Otavio Frias Filho, 46 anos, jornalista desde os 17, é formado em Direito e tem pós-graduação em Ciências Sociais pela Universidade de São Paulo (USP). Declara-se com modéstia um autor bissexto, mas, além das peças de teatro que publicou, algumas já encenadas, e de um livro reunindo artigos originalmente feitos para jornal, lançado há dois anos, faz parte agora dessa produção literária que ele minimiza um livro de reportagens ensaísticas, Queda livre – ensaios de risco, lançado recentemente e, aliás, festejado pela crítica especializada.
Mas Frias Filho, o Otavinho, como o chamam, até para diferenciá-lo do pai, Octávio Frias de Oliveira, o empresário que comprou a Folha de S.Paulo em 1962, é, acima de tudo, um dirigente de jornal, mais precisamente do maior jornal do país. E foi nesta condição que lhe solicitei uma entrevista, em julho de 2003, de grande interesse para minha tese de doutorado sobre o lugar que ocupam a ciência e a tecnologia no pensamento e nas atividades práticas das elites brasileiras – que se tornaria visível, entre outras fontes, pelos discursos da mídia. Poucos meses antes, com o mesmo objetivo, eu entrevistara Octávio Frias, o pai.
Quando foi decidido que uma pesquisa sobre percepção pública da ciência seria objeto da reportagem de capa da presente edição de Pesquisa FAPESP, entendemos que as entrevistas dos dois Frias poderiam enriquecê-la bastante, ao mostrar as visões sobre jornalismo & ciência de pessoas que, de formas diferentes, contribuíram e contribuem para a difusão dos assuntos científicos no país. Não havia espaço para as duas entrevistas e, por isso, publicamos, por ora, trechos da entrevista de Otavio Frias Filho, naturalmente com sua autorização, para usá-la com objetivo diverso daquele que foi declarado no tempo em que foi concedida. No texto a seguir, ele fala de jornalismo científico, mas dá também suas visões sobre o jornalismo em geral, o que nos parece informação relevante para o leitor da revista.
No nosso mundo contemporâneo, tão marcado pelos fluxos de informação em escala global e pelo predomínio da imagem na formação da opinião pública, que lugar resta para o jornalismo impresso?
A premissa é essa mesma da sua pergunta e acho que isso coloca um problema para as pessoas que lidam profissionalmente com o texto. Esta é uma civilização em que a imagem predomina cada vez mais, e todas as pesquisas mostram, de uma forma ou de outra, num ritmo ou em outro, uma certa decadência do hábito de leitura ou, pelo menos, da leitura convencional, de livros e periódicos. Esse problema existe. E penso que os jornais não devem voltar as costas para a imagem, como alguns chegaram a fazer durante um tempo. Um exemplo que me vem a mente é o do Le Monde, que durante tantos anos se recusou a ter fotos, e mesmo a utilizar impressão em cores, e acabou cedendo.
Se rendendo, não?
Pois é. Acho que é correto até este se render, porque não podemos ignorar a realidade da presença preponderante da imagem, mas, ao mesmo tempo, creio que os jornais devem fortalecer o seu conteúdo em termos de texto. Eles são veículos eminentemente textuais – esta vocação continuará a existir. E há também certas contradições, certas ambigüidades, na idéia de que as imagens tenham avançado sobre o texto. Tomemos, por exemplo o fenômeno da Internet, tão discutido hoje em dia: muitos analistas consideram que a Internet está patrocinando um renascimento do hábito de leitura, que as pessoas voltam a escrever e a ler com uma freqüência que não ocorria anteriormente. Mas concordo que a tendência geral é de preponderância da imagem, que não vai ser revertida, portanto os jornais têm que, em parte, se adaptar a essa realidade, e, em parte, se contrapor a ela, se afirmando como veículo com uma certa densidade textual, com uma certa capacidade de elaboração. Embora a superficialidade dos jornais de informação geral seja notória, acho que eles respondem por uma certa tradição de elaboração de narrativa textual que é importante e deve continuar viva.
Em relação a esse debatido papel da Internet no renascimento do hábito da leitura e da escrita, não se trata aí de um outro tipo de leitura, longe do que pensamos ao usar essa palavra em termos mais tradicionais? O texto na Internet é muito telegráfico, muito pouco argumentativo.
Concordo, embora eu faça uma ressalva, a saber: que a Internet propicia um sem-número de leituras, de tipos e modalidades de leituras. Por exemplo, se você quiser pesquisar sobre [o filósofo] Martin Heidegger na Internet, poderá fazê-lo durante semanas, talvez meses, vai ler uma quantidade monumental de textos. Então, ela permite também esse tipo de aprofundamento de uma maneira que talvez nenhuma outra mídia permita, dado o acúmulo virtualmente infinito de dados que possibilita. Mas, de modo geral, o tipo de leitura e de redação que a Internet, um meio interativo, estimula é fragmentário, passageiro, superficial, incompleto, muito desatento em relação à norma culta. Hoje está ficando cada vez mais claro que a linguagem dos boletins on line, por exemplo, saudados como um passo importante de modernização das comunicações, se assemelha muito à linguagem de um veículo bastante tradicional em termos de mídia, que é o rádio.
Então haveria ainda um papel a ser cumprido pelo jornal diário entre as instâncias de articulação social e política da sociedade. Como é a sua visão disso?
Vou comentar esse ponto, mas antes vou fazer uma consideração sobre um ponto paralelo, que é o seguinte: na Folha fazemos uma análise de que, por parte de um contingente grande de pessoas, continua e continuará havendo a demanda por um panorama noticioso que reflita o que aconteceu de essencial nas últimas 24 horas. Entendemos que é esse ritmo de 24 horas e não o suporte – que pode ser tanto o papel quanto a tela – que define o jornal. Consideramos que essa necessidade até se acentua, na medida em que existe uma oferta muito grande, inassimilável de informação, com níveis de credibilidade muito díspares. Temos na Internet desde sites muito autorizados do ponto de vista conceitual, intelectual etc. até aqueles extremamente irresponsáveis. Então, a idéia de que os jornais tradicionais, seja no velho ou no novo suporte, sirvam como uma espécie de âncora, de referência informativa no meio dessa balbúrdia, dessa cacofonia noticiosa, é até uma oportunidade interessante a ser explorada pelos jornais. Quanto ao outro aspecto, do ponto de vista político me parece que o jornalismo já teve uma influência muito maior do que tem hoje. Os jornais já foram entes muito mais políticos, inclusive muito mais partidarizados, mas acho que ele continua a desempenhar um certo papel, em termos de articulação da política, articulação da economia etc. Continuam sendo não só um centro de debate público que envolve todas as elites da sociedade, quer dizer, a elite empresarial, a elite intelectual, a elite sindical, a elite política etc., mas um veículo que forma e desfaz certos consensos.
Ao falar do envolvimento das elites chegamos à questão de a quem se destina o jornal. Essa questão não é ela própria definidora da diferença do jornal em relação a outros meios? Quero dizer, o jornal segue como um meio que visa essas elites, enquanto o papel de grande veículo de massas já teria sido deixado há 50 anos para a televisão e o rádio.
Concordo totalmente. Acho que é isso mesmo que define cada vez mais a vocação dos jornais. Isso ocorre nos países desenvolvidos e, de uma maneira muito mais acentuada, muito mais excludente, em países pobres como o nosso, onde essas elites representam um percentual muito menor do conjunto da população. Mas, num caso ou noutro, o consumidor da mercadoria jornal é um indivíduo que tem certas expectativas e certas exigências em termos intelectuais, que estão num patamar um pouco acima da sociedade como um todo. É um fato, não há o que discutir, que já se cristalizou há 50 anos essa distinção entre aquele que é o veículo de informação de massa, a televisão e o veículo de informação do conjunto das elites, que é o jornal.
Sobre o suporte do jornal, sua expectativa é de que o papel seja totalmente descartado mais adiante?
Não sei responder a essa pergunta. Acho difícil que alguém saiba respondê-la de maneira categórica, porque as coisas ainda estão ocorrendo e não existe ainda uma perspectiva nítida que permita fazer uma previsão. A minha impressão pessoal é de que os dois suportes provavelmente vão conviver por alguns anos, talvez por muitos anos, e não excluo a possibilidade de que o suporte papel venha a existir para sempre.
O jornalismo impresso, hoje, sobretudo se o pensarmos a partir das reportagens, de cidade, ciência, polícia etc., não se configuraria ainda e de uma certa maneira como uma das narrativas mais importantes da cultura contemporânea? Afinal, mais que a Internet, ele nos traz histórias e enredos que vão se desdobrando, cheios de antes e depois, com clímax e finais felizes ou dramáticos e, nessa medida, vai apresentando o mundo, dia após dia, de uma maneira que lhe é muito própria.
É, existe uma grande discussão sobre o jornalismo no ambiente jornalístico brasileiro hoje. Existe também dentro da Folha discussões sobre os padrões de texto jornalístico, noticioso. À semelhança da grande maioria dos jornais noticiosos da tradição brasileira, que é uma tradição que sofreu muita influência da imprensa norte-americana, a Folha adota um texto que se propõe a ser objetivo. Quer dizer, sabemos que não existe objetividade em termos absolutos, neutralidade e tal, mas esses jornais se propõem a ter um texto que se aproxime tanto quanto possível do modelo de um relato objetivo dos fatos. Então, há uma série de normas que circunscrevem a liberdade estilística do autor, há uma série de perguntas a que o texto jornalístico necessariamente deve responder, enfim, há todo um arcabouço que limita a latitude de escolhas do autor do texto, com base na idéia de que essa limitação garantirá um padrão mais objetivo de relato. A Folha preza muito esse padrão. Eu diria que ela o reacentuou nos anos 1980, e o vem abrandando um pouco nos últimos 10 ou 15 anos. A minha visão pessoal sobre isso é de que existe um certo movimento pendular na tradição de um jornal. Certos veículos engessam de tal maneira o seu texto, que é saudável que haja um movimento para flexibilizá-lo, para permitir um pouco mais de liberdade pessoal porque esse engessamento excessivo acaba matando a própria criatividade. Por outro lado, acho que não se deve perder um certo padrão objetivo de texto como referência, porque devido à influência que os jornais exercem hoje, atingindo públicos que são muito numerosos e muito heterogêneos, seria um erro que adotassem uma liberdade que acabasse desfigurando um certo discurso unitário do jornal, pelo menos do ponto de vista noticioso. Penso que estamos transitando para um texto mais flexível, muitas pessoas advogam a idéia de que os jornais, até para fazer frente aos veículos de informação em tempo real e à televisão – por vezes esquecemos, mas a televisão é um veículo de informação em tempo real -, deviam adotar um padrão de texto mais flexível.
Quase literário?
Quase literário, há quem advogue que permitisse um certo aprofundamento, uma diferenciação em relação ao que a televisão e os boletins on line já fazem. Admito essa idéia em parte, porque eu acho muito importante que os jornais não percam um padrão de referência textual básico, que contenha normas que visem contribuir para a objetividade do relato. A minha posição seria, digamos, intermediária. Existem nichos de grande liberdade estilística na Folha, nos textos assinados e sobretudo nas colunas. Exemplo mais notório, talvez, nesses últimos anos, seja o do Zé Simão, que criou um estilo de humorismo. Eu costumo às vezes associá-lo ao Juó Bananere, o cronista da imprensa paulistana no começo do século. Vejo certas semelhanças no uso do humor, no coloquialismo etc. Então existem, sim, nichos de grande vitalidade, eu diria, de criatividade estilística. Mas eu sou muito cético em relação a algumas experiências formais radicais da imprensa brasileira, porque acho que um texto resultará tanto mais bem escrito quanto maiores forem os obstáculos e as adversidades que tenha que enfrentar.
Do ponto de vista do estilo mesmo?
Sim, mesmo do ponto vista do estilo. Imagine a quantidade de condicionamentos, de imposições e até de regras íntimas, digamos, que um escritor como Flaubert impunha ao seu texto. E talvez seja consenso hoje que ninguém escrevia com tal requinte, com tal perfeição literária quanto Flaubert. Mas não estou exigindo que nós jornalistas sejamos cada um um Gustave Flaubert, é óbvio. É apenas um exemplo de que, às vezes, o melhor dos textos tem a ver justamente com disciplina e sujeição a uma série de regras, normas e constrangimentos. Aliás, eu me referi anteriormente à imprensa norte-americana, dizendo que ela vem exercendo uma influência hegemônica na imprensa brasileira, pelo menos dos anos 1950 pra cá, e esqueci de mencionar que a tradição da imprensa européia naturalmente é outra, de muito mais liberdade não só na escolha dos temas pautados, como também e sobretudo no tratamento estilístico das reportagens. Existem de fato esses dois modelos.
Sua participação nesse processo de definições da política editorial da Folha vem desde os anos 1980?
Com responsabilidades executivas, desde 1984. Como participante das discussões desde 1976, 1977. Nos anos 1990 houve uma correção de rumos e nós, eu próprio, acabamos concluindo que, embora verdadeiras, as idéias do jornalismo como uma profissão normatizável, e do jornal como um produto industrial, comportam limites. Ou seja, é importante normatizar, porque isso corresponde a um desenvolvimento técnico da profissão e do saber jornalístico, é importante ter o jornal como um produto industrial de mercado, mas eu relativizaria isso, no sentido de que esse produto associa aspectos da fábrica com aspectos do ateliê, e estes são inerradicáveis em nossa atividade.
Isso porque está ligado a um fazer intelectual humano?
Porque está ligado a um fazer intelectual humano e porque não se trata de uma ciência exata. Então os limites da normatização aparecem mais cedo ou mais tarde. Ela acaba burocratizando, como aconteceu na Folha, acaba fossilizando o texto, como também aconteceu aqui, acaba matando a criatividade e a inventividade, sobretudo de pessoas mais novas, de gerações mais novas, que chegam ao jornal. Os limites dessa política ficaram claros e ela sofreu correções importantes.
Existe alguma relação entre o projeto editorial apresentado aos leitores e o desempenho comercial do jornal?
No caso da Folha houve uma trajetória de crescimento da circulação ao longo dos anos 1980, num padrão ascendente mais ou menos constante. Nos anos 1990, houve um crescimento já em escala geométrica da circulação, a partir de 1993, 1994, quando a Folha e outros jornais passaram a adotar uma política de promoção, ou seja, de vincular outros produtos à compra do exemplar: brindes, enciclopédias, volume disso, atlas daquilo, e tal. Com isso houve realmente um boom na circulação de jornais, e o apogeu se deu aí por 1995, 1996, e a partir de 1997 começou a haver uma queda, a meu ver porque a política de promoções se esgotou, se exauriu, mas também porque a economia está crescendo muito pouco nos últimos anos e as pessoas estão sem dinheiro. Além disso, os jornais estão passando por uma crise muito forte na condição de empresas de mídia, e essa crise está determinando que cortem investimentos, devastem seus orçamentos, apliquem uma política feroz de contenção de despesas etc. Então os veículos perdem capacidade de agressão, de presença no mercado. Isso vale para a Folha e vale também para os outros jornais de informação geral de grande porte, como O Globo ou O Estado de S.Paulo. Nos últimos 30 anos não há registro de uma crise tão forte como a atual, atingindo o setor de mídia no mundo e no Brasil.
Quais são os números de circulação dos grandes jornais brasileiros hoje?
A Folha continua sendo, em julho de 2003, o jornal diário com mais circulação no Brasil. Temos uma superioridade média em termos de circulação de cerca de 30% sobre O Estado de S.Paulo, e de cerca de 25% sobre o jornal O Globo. Em números aproximados, estamos hoje num patamar de circulação média próximo àquele em que estávamos no começo dos anos 1990, ou seja, por volta de 350 mil exemplares diários. No boom da política de promoções e fascículos, a circulação média do jornal chegou a 1 milhão de exemplares, havendo domingos em que se atingiram cifras recordes de 1,5 milhão de exemplares. Quer dizer, a curva de circulação da Folha e dos grandes jornais em geral, porque todos passaram por processos semelhantes, descreve uma parábola ao longo dos anos 1990. Mas sobre circulação tem um aspecto que eu acho importante mencionar, nesse contexto, que é o seguinte: normalmente as pessoas tendem a vincular circulação ao conteúdo editorial. A minha experiência tem demonstrado à saciedade que o conteúdo editorial é um dos aspectos de peso na formação do fenômeno da circulação dos jornais, mas não é necessariamente o mais importante. Há outros aspectos: preço, qualidade de serviço, atendimento que o assinante recebe, presença na mídia, marketing. E há um quinto aspecto, quase metafísico, que é algo como a imagem que o jornal projeta, a identificação com alguma trajetória de tradição que ele representa. E há um detalhe que acho importante mencionar: num jornal como a Folha, de cada dez leitores, cerca de nove são assinantes. Então, nos grandes jornais, basicamente de assinantes, não é preciso fazer pirotecnias na primeira página para supostamente vender mais. Porque o vínculo com a grande massa de leitores é outro, é um vínculo que implica credibilidade, implica confiabilidade.
A crise da atual da imprensa é econômica, e profunda. Quais as suas razões?
Houve nos anos 1990 um primeiro ciclo, com um ambiente de expansão da economia mundial, os anos dourados do Clinton etc. E um segundo ciclo, com um ambiente de retração na economia mundial. No primeiro ciclo havia a idéia de que estava em curso uma revolução tecnológica que afetaria muito profundamente a sociedade em geral, mas especificamente o setor de mídia. Então as empresas embarcaram nessa revolução porque não queriam perder o bonde da história. Investiram muito, diversificaram suas atividades, tomaram empréstimos. Para fazer o quê? A Internet, que antes não existia e hoje reúne 15 milhões de internautas no Brasil. Para fazer a TV a cabo, para criar novos títulos, jornais populares no estilo do Extra, no Rio, revistas como a Época, jornais econômicos, como o Valor. Com a desvalorização cambial, os preços em dólar foram multiplicados, o que implicou um ônus financeiro gigantesco sobre as empresas.
Vamos falar um pouco de ciência? Qual é a sua visão da ciência como objeto da cobertura jornalística?
A Folha tem tradição na cobertura de ciência, não é mesmo? O jornal teve a sorte, ao meu ver, de nos anos 1950 e no começo dos 1960 ter tido José Reis como o responsável pela redação. Ela estava no jornal antes, desde o final dos anos 1940, mas foi diretor de Redação depois. E ele exerceu uma enorme influência, seja no ambiente científico brasileiro, como você sabe muito bem, seja no sentido de constituir no Brasil esse gênero jornalístico, o jornalismo científico, e trazê-lo, de maneira pioneira, para as páginas da Folha. Então nós procuramos sempre manter o jornal pelo menos à altura dessa tradição inaugurada por José Reis, que foi, além de um jornalista muito respeitado, um pesquisador de méritos, sobretudo no começo da carreira, antes de se dedicar mais integralmente ao jornalismo científico. De uma forma mais geral, eu tenho a impressão de que em nossos dias o interesse jornalístico pela ciência tem aumentado e só tenderá a aumentar.
Por quê?
Primeiro, porque a ciência exerce uma influência, ainda que indireta, muito grande na vida das pessoas, e não vejo nenhuma razão por que essa influência venha a decrescer. Ao contrário, acho que ela só vai aumentar, vivemos numa civilização técnico-científica. Segundo, porque a ciência passou a ser vista como uma das portas de ingresso do público mais jovem ao hábito de ler jornais. E esse público é um pouco o enfant gatê dos jornais hoje em dia, porque estão todos muito preocupados sobre como garantir novos leitores, como continuar formando leitores. Então, tem esse aspecto de estratégia etária, ou geracional. E em terceiro lugar, eu diria, porque a comunidade científica passou a dar mais importância à divulgação midiática dos seus resultados. E isso passou a funcionar até, numa expressão um pouco dura, talvez, como uma espécie de moeda sonante. Sabemos que recursos e investimentos em determinadas áreas de pesquisa dependem do tipo de repercussão que se tem na mídia. O caso todo do enfrentamento médico da epidemia de Aids é um bom exemplo de como lobbies bem organizados fazem um assunto aparecer com grande visibilidade na mídia, e de como essa visibilidade, por sua vez, justifica também o carreamento de recursos vultosos para o enfrentamento daquela moléstia. Evidentemente não estou criticando que se destinem recursos para o enfrentamento da Aids, ou para a descoberta de uma possível vacina contra ela, mas só assinalando o fato de que moléstias, tão graves quanto ou tão epidêmicas quanto, ou endêmicas, têm muito menos visibilidade.
Malária, por exemplo?
Por exemplo. E talvez por essa razão têm menos recursos para pesquisa. Enfim, você conhece bem, melhor do que eu aliás, todo esse problema da política científica e de como a divulgação midiática joga um papel nessa questão de política científica. Mas é um terceiro aspecto pelo qual eu acho que o jornalismo científico tem ganhado presença e mais visibilidade.
Há, entre os jornalistas, muita divergência sobre as áreas de afinidades da cobertura de ciência, que normalmente se encontra nas chamadas páginas de Geral. Alguns defendem que ela deveria estar mais ligada à economia e há quem ache que deveria estar ligada à cultura. Qual é a sua opinião?
Acho que ela é uma cobertura muito sui generis. Por quê? Porque desperta, sobretudo em alguns momentos – e é emblemático o caso da ovelha Dolly, por exemplo -, uma curiosidade quase universal. Ao mesmo tempo, ela requer um instrumental de trabalho bastante exigente: exercer a atividade de jornalista como repórter que está cobrindo eventos na cidade exige um tipo de qualificação profissional menor do que aquela exigida para uma pessoa que vai desempenhar seu trabalho como jornalista de ciência, que vai fazer jornalismo científico.
Isso até para tentar traduzir o jargão da área para uma linguagem do senso comum, não é?
Exato. E esta é uma área onde deve haver muito cuidado, a meu ver, em duas direções: primeiro, há que se evitar tanto quanto possível que o jornalismo seja manipulado pelo jogo dos grandes laboratórios, das grandes empresas que sabem que a visibilidade em mídia se traduz em receita. E, ao mesmo tempo, há que se tomar cuidado para que essa cautela não leve o jornalista a “brigar com a notícia”, como dizemos em nosso jargão. Por exemplo, no caso do Viagra, eu sei que toda essa enxurrada de noticiário ajuda muito o fabricante. Agora, é um fato extraordinário que não pode ser ignorado pelos jornais. Mas há esse aspecto de tomar cuidado para separar o joio do trigo, ou seja, utilizar os métodos e critérios e jurisprudências da nossa profissão para tentar identificar o que é notícia, ou em que medida um fato é, de fato, notícia, em que medida está sendo manipulado por um fabricante, por um laboratório etc. Essa cautela deve ser permanente no jornalismo científico. E, claro, a cautela também de evitar ceder à tentação de um certo sensacionalismo, porque o jornalismo científico dá ampla margem para todo tipo de sensacionalismo.
Como se diz, é possível fazer uma descoberta por dia no jornalismo científico, não na ciência.
Isso, isso. Eu já nem falo, sei lá, das fraudes paleontológicas, ou do monstro do lago Ness, mas sabemos que o sensacionalismo é um elemento que está sempre à espreita nesse tipo de cobertura, e nosso editor de ciência é muito preocupado justamente com esse aspecto de evitar passar a falsa imagem de que por trás de um fato científico de proporções mais ou menos limitadas possa estar um evento extraordinário, sensacional.
A minha indagação sobre em que páginas se deve abrigar a cobertura de ciência está ligada à seguinte questão: quase sempre, a tradução do conhecimento científico em tecnologia é que determina as mudanças no nosso cotidiano. Acontece que dificilmente a tecnologia tem o apelo, o charme que a ciência com freqüência apresenta. As notícias de tecnologia em geral estão na economia, longe da ciência. Se as duas estivessem juntas, com o charme da ciência contaminando a tecnologia, o jornalismo não prestaria um melhor serviço de informação para o leitor?
Bem, eu tenho a impressão de que a cobertura de ciência é muito alheia aos aspectos econômicos da ciência e não sei muito explicar por que isso ocorre. Provavelmente porque os aspectos que despertam aquela curiosidade universal a que me referi antes são mais propriamente científicos.
Que talvez estejam mais ligadas ao prazer de conhecer, de descobrir?
Exato. E ligadas muito ao maravilhoso, ao misterioso, ao inesperado. Ao passo que uma cobertura, digamos, mais tecnológica, mais atenta à realidade econômica, ao substrato econômico da ciência, tende a interessar a um público mais restrito.
Mas não é um problema, do ponto de vista da organização das notícias no jornal, que a ciência esteja num lugar e a tecnologia esteja noutro? Não seria possível reuni-las?
É verdade, e é uma boa questão. Talvez se devesse pensar em reuni-las.
Pensando não só em termos nacionais, mas também internacionalmente, o jornalismo científico tende a ocupar um espaço maior do que já ocupa dentro da mídia?
Não tenho muita condição de julgar, porque eu sou um editor um tanto caipira, como diria o Fernando Henrique Cardoso. Eu viajo pouco, acompanho a imprensa internacional muito menos do que seria desejável, por falta de tempo e porque, enfim, o Brasil é um país continental, a realidade nacional pesa muito no nosso cardápio jornalístico.
Ainda bem.
Pois é. Eu acompanho muito pouco imprensa internacional, nunca tive a ocasião de morar no exterior, então não saberia opinar com base em observação. Mas em termos intuitivos diria que o jornalismo científico só vai crescer em termos de espaço e presença dentro do jornalismo. Porque acho que os temas mais tradicionais do jornalismo, a saber, os temas institucionais, notadamente política e economia, vêm perdendo importância relativa na composição temática dos jornais.
Isso é perceptível?
Sem dúvida. Se você pegar um jornal dos anos 1950, comparar o peso relativo dos diversos tipos de noticiário, verá que há muito noticiário político, aquelas longas reportagens mostrando como tinha sido a sessão do Senado na véspera, em detalhes, como tinha transcorrido a sessão da Câmara em detalhes, os despachos do presidente, do ministro etc. Então era muita cobertura política, muito pouca cobertura de economia, ela nem estava organizada enquanto tal, assuntos como educação apareciam de uma maneira muito esporádica, muito desorganizada, mesmo ciência era um noticiário muito incipiente. O cardápio principal dos jornais nos anos 1950 era, portanto, muita política, muito despacho internacional aproveitado das agências, e um certo noticiário desorganizado de comunidade local. Com o tempo, nos anos 1960, 1970 e tal, foram se organizando outros gêneros, o próprio jornalismo cultural cresceu muito nos anos 1960, o jornalismo de economia cresceu muito nos anos 1970, o jornalismo de serviços, assim chamado, surgiu, pelo menos no Brasil, nos anos 1970. Então, na composição relativa, política e mesmo economia a meu ver têm perdido espaço para acomodar outros subgêneros que existem, que têm presença hoje na pauta de qualquer jornal. Eu acho que ciência vai crescer pelas razões que já mencionei.