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ECONOMIA

Uma indústria que já teve remédio

Setor farmacêutico nacional nasceu forte e teve o apoio do Estado

Era uma “criança” forte e com tudo para ser um grande brasileiro. Mas algo ocorreu para deixá-la à mercê de seus colegas estrangeiros. Para entender essa mudança, é preciso conhecer a sua história. É o que propõe a professora Maria Alice Rosa Ribeiro em Estado e Indústria Farmacêutica: Ciência, Tecnologia e a Indústria Farmacêutica no Brasil 1890-1950, pesquisa sobre o nascimento da indústria farmacêutica nacional que traz dados pouco conhecidos sobre os primórdios de um dos setores econômicos que mais influência tem sobre o cotidiano dos brasileiros. O estudo, por exemplo, revela a existência de empresas de sucesso logo no primeiro momento de seu surgimento, como o Instituto Pinheiros e o Laboratório Paulista de Biologia.

“Essas empresas, constituídas com capital nacional, foram capazes de desenvolver pesquisas e produzir conforme critérios de qualidade rigorosos”, afirma a pesquisadora O estudo também mostra que a participação do Estado (que incentivou e forneceu recursos para alguns dos primeiros laboratórios farmacêuticos) na implantação do setor foi fundamental para a criação de uma massa crítica de cientistas brasileiros. O trabalho desses homens – levando-se em conta a crescente urbanização ocorrida a partir do final do século 19 e suas implicações – está associado tanto ao desenvolvimento de planos de saúde pública como ao trabalho em laboratório e, finalmente, na produção de soros, vacinas e medicamentos feita por empresas pioneiras em um país que entraria tardiamente no sistema capitalista.

Ao trabalhar com apoio da FAPESP, de quem recebeu R$ 8 mil como auxílio à pesquisa, Maria Alice verificou que essa indústria (que se fortaleceu no início deste século) reunia os recursos necessários para a execução do seu trabalho – como boas instalações, equipamentos adequados e profissionais capacitados – e também as condições que levariam ao crescimento desse setor em nível nacional, o que não ocorreu devido a mudanças de rumo ditadas pela adoção de medidas e planos econômicos – como o Plano de Metas JK – que abriram as portas ao capital estrangeiro, estimulando a implantação de indústrias vindas de outros países e com as quais a indústria nacional não podia concorrer.

Para Maria Alice, que é professora do Departamento de Economia da Faculdade de Ciências e Letras de Araraquara, da Universidade Estadual Paulista (Unesp), “a história dessa indústria no Brasil guarda forte relação com a instituição da saúde pública, das práticas sanitárias de prevenção e combate a doenças infecciosas e, em especial, com as instituições de pesquisa básica e aplicada, criadas com a organização do Serviço Sanitário de São Paulo, tais como o Instituto Biológico, que respondia pela defesa sanitária da agropecuária, ligado à Secretaria de Agricultura do Estado de São Paulo”.

Ao apontar a construção da rede de relações entre instituições públicas criadas no âmbito da saúde pública e a formação da indústria farmacêutica nacional, a economista destaca o Instituto Pinheiros -Produtos Terapêuticos SA. (IP), criado em 1928, uma empresa privada de capital nacional fundada por médicos treinados por cientistas ligados ao Instituto Butantan, de São Paulo. O IP, que estabeleceu intercâmbios e contratos com cientistas ligados a instituições públicas de pesquisa, adquiriu projeção nacional e tornou-se o maior produtora de antitoxinas e vacinas (respondia por 80% do abastecimento nacional), podendo competir com Manguinhos e o próprio Butantan.

Outra empresa destacada e já estudada por ela é o Laboratório Paulista de Biologia (LPB), fundado em 1912 por ex-funcionários do Instituto Pasteur, cuja ascensão foi rápida justamente porque contava com profissionais de reconhecida competência. Na fundação do LPB, o principal nome é o do médico Ulisses Paranhos, que, ao lado de dois técnicos de alto nível – Valentim Giolito e Rodolfo Pasqualin – foi capaz de dar o ponto de partida para um projeto ambicioso que englobava vários produtos, entre eles soros antidiftéricos e antitíficos, soro antigangrenoso e antitetânico e, depois, uma variada gama de medicamentos, imunizantes, soros e vacinas e extratos orgânicos terapêuticos (ototerápicos).

Saúde pública
A pesquisadora faz um cruzamento entre a história social (saúde pública, práticas terapêuticas, formação de uma elite científica) e a história econômica (formação da indústria farmacêutica privada, origem dos empresários e técnicos e do desenvolvimento científico e tecnológico). É preciso, então, voltar ao período anterior a 1892, quando começou a ser estruturado o Serviço Sanitário de São Paulo. Naqueles idos, as medidas sanitaristas eram episódicas, sempre com vistas ao combate de epidemias que surgiam em cidades portuárias como Recife, Salvador e Santos, além do Rio de Janeiro, especialmente, onde estava a capital do Império e depois capital da República.

O que veio mudar essa realidade foi a expansão cafeeira para o oeste paulista, criadora de novas necessidades, o que deu início a um trabalho que incluía instituições de pesquisa e a definição de uma política de saúde pública. O combate às doenças infecciosas incluía, então, ações de isolamento, vacinação e desinfecção. Para isso, o Serviço Geral de Desinfecções utilizava grandes volumes de substâncias químicas para higienizar portos, cortiços, a Hospedaria dos Imigrantes, em geral espaços urbanos deteriorados com moradias baratas e moradores pobres. Utilizava-se toda uma variedade de químicos (entre eles sulfato de cobre, cloreto de cal, ácido sulfúrico, cresol, permanganato de potássio, etc.), importados em grande volumes da Alemanha, Inglaterra e Estados Unidos.

Indústria brasileira
O pequeno parque industrial químico brasileiro estava relacionado aos recursos naturais – vegetais, minerais e animais. O primeiro segmento a se formar aqui foi o de produção de anilinas vegetais, óleos e ceras, óleos essenciais e medicamentos nativos. Nas últimas décadas do século 19, novas descobertas, como a síntese orgânica, feita em empresas estrangeiras, levaram à diminuição da produção de artigos químicos brasileiros com base em vegetais.

Já a fabricação de produtos derivados de minerais, por depender de maior complexidade tecnológica e matérias-primas importadas (enxofre, nitratos, cloro, etc.), começou mais tarde. É verdade que os ácidos comerciais (sulfúrico, clorídrico e nítrico) começaram a ser elaborados em 1895 pelo Luiz de Queiroz e Cia (mais tarde, Elekeiroz S.A.), mas a empresa sempre dependeu de importação. Com a Primeira Guerra, que escasseou a importação da soda cáustica, foi preciso partir para a fabricação do produto, o que foi feito pela Companhia Brasileira de Produtos Químicos, do Rio, a partir de 1921.

Micróbios e vacinas
A mudança em relação às medidas de saúde pública e desinfecções ocorreu no final dos anos 20, devido aos avanços no campo epidemiológico. Os cientistas descobriram que os canais de transmissão das doenças eram mais complexos do que se acreditava até ali. Maria Alice cita (conforme o livro Manguinhos do Sonho à Vida, de Jaime Benchimol): “Os novos conhecimentos sobre o comportamento dos micróbios patogênicos reduziram a importância das antigas noções da bacteriologia pasteuriana sobre o perigo do ar e contágio das doenças (…) uma nova concepção arquitetônica substituiu a lógica da organização hospitalar (…) por meio da construção de hospitais pavilhonares….” Noção presente, por exemplo, no Hospital de Isolamento de São Paulo (Emílio Ribas), onde cada pavilhão era específico para cada doença – febre amarela, tifóide, escarlatina, etc.

O Instituto Vacinogênico (de 1802) e o Butantan (criado em 1899, em função de uma epidemia de peste na cidade de Santos) foram as primeiras instituições encarregadas de fabricar produtos biológicos em São Paulo. O primeiro voltava-se à produção de vacina contra varíola, e o segundo ao soro contra a peste, e, mais tarde, às vacinas e soros contra mordida de cobras, aranhas e escorpiões.”Uma peculiaridade foi que os institutos públicos de pesquisa pertencentes ao Serviço Sanitário foram criados como instituições independentes, antes mesmo da instalação do ensino médico. No caso de São Paulo, o Butantan, o Bacteriológico (em 1892) e o Biológico (em 1927, este ligado à defesa sanitária da agricultura e pecuária) foram responsáveis pela difusão dos conhecimentos da microbiologia e pela revolução no campo da Medicina”, afirma Maria Alice.

Vital Brazil é um dos nomes de peso em saúde pública. Ele, que em 1901 produziu as primeiras doses de soro antiofídico, descobriu as propriedades dos soros – ou melhor, que para cada tipo de cobra havia um soro específico para neutralizar seu veneno. “Nos anos 20, ao mesmo tempo em que surgia a BCG, o Butantan passou a produzir em larga escala a vacina contra a febre tifóide. Na próxima década, ao lado da organização mais racional na produção de vacinas antivariólicas, o Butantan atravessou uma séria crise institucional. Tal situação se estendeu até meados dos anos 50, mas já em 48 o governo limitou sua atuação à preparação de produtos de defesa sanitária e à pesquisa de animais peçonhentos”, revela a pesquisadora.

Estudos de pesquisadores como Jaime Larry Benchimol e Luiz Antonio Teixeira afirmam que a produção nacional de medicamentos aumentara no pós Primeira Guerra, com a transferência de pesquisadores da instituições públicas para empresas privadas. “Cientistas das instituições públicas, que detinham o saber-fazer, passaram a ter interesse no estabelecimento de empresas ou no trabalho realizado na iniciativa privada” fala a professora. “O know-how adquirido pelos profissionais seria posto a serviço de interesses mercantis”, completa. O próprio Vital Brazil, ao deixar o Butantan, devido à discordância com a orientação de Arthur Leiva na direção do Serviço Sanitário, foi para Niterói e instalou o Instituto Vital Brazil. E o próprio Laboratório Paulista foi criado por profissionais que vieram de institutos.

Pesquisa e produção
A pesquisadora recorre aos estudos de Wilson Roberto Gambeta, de 1982, para mostrar os laços entre instituições de pesquisa e produção de imunológicos e o estabelecimento de uma produção nos moldes capitalistas. “O Pasteur, fundado por médicos, membros da elite paulista, comerciantes, banqueiros e industriais (e que contava com ajuda financeira do Estado), contribuiu para o desenvolvimento da tecnologia necessária ao fabrico de medicamentos com base científica; introduziu a farmacologia bacteriana complementando a galênica e estimulou a divulgação de industrialização de medicamentos”, diz a pesquisadora.

Para desenvolver seu trabalho, Maria Alice recorreu a arquivos, depoimentos de ex-funcionários e parentes de proprietários das antigas empresas. Descobriu que o Laboratório Paulista teve uma vida de sucesso. A empresa cresceu, diversificou sua produção, ampliou suas instalações (em 1919, tinha dois laboratórios, uma fazenda de criação de animais e uma filial no Rio de Janeiro). Além disso, manteve-se atualizado cientificamente, contratou novos profissionais, brasileiros e estrangeiros, e entrou no segmento das exportações. Em 1936, com 147 funcionários, inaugurou uma sede nova na Avenida São Luís. Parte do sucesso de sua trajetória pode ser atribuída, segundo análise de Gambeta, às “facilidades” da época. “O segredo industrial e o protecionismo das patentes não eram práticas correntes, de modo que o avanço da farmacologia era possível a todos através da bibliografia de domínio público”, diz.

De acordo com a pesquisa, o crescimento da empresa foi constante, passando pela Segunda Guerra e os dourados anos 50. “Nos 60 vieram as primeiras dificuldades, pois as grandes empresas estrangeiras assumiram a liderança do mercado, o governo passou a admitir o protecionismo das patentes industriais, concederam-se incentivos a investidores estrangeiros e houve a sofisticação crescente dos processos de produção dos modernos antibióticos.”

Logo, o LPB estava exposto à concorrência muito mais acirrada do que em outros segmentos do mercado farmacêutico. “O grau de obsoletismo de sua linha de produtos era imenso, pois mais rápida era a inovação no segmento, quando em 1966 foi comprado pelo Instituto Pinheiros”, conta Maria Alice. E o Instituto Pinheiros era, a essa altura, o maior laboratório nacional. Um caminho estava aberto, conforme divulgou a direção do IP, “para se manter a indústria farmacêutica nacional, por meio da formação de um pool de recursos materiais e humanos”. Seis anos depois, o IP não resistiu ao assédio e à concorrência dos estrangeiros e foi vendido à americana Sintex do Brasil. “Tal situação, somada ao problema de sucessão, que não pode ser desprezado”, como lembra a economista, “levaram ao desaparecimento de várias empresas nacionais do setor.”

Com o trabalho em andamento, Maria Alice irá complementar entrevistas e buscar o mais difícil. “São os dados relativos à administração, à parte econômica das empresas, papéis que, por falta de tradição, poucas famílias preservaram”, diz a economista. Em sua pauta está, também, levantar o histórico de mais dois laboratórios: o Laboratório Torres, onde trabalhou o cientista Otto Bier, e o Laborterápica, que foi comprado pela Bristol de São Paulo.

Maria Alice Rosa Ribeiro é graduada em Ciências Econômicas pela Faculdade de Ciências Econômicas da UFRGS e tem 48 anos. É mestre em História pela Unicamp, doutora em Economia pela Unicamp, tem pós-doutorado pela Universidade de Londres (com a pesquisa Indústria e Mercado de Trabalho. São Paulo, 1914-1945) e foi residente na Chemical Heritage Foundation, CHF, com uma pesquisa sobre a formação e o desenvolvimento da indústria farmacêutica. É professora da Unesp nos programas de pós-graduação em níveis de mestrado e doutorado.

Projeto : Estado e Indústria Farmacêutica: Ciência, Tecnologia e a Indústria Farmacêutica no Brasil 1890-1950
Investimento : R$ 8.056,00

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