclamação da República e pelo desdobramento da chamada Revolução de 1930, que conduziu o país a uma nova fase, que tentou unir formas democráticas audaciosas e formas autoritárias, mesquinhas, ditatoriais, que atrasaram o Brasil em pelo menos 50 anos. É o que está na base desse desconhecimento da luta pela independência do Brasil, e não só na Bahia. Essa província travou uma guerra que durou  mais de um ano. Custou muitas vidas, sacrifícios e contribuiu também para o maior empobrecimento da província.

A guerra pela independência aconteceu em alguma outra província?
Da maneira como aqui se desenvolveu não. Há uma situação de luta permanente em Pernambuco, junto com as províncias da Paraíba, Rio Grande do Norte, Ceará, com uma certa extensão ao Piauí e provavelmente ao Maranhão.

Quer dizer, o Nordeste lutou pela independência.
Sim, há uma guerra no Nordeste pela independência, com características muito diferentes da forma como o Brasil se separou de Portugal no sul. A separação do Brasil de Portugal tem uma face de negociações complicadas no Rio de Janeiro, estendendo-se a São Paulo e Minas Gerais, e outra face de situações de luta armada e de negação da monarquia absoluta que Portugal voltou a ser nos primeiros meses de 1823. É a realidade que nosso querido colega e amigo o historiador Evaldo Cabral de Mello desenvolve em seu recente livro A outra independência. Ele chama assim aquela que se desenvolveu na província de Pernambuco e, pela proximidade, alcançou Paraíba, Rio Grande do Norte e Ceará.

Quais são as características da guerra aberta na Bahia pela independência?
É diferente do que aconteceu em Pernambuco. Lá, processou-se o desenvolvimento das posições de 1817, ainda não aceitas e compreendidas pelos estudiosos de história do Brasil, que se encaminhavam em direção a um Brasil republicano federativo. E a preocupação com o tráfico negreiro e com o trabalho escravo esteve nas cogitações dos mais proeminentes líderes de 1817 no Recife. Na Bahia desenvolveu-se uma situação de guerra, valendo todas as armas. Essa situação única sucedeu por causa da posse do general Madeira de Mello, pela força das armas, no comando da província da Bahia. A Bahia, assim como o Maranhão e o Pará, tinha aderido ao movimento constitucionalista em Portugal, a partir da revolução do Porto, de agosto de 1821.
O meu inesquecível mestre José Honório Rodrigues colocou em questão a adesão da Bahia e ainda não conseguimos esclarecer a posição da província. Mas a própria monarquia constitucional portuguesa permanece um tema não resolvido na história de Portugal, há questões que não estão esclarecidas. Uma delas é que a revolução declarou reconhecer a autoridade do rei dom João VI, que, naqueles dias, estava no Rio de Janeiro, então um centro político do império português. Alguns historiadores portugueses acentuam que a partir de 1808 o Brasil se tornou o centro do império, com a vinda da família real para o Brasil, mas a minha colocação é a de que os auxiliares intelectualmente mais capazes do rei dom João VI na verdade deram uma nova forma à situação de colônia do Brasil.

Em sua visão, o Brasil apenas ganhou um status de colônia um tanto diferente.
Instala-se no Brasil uma situação ainda não compreendida. Não é aceitável para mim afirmar-se que o Rio de Janeiro se tornou o centro do império português. Menos ainda que o Brasil deixou sua condição de subalterno a Portugal. Há um novo destaque para o Rio de Janeiro, mas não ao limite de colocar na cidade o comando do império português. Não era do Rio de Janeiro que partiam as orientações e as decisões para Angola, Guiné, São Tomé e Príncipe, Moçambique, Açores e Ilha da Madeira.

Mas, se parte substancial da corte tinha se transferido para cá, como Lisboa podia manter o comando do império português?
Mantinham um comando capenga, porém mantinham. Porquanto os governos que se estruturaram em Portugal sob a proteção da Inglaterra, ou melhor, do império unido Inglaterra, Escócia e Irlanda, eram interferentes. Não se pode de maneira muito segura declarar que os governos que representavam o rei dom João VI em Portugal eram altaneiros e autônomos, porquanto sobre esses governos superintendia a autoridade maior dos representantes do império britânico, todos esses militares.

Era como se o Brasil estivesse num segundo grau de subalternidade. Havia o império britânico, Portugal sob certo controle desse império e o Brasil subalterno a Portugal. Uma situação bastante complicada.
Extremamente complexa e difícil de ser entendida, pois ainda não alcançamos as linhas claras para chegarmos à inteligência dessa fase da história de Portugal, que é também da história do Brasil.

Vamos voltar à Bahia. O general Madeira de Mello assume o comando da tropa portuguesa em março de 1822. E aí, como se instaura a situação de guerra?
Instaura-se antes de março, em fevereiro de 1822, com a decisão dos comandantes militares portugueses em Salvador de não abrir o comando da província para nenhuma autoridade militar brasileira. Decidiram que tinha de ser o general Inácio Luís Madeira de Mello. A nomeação veio de Lisboa, das Cortes, um nome antigo da monarquia absolutista que foi aplicado para a Assembléia Constituinte legislativa formada pela revolução de agosto de 1821. Essa assembléia não foi suficientemente clara nem suficientemente lúcida para estabelecer as condições de equivalência entre o reino de Portugal, o reino do Brasil e o reino de Algarves e, na minha avaliação, a formação do Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves, determinada por dom João VI em 1816, é uma figura de ficção. Na avaliação de muitos respeitáveis historiadores portugueses é outra, ou seja, a de que o rei, com essa atitude, estabeleceu eqüidade entre Portugal, Brasil e Algarves.

Antes da revolução constitucionalista.
Sim. Devo dizer, de qualquer forma, que a colocação Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves construía uma nova situação política no quadro internacional – para ser exato, no quadro da Europa ocidental e oriental, pois a Rússia czarista está nessa fase histórica muito intimamente ligada a todas as decisões das organizações monárquicas, políticas e militares, que derrotaram Napoleão Bonaparte. Tudo isso é muito confuso porque é politicamente confortável transformar a proclamação do Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves no fim do vínculo colonial, no fim do vínculo de subordinação do Brasil a Portugal. Mas essa subordinação é administrativa, é política, é cultural, é uma subordinação em todos os sentidos! Nem os brasileiros que tinham alcançado postos de comando no exército de Portugal nas terras do Brasil tinham sido ouvidos para a decisão de criar-se o Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves.

Mas como se organizam as forças brasileiras para a entrada em guerra na Bahia?
Organizaram-se da maneira possível na ocasião, com os militares brasileiros que participavam do exército colonial português, que tinham patentes mais avançadas e comando na cidade do Salvador. Eles tinham participado da adesão da Bahia ao movimento constitucional que se seguiu à revolução de 1821, sem considerar o equívoco em que estavam entrando. Aderiram a uma situação na qual enxergavam a possibilidade de independência, se não do Brasil, pelo menos de uma região do Brasil, por meio de uma carta constitucional elaborada também com a participação de deputados brasileiros na Assembléia Constituinte.

Como nada disso ocorreu, os militares desencantados resolveram entrar em guerra contra Portugal?
Partem para a ruptura completa com Portugal.

E quem são as lideranças no primeiro momento da guerra?
Têm várias, mas vou reuni-las no nome de Felisberto Gomes Caldeira, que  nessa ocasião era tenente-coronel do exército colonial português no Brasil. Já em novembro de 1821, Felisberto Gomes Caldeira e outros militares subiram a Ladeira da Praça [no centro histórico de Salvador], invadiram a Câmara Municipal, tomaram a bandeira da câmara, que era símbolo do poder, e, com ela em mãos, foram depor a junta que governava a Bahia, que governava militarmente a cidade do Salvador. Esse militares estão com a junta, exigindo que ela se demita e formaram uma outra junta, quando os oficiais portugueses, com Madeira de Mello no comando, chegam ao centro da cidade e prendem esses manifestantes.

Entre novembro de1821 e fevereiro de 1822, esses militares que tinham Felisberto na liderança ficam presos. Como então a luta começa em fevereiro?
Sim, eles foram mandados presos para Lisboa. Mas outros militares com a mesma posição ficaram no exército colonial. E eles tomam a atitude de resistir quando Inácio Luís Madeira de Mello é nomeado pelas Cortes de Lisboa e pelo rei dom João VI comandante das forças armadas na Bahia. Esse é um decreto que ainda não está perfeitamente esclarecido na história de Portugal e na história do Brasil. Mas tratava da nomeação de generais portugueses para todas as províncias do Brasil, uma decisão que, em minha leitura, revelou que Portugal tinha decidido manter o Brasil subordinado pela força das armas.
Essa lei ou decreto na verdade é de setembro de 1821, mas ele só chega na Bahia em fevereiro de 1822, com a nomeação de Madeira de Mello para governador das armas na província da Bahia. Os oficiais brasileiros que ainda estavam dentro do exército, assim como os milicianos brasileiros que representavam os brancos, os pobres, os pretos, os mulatos, não aceitaram essa nomeação. Preferiam que fosse um brasileiro e, nesse caso, provavelmente os equívocos da costura do Brasil ao Reino de Portugal e Algarves ainda durariam por algum tempo. Mas digo que a nomeação foi uma declaração de guerra porque foi de armas nas mãos que Madeira de Mello ocupou o posto de governador das armas na província da Bahia.

E aí começa a resistência.
Sim. Os municípios que formavam o Recôncavo, produtores diretos da riqueza da província, pois produziam açúcar, fumo e outras mercadorias para o comércio internacional, sem armas, declaram que não aceitam o general Madeira de Mello como governador das armas. E fecham o Recôncavo para as relações com a cidade do Salvador. Isso afeta toda a província, porque é de Cachoeira, no Recôncavo, que se estabelecem as relações comerciais com todo o chamado sertão, pela subida do rio Paraguaçu até a Chapada Diamantina, estendendo-se daí às áreas que produziam gado e o enviavam para a cidade do Salvador.
Todos adotam a posição de resistência. E fracassam todas as ofensivas de Madeira de Mello para ter o reconhecimento do Recôncavo. Nenhum relacionamento ele consegue estabelecer com os donos de terras, de fazendas, de plantações, de escravos, no Recôncavo. Essa resistência passiva  vai até junho de 1822.  A ocupação do governo por Madeira de Mello em fevereiro estabelecera um corte entre brasileiros e portugueses. As relações de brasileiros e portugueses sempre foram muito distantes, sempre guardaram as conveniências das atividades que realizavam, mas sempre existiram estranhamentos.

O que acontece de junho em diante, que muda a situação?
Primeiro acontece a proclamação do município de Cachoeira contra  Madeira de Mello, contra todos os demais oficiais militares, contra a Armada Portuguesa, que ocupava a Baía de Todos os Santos. Essa é uma situação ainda mal compreendida, mas em 28 de junho de 1822 forma-se em Cachoeira um governo que nega o governo que está na cidade do Salvador. No meu novo livro faço uma revisão do que aconteceu e daquilo que eu próprio narrei nas edições anteriores de Independência do Brasil na Bahia, publicadas pela Civilização Brasileira. Analiso as divisões regionais do Brasil, que eram muito profundas naquele momento.

Pelo panorama que o senhor desenha configura-se uma situação em que o príncipe regente tinha poder sobre o Rio de Janeiro, São Paulo e Minas Gerais. A província da Bahia tinha uma situação singular. A maior parte das províncias do Nordeste não estava muito preocupada com as decisões do príncipe regente, enquanto Maranhão e Pará obedeciam diretamente a Lisboa. Já o Rio Grande do Sul, Paraná e tal…
…estavam ainda muito distantes de tudo isso.

Enfim, em seu livro há um desenho muito interessante da formação da nação, depois dessas divisões profundas.
O querido amigo historiador Marco Morel acentua esse aspecto no prefácio do meu livro. Com a sua lucidez, sua autoridade e conhecimento da história do Brasil, ele acentua que havia essa falta total de perspectiva de unidade. Não havia um Brasil, havia Brasis. E existiam diferenças na própria província. O município de Cachoeira não era como o de Santo Amaro, nem este como o de São Francisco do Conde. Estão muito próximos, são terras muito misturadas, mas têm interesses diferentes, formações diferentes. Voltando à guerra, a posição beligerante adotada por Cachoeira foi acompanhada pelos municípios de Santo Amaro, São Francisco do Conde e Maragogipe. E aí os deputados baianos nas Cortes enviaram uma consulta aos brasileiros desses municípios, que serviu de cobertura para estruturar a nova situação de guerra, agora reconhecendo a autoridade do príncipe dom Pedro, o governo estabelecido no Rio de Janeiro. Isso ocorreu em junho, julho, agosto de 1822, quando dom Pedro, José Bonifácio de Andrada e Silva e outros próximos já estão decididos pela separação do Brasil de Portugal.

O senhor diz que o 7 de setembro é uma data simbólica. Por quê?
Essa é também uma questão que ainda está exigindo muita pesquisa. O fato é que as conversações sobre a separação do Brasil de Portugal tiveram caminhos muito estranhos porquanto conduziam a uma forma autoritária, absolutista. Na província da Bahia há nesse momento uma situação de guerra incontornável, pois aqueles que estavam com armas nas mãos no Recôncavo eram brasileiros, que nada queriam mais com Portugal, e haviam decidido reconhecer o príncipe dom Pedro como a autoridade do Brasil; aqueles que estavam com armas nas mãos na cidade do Salvador eram militares do exército português que ocupava a cidade do Salvador, com apoio dos grandes exportadores e importadores das casas comerciais portuguesas, subordinados ao rei dom João VI. É uma situação absolutamente nova. O governo formado em Cachoeira não chegou a ter de fato amplitude, mas quase em seguida forma-se o Conselho Interino. E aqui eu sou levado a lembrar que o tenente-coronel Felisberto Gomes Caldeira teve uma atuação decisiva para a formação de um governo autônomo na Bahia, esse Conselho Interino que passa a governar a província dessa altura em diante.

Mas como ele pôde ter essa influência toda se estava preso em Lisboa?
Ele já tinha voltado. Os deputados brasileiros nas Cortes conseguiram defender todos os militares que tinham sido presos e enviados para lá e eles foram libertados. Felisberto Gomes Caldeira voltou para Salvador, já sob o domínio de Madeira de Mello, e se comporta como um conspirativo. Apresenta-se ao general que o mandara prender como o soldado que voltou de uma situação injusta, ocupa seu posto, recebe os soldos e desaparece para reaparecer depois em Santo Amaro. Vai conversar com os senhores de engenho, de terras e de escravos, todos rompidos com Madeira de Mello. E daí ele vai de Santo Amaro a São Francisco do Conde, a Cachoeira, onde de novo, com uma manifestação que tem homens armados na porta da Câmara Municipal, é tomada a decisão de se formar um Conselho Interino, com representantes dos diversos municípios da província.

Quando essas milícias e tropas organizadas vêm para Salvador aí se estabelece a guerra que termina com a derrubada de Madeira de Mello?
Não. Antes, em agosto de 1822, eles declaram a guerra. Nesse momento eles não sabem absolutamente nada do que está sucedendo no Rio de Janeiro. O que fazem esses municípios da Bahia é buscar a cobertura autoritária do príncipe, porque esse é um dos focos permanentes na nossa história, o autoritarismo. Somos um povo conservador. O nosso comportamento tem sido repetidamente conservador. E também é de quem espera mais das autoridades autoritárias do que das autoridades democráticas constitucionais. É fácil localizar hoje as tendências que permitiram depois existir 1964, 1968, e Deus permita que essas ocorrências não se repitam mais, porém não devemos desconhecer nunca duas coisas: primeiro, que tivemos trabalho escravo até 1888 e não fomos capazes de solucionar o fim da escravidão. Não fizemos nada para que o fim da escravidão fosse de fato o fim da escravidão. As cabeças que pensaram a melhor solução foram o engenheiro André Pereira Rebouças, monarquista até morrer, mas de pensamento límpido, e Joaquim Nabuco, os dois únicos brasileiros que propuseram a doação de um lote de terra a cada escravo que estava sendo aparentemente libertado. E, voltando, em segundo lugar, que o autoritarismo está profundamente entranhado como tendência em nossa história. Quando o Brasil mais recentemente construiu as condições que levaram à suspensão da ditadura militar, na verdade uma ditadura militarizada de grandes empresários brasileiros e de grandes empresários internacionais que tinham dinheiro alocado na economia brasileira, foi feita uma enquete com os oficiais das Forças Armadas sobre o retorno à forma democrática que terminou com 85% deles votando contra. Portanto, o fantasma do autoritarismo está aí e precisamos estar muito alertas para que ele não volte a nos pisar como já pisou.

Vamos voltar a 1822?
Sim, em agosto os brasileiros do Recôncavo formam forças organizadas para não só resistir, mas também avançar e retomar a cidade do Salvador. Até chegar a se decidir pela independência, seus soturnos caminhos por instantes levaram o príncipe dom Pedro a pensar em trazer de volta o rei dom João VI e investi-lo aqui com a autoridade de rei do Brasil, de Portugal e de Algarves, fórmula essa que não encontrou a menor condição, toda uma situação muito peculiar, que ainda não está na consciência dos brasileiros. Quando o príncipe vai para São Paulo em agosto, faz isso para atender às conveniências políticas do ministro José Bonifácio de Andrada e Silva. Ele vai equacionar as condições de liderança dos Andrada na província de São Paulo. De qualquer sorte, ele viaja decidido a separar o Brasil de Portugal e a se proclamar aquilo que os fluminenses tinham lhe dado como título, ou seja, defensor perpétuo do Brasil. E o 7 de setembro é então uma data simbólica, não é realmente a da independência do Brasil, mesmo porque um enorme pedaço do país ainda não era independente. A guerra que acontecia numa província como era a Bahia, que tinha artigos da maior importância no comércio internacional, além de um porto de fácil acesso para quem chegasse da Europa, da Índia ou da África, criava uma situação muito especial para a manutenção da unidade do país.

Por quê?
O quadro econômico, de avanço do capitalismo industrial, que precisa de novos padrões tecnológicos para fazer avançar a produção, é favorável por uma transposição indireta. Mas o quadro político é diferente. Uma Europa monárquica absolutista tem o comando de milhões de europeus. Quem lidera essa Europa é a Áustria, a Rússia, a Prússia. E há uma situação de conflito econômico e político entre o Reino Unido da Grã-Bretanha e esses países. A Inglaterra, líder do Reino Unido da Grã-Bretanha, é o país da Revolução Industrial, que tinha chegado também à França e aos Estados Unidos. Esse quadro econômico não é liderante no mundo ainda, mas tem uma posição de grande importância e de certo poder de decisão no mundo inteiro. Então aqui no Brasil estão diplomatas ingleses, cônsules norte-americanos, eles estão no Nordeste, em Pernambuco, na Bahia… Enfim, um Brasil que ainda não era o Brasil tem nesse exato momento uma posição muito frágil, e é aí que tem que se entender que toda a nossa luta na Bahia, no Nordeste, foi decisiva para a independência do Brasil e a formação do Brasil como ele é. Tobias Monteiro enxergou isso e deu destaque em seu livro A elaboração da independência do Brasil. Nós aceitamos a linha de Tobias Monteiro pela lucidez e por sua autoridade de historiador. Mas continuamos trabalhando nisso, na verdade estou estudando a independência do Brasil na Bahia desde 1956.

Por que a independência da Bahia, no imaginário dos baianos, tem uma conotação popular tão forte? Por que a festa do 2 de julho, diferentemente do 7 de setembro, sempre foi uma festa mais ligada às causas populares? Por que as figuras de Maria Quitéria, Joana Angélica, o Corneteiro Lopes, João das Botas parecem falar de um imaginário totalmente diferente daquele que se tem sobre a independência do Brasil?
Essa é uma construção de muitos e muitos anos após o 2 de julho de 1823. A Bahia saiu muito pobre da guerra, pois durante longo período ficou sem possibilidades de continuar o seu comércio, enquanto gastava recursos para formar aquelas tropas, aqueles batalhões e apoiar o exército que afinal vai chegar do Rio de Janeiro. Assim, de mãos vazias, em 2 de julho de 1823 a única coisa que a Bahia tem é justamente o 2 de julho de 1823. Naquele quadro, que na época não se pode chamar de nacional brasileiro, pois o Brasil verdadeiramente não existe ainda, o Brasil é uma demorada e castigada construção dos brasileiros, a Bahia está sem nada E é daí que os baianos orgulhosamente construíram o 2 de julho de 1823 como uma data da independência, que era da Bahia, mas que era também, e muito, do Brasil. A construção do 2 de julho é lenta e se faz com alguns equívocos, porque a Bahia continua até hoje homenageando o general Labatut no 2 de julho, e não há a menor razão para isso. Foram os brasileiros que de fato libertaram a cidade do Salvador de armas nas mãos. Primeiro foram os brasileiros de Santo Amaro, Maragogipe, Cachoeira, São Francisco do Conde, Nazaré das Farinhas, Jaguaripe que formavam um exército de esfarrapados… Depois entraram os brasileiros que desceram lá de Catité e de outros pedaços do sertão e da Chapada Diamantina, formando um exército das mais diferentes cores, de brasileiros filhos de escravos, descendentes de escravos, brasileiros brancos pobres que nada tinham além de uma roça de cana plantada para o senhor de engenho… Foram meses e meses que eles ficaram em trincheiras cavadas nas terras de Santo Amaro, São Francisco do Conde, terras que com qualquer chuva viram lama, e que aí foram tomados de carrapatos, de bichos-de-pé, da cabeça aos pés. Assaltados pela tuberculose, impaludismo, tifo, todas essas doenças tomaram os nossos soldados, vitimaram muitos deles. Avançaram para chegar à cidade do Salvador, tomaram os altos do Pirajá e avançaram na Baía de Todos os Santos, começando de Itapagipe, conquistando o Rio Vermelho, do Rio Vermelho alcançando a Barra, um exército de esfarrapados, de homens famintos. O quadro do general, na ocasião ainda coronel, Joaquim de Lima e Silva, o Duque de Caxias, sobre um cavalo alazão belíssimo, ovacionado por um exército de homens, todos muito contentes, alegres e gordos, não representa a verdade.

Quantos soldados estavam nessa guerra pelos cálculos disponíveis?
De 9 mil a 10 mil soldados portugueses, somando aí o pessoal da Armada Portuguesa que ocupava a Baía de Todos os Santos. E do lado brasileiro cerca de 12 mil soldados, sendo que eram poucos os soldados profissionais mesmo, que vieram na primeira leva enviada pelo príncipe, já então aclamado imperador, e depois outros soldados brasileiros que vieram de Sergipe, Alagoas, Pernambuco, Paraíba, Rio Grande do Norte e Ceará lutar pela independência do Brasil na Bahia.

Ninguém quase tem essa noção da convergência de forças do país todo…
Não se tem, mas é aí que nós estamos nos aproximando da verdade histórica. Essa guerra fez muitas vítimas, registrou mortes heróicas de homens que se meteram em trincheiras que eram pura lama… Heróis enlameados, descalços… A mitologia baiana criou Maria Quitéria com um saiote escocês, com uma linda farda e com arma na mão. Ela esteve realmente em vários instantes de luta, mas esfarrapada, com o que restava em cima do corpo, porque foi parte desse exército brasileiro…

Ela não é um mito, é de fato uma mulher que lutou na guerra o tempo todo?
Sim, o tempo todo. Até o 2 de julho. Pelo menos desde agosto de 1822 ela está nesse comando de guerra para libertar a cidade do Salvador.

Vale a mesma coisa para o João das Botas? E para o Corneteiro Lopes?
Vale a mesma coisa para João das Botas. Não vale para o Corneteiro Lopes, porque ele não é uma figura documentada na nossa história. É uma construção do Santos Titara e outros, sendo que não se deve esquecer como homenagem ao Corneteiro Lopes que Inácio Acioly Cerqueira e Silva o conheceu mendigo, pedindo esmolas na cidade do Salvador e relata isso em 1836, na primeira edição das Memórias históricas da província da Bahia. Como ele está ganho por essa ideologia do patriotismo baiano, ele construiu também a história de um corneta decidindo combates que estavam quase perdidos.

É verdade que Maria Quitéria morreu numa situação de prostituição em Cachoeira?
Não é verdade. Isso resulta do preconceito masculino, brasileiro e baiano contra a mulher. Os barões da Bahia jamais reconheceram Maria Quitéria e daí terem construído várias versões que a negassem. Ela realmente esteve em frente de combate. Partiu com o batalhão do avô de Castro Alves, dom Periquitão, e chegando a Salvador, sendo inteligente, finda a guerra, viu que as suas perspectivas não eram muito boas e foi ao Rio de Janeiro apresentar-se ao príncipe dom Pedro, que lhe deu o título de cadete. E aqui, para concluir, dê-me licença para dar notícia de que o general Inácio Luís Madeira de Mello voltou com o seu exército, com uma quantidade enorme de navios para Portugal e, em novembro de 1823, foi preso e passou a responder a um dos processos mais incríveis em Portugal. A prisão se deu por ordem direta do ministro da Guerra do rei dom João VI, o príncipe dom Miguel. E no processo Madeira de Mello é apresentado como único responsável pela derrota do exército e da marinha de Portugal.

Não posso encerrar sem saber algo sobre João das Botas.
É uma figura ainda muito desconhecida. Ele é um marinheiro português que adere à autoridade do príncipe dom Pedro e pelos seus conhecimentos instrui Cachoeira, Santo Amaro, São Francisco do Conde a armarem barcos. A história da Baía de Todos os Santos é a história dos saveiros, das canoas e dos barcos. Os grandes barcos são armados, canhões são colocados nas proas e popas, e aí eles têm o comando de João de Oliveira Botas. Esses barcos assim armados foram decisivos na guerra. Não vamos dizer que foram vencedores porque não sabemos até agora por que motivo a Armada Portuguesa foi tão temerosa para realizar de fato combates, com as condições que possuía, de grandes naus com muitos canhões, com uma força belicosa muito maior do que aqueles barquinhos.

Esses grandes barcos da resistência bombardeiam a cidade do Salvador a partir da Baía de Todos os Santos?
Não. Eles não chegam até Salvador. Eles defendem Itaparica. Nos dias 5, 6 e 7 de janeiro de 1823, a Armada Portuguesa fez mais uma tentativa frusta e, ao que tudo indica, sem grande interesse de tomar e ocupar a ilha de Itaparica.

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