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Resenhas

Uma leitora de Nietzsche no Brasil

Filosofia e cultura | Ivo da Silva Junior (org.) | Editora Barcarola / UFMG, 604 páginas, R$ 46,00

É certamente oportuna a publicação de um Festschrift para Scarlett Marton. Uma das principais estudiosas de Nietzsche no Brasil, Marton teve papel decisivo no estabelecimento e consolidação de uma pesquisa acadêmica sistemática sobre a obra do filósofo alemão entre nós. E isto não apenas com seus escritos, a começar pela decisiva tese Nietzsche: das forças cósmicas aos valores humanos (Ed.UFMG, 2010), mas também com seu trabalho de formação e divulgação científica – aspectos devidamente sublinhados pelo organizador do volume, Ivo da Silva Junior, em seu texto de apresentação.

O livro está dividido em três blocos de textos. No primeiro, há artigos de renomados autores estrangeiros sobre Nietzsche (Blondel, Campioni, Cragnolini, Marques, Meléndez, Santiago Guervós, Stegmaier e Wotling). No segundo, encontramos textos de quatro filósofos brasileiros que marcaram a formação de Scarlett Marton: Paulo Arantes (que, vale notar, contribui com um ensaio antigo, mas inédito, de mais de 100 páginas), Marilena Chauí, Oswaldo Porchat e Ernildo Stein. O terceiro, por fim, traz as contribuições de outros intelectuais brasileiros, da geração de Marton, com quem ela manteve frutífero diálogo ao longo de sua trajetória (Jorge Coli, Gilvan Fogel, Renato Janine Ribeiro, Franklin Leopoldo e Silva, Olgária Matos, Renato Mezan, Ricardo Musse e Ismail Xavier).

Face, porém, a essa diversidade de temas e perspectivas, chama a atenção que o organizador precise insistir tanto, em sua “apresentação”, na superioridade da obra de Scarlett Marton em relação a seus pares nietzschianos brasileiros, como se isto fosse necessário para legitimá-la. Na primeira parte de seu breve texto, Silva Junior faz uma série de afirmações salientando repetidamente tal superioridade: diz que Marton “aguardou, e ainda aguarda, o surgimento de outros [trabalhos] de linhagem brasileira para poder dialogar” (p. 10); assevera que o comentário de Marton “encontra similares apenas fora do Brasil” (p. 11); afirma que ela buscou o diálogo com pesquisadores estrangeiros devido à “ausência de trabalhos de mesma natureza sobre Nietzsche no Brasil” (p. 11); e assim por diante.

Afirmando ser “contra as igrejas interpretativas” (p. 13), Silva Junior prossegue, no entanto, afirmando que, em geral, os trabalhos sobre Nietzsche realizados no Brasil “não articulam todos os aspectos da obra, esgotando-se em si mesmos e, em geral, muitos no trilho de comentários já existentes na Nietzsche-Forschung internacional” (p. 11). O leitor se perguntará então se, a exemplo de ninguém menos que Gérard Lebrun (explicitamente citado para ilustrar esse estado de coisas!), seria também esse o caso de outros autores com importantes publicações sobre Nietzsche no Brasil, como Oswaldo Giacoia Junior, Carlos Alberto Ribeiro de Moura, Roberto Machado ou o próprio Gilvan Fogel, que figura entre os colaboradores do Festschrift. Quer parecer-nos que a acusação seria injusta nos quatro casos (para não falar de outros), e que a importância e a qualidade do trabalho de Scarlett Marton poderiam ser enaltecidas sem que se precisasse reduzir o mérito dos demais trabalhos, cuja variedade, diga-se de passagem, parece perfeitamente condizente com o espírito perspectivista da filosofia nietzschiana.

De certo modo, aliás, é justamente isso o que Filosofia e cultura acaba por fazer, à revelia talvez de sua apresentação: traz-nos não apenas diferentes leituras e estilos de ler Nietzsche (considerem-se, por exemplo, as diferenças entre Campioni e Marques), mas também diferentes modos de fazer filosofia no Brasil (considere-se a distância, quanto a isso, entre Arantes e Porchat) e ainda uma incrível diversidade temática (no último bloco de textos) cujo fio de ligação seria, como aponta o organizador, a relação entre filosofia e cultura.

Fernando Costa Mattos é professor de filosofia na Universidade Federal do ABC (UFABC) e pesquisador do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap).

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