Imprimir PDF Republicar

indústria cultural

Uma revolução na telenovela

Digitalização dos arquivos da TV Tupi permite reavaliar a importância de Beto Rockfeller

Luis Gustavo protagonizou a novela que, entre outras inovações, apresentou o primeiro merchandising na TV brasileira

Acervo UH / Folhapress

A telenovela Beto Rockfeller foi considerada revolucionária já na época em que foi exibida pela extinta TV Tupi, entre 1968 e 1969. Num tempo em que a teledramaturgia se apoiava em dramalhões anacrônicos e quase totalmente gravados em estúdio, a narrativa escrita por Bráulio Pedroso e dirigida por Lima Duarte trazia uma ambientação contemporânea e urbana, um anti-herói malandro e alpinista social, imagens externas, improvisação dos atores, comportamentos rebeldes e um tom de ironia. Quase tudo era novo, incluindo o primeiro caso, também improvisado e casual, de merchandising. É conhecida a história que envolveu o ator que representava o personagem-título, Luis Gustavo, e a marca de remédio Engov, contra a indigestão e a ressaca. Segundo ele, o acordo de incluir cenas explícitas da marca era um modo de compensar os atrasos de salário comuns na TV Tupi, que, apesar de líder de audiência, era cronicamente mal gerida.

Para Esther Hamburger, professora da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (ECA-USP), o merchandising do remédio pode ser considerado uma indicação da presença, na novela, de uma sensibilidade maior em relação a um estilo de vida e a um estágio de modernidade que marcaram a época em que foi produzida. É um elemento que, segundo ela, não estava tão claro no momento da transmissão de Beto Rockfeller e foi observado durante a recuperação e digitalização de seus sete capítulos sobreviventes. “Esse tipo de merchandising, tal como a exibição de moda, cigarro, uísque, telefones ou motocicletas, constitui uma via de acesso dos espectadores ao universo dos personagens”, diz Esther. “É como se, ao adotar acessórios sugeridos pelos personagens, os espectadores compartilhassem seu posicionamento no mundo.”

Esther esteve à frente do trabalho que se iniciou em 2009, a partir da publicação pela FAPESP de um edital de digitalização, preservação e organização de arquivos. As fitas VHS da teledramaturgia da Tupi estavam na sede da Cinemateca Brasileira, em São Paulo, depois de um périplo por vários órgãos públicos, à espera de condições técnicas adequadas à sua preservação. O projeto terminou com a digitalização das 100 horas de material previstas no projeto, mas ainda há cerca de 3 mil aguardando tratamento nos arquivos da Cinemateca. O que havia de Beto Rockfeller, no entanto, já está resguardado.

Acervo UH/Folhapress Plínio Marcos, parceiro da personagem de Luis Gustavo, do teatro maldito para as telas da TV TupiAcervo UH/Folhapress

“O trabalho foi muito mais demorado do que a gente esperava”, diz Esther. A recuperação dos arquivos dependeu da aquisição de uma ilha de edição Quadruplex, o primeiro formato de vídeo usado pela televisão, criado em 1956. Anteriormente, os telejornais da TV Tupi, gravados em película, já haviam sido digitalizados por meio de outro projeto, parceria da Cinemateca com o Ministério da Justiça. Tanto os arquivos de telenovelas quanto os de jornalismo estão disponíveis no Banco de Conteúdos Culturais, site da Cinemateca Brasileira.

Todos esses trabalhos aconteceram num contexto novo, em que os arquivos televisivos começam a ser valorizados. Por questões legais relativas a direitos autorais e um antigo desprezo acadêmico pela produção televisiva como produto cultural, grande parte dos arquivos das primeiras décadas da televisão brasileira se perdeu. As próprias emissoras tinham o hábito de reutilizar as fitas de vídeo, além de descuidarem de sua manutenção. “Não existia a cultura de preservação da TV no Brasil, ao contrário do que aconteceu em países da Europa, cujos acervos normalmente estão disponíveis em bibliotecas nacionais, com direitos autorais garantidos”, diz Esther.

A pesquisadora se deteve nos capítulos restantes de Beto Rockfeller, que, por revelar vários aspectos inovadores no tema e na forma, mostra as muitas possibilidades de abordagem dos arquivos televisivos. Em seu estudo sobre Beto Rockfeller, Esther foi buscar um contraponto nas pesquisas mais recentes sobre o “primeiro cinema”, que revelam a arte da tela grande como um elemento constituinte da modernidade já em seu surgimento, com a presença frequente de máquinas, velocidade e movimento urbano, enquanto a teoria tradicional só identificava a presença moderna nos filmes feitos a partir dos anos 1960. “O cinema é moderno por excelência e é parte da modernidade”, diz. “No Brasil, nunca houve propriamente uma indústria do cinema, mas houve uma indústria televisiva. A TV é parte do processo de modernização, não apenas uma representação de um determinado momento histórico.”

Reprodução revista Intervalo - Acervo Orias Elias Da esquerda para o centro: os atores Bete Mendes, Rodrigo Santiago, Luiz Gustavo e Debora DuarteReprodução revista Intervalo - Acervo Orias Elias

No caso de Beto Rockfeller, está presente, segundo Esther, uma “utopia da modernidade”. Beto Rockfeller, a personagem (cujo nome alude ao milionário americano Nelson Rockefeller, com um erro de grafia talvez intencional), é um funcionário de sapataria na rua Teodoro Sampaio – então um símbolo do comércio de classe média em São Paulo – que se finge de rico para se integrar à alta sociedade, cuja vida de consumo se concentrava na então sofisticada rua Augusta. É um “bicão”, termo da época para os alpinistas sociais que se comportavam como penetras num mundo que não era o seu. “Beto é o indivíduo capaz de superar os limites do bairro aprendendo a lidar com as referências dos ricos”, diz Esther.

Ascensão social
Um episódio em particular, presente nas fitas digitalizadas e destacado pela pesquisadora, é um “racha” de motocicletas entre Beto e seu rival rico, em competição pelo coração da mocinha. As motos já significam muito na trama – são ao mesmo tempo um símbolo de status, um sonho de consumo e um ícone de rebeldia, como no pôster de Marlon Brando no filme O rebelde que decora o quarto de Beto. São também um símbolo de esforço de ascensão social (e capacidade de conquistar uma garota rica e mais ou menos liberada sexualmente) na medida em que Beto precisa aprender a dirigir a moto com a ajuda de seu melhor amigo, o mecânico pobre interpretado pelo dramaturgo Plínio Marcos. Finalmente, é um pretexto para mostrar uma nova avenida em obras, a Sumaré, um sinal do cosmopolitismo de São Paulo e do país.

Além de ser levada ao ar no mundialmente agitado ano de 1968, a novela começou em 4 de novembro de 1968, pouco mais de um mês antes da decretação do AI-5, marco do endurecimento da ditadura militar no Brasil. Contava mesmo no elenco com a atriz Bete Mendes, estudante de ciências sociais, que viria a ser presa e torturada pelo regime. Não havia na trama, no entanto, nenhuma premonição do que estava por vir. “A novela dava mais forma a uma imaginação do que se queria ter, relacionada ao ‘milagre econômico’ que viria depois”, diz Esther. “Tudo era muito ambíguo. Apesar da rebeldia presente no tom da novela, o personagem principal levava o espectador a espiar num buraco da fechadura para o fascinante mundo dos ricos. A sensibilidade presente era bem despolitizada. Parece que previa a onipresença do consumo a que a gente assiste hoje.”

A ambiguidade também se dava na criação. Se de um lado estavam incluídos nomes ligados à telenovela tradicional, como o produtor Cassiano Gabus Mendes e o diretor Lima Duarte, por outro foram procurados destaques atuais do teatro paulistano, como a “dama” Maria della Costa em sua primeira participação em meio televisivo e o iconoclasta Plínio Marcos (autor da peça Navalha na carne), além do dramaturgo Bráulio Pedroso, convidado especialmente para escrever o texto. “A novela conectou universos eruditos e da indústria cultural em torno de um repertório de liberalização dos costumes associada à ascensão social e ao consumo”, diz Esther.

Era um grande caldeirão que misturava tradição e sinais de modernidade, algo que a TV Globo tratou de normatizar em seguida, começando sua ascensão definitiva na área da telenovela. Até 1969, o departamento de novelas da emissora era chefiado por Gloria Magadan, cubana exilada no Brasil, que imprimia aos folhetins da casa “seu estilo de produzir histórias rocambolescas que se passavam em terras e/ou tempos distantes”, nas palavras de Esther. Eram títulos como O sheik de Agadir e Sangue e areia. Naquele ano, a Globo, coincidindo com o início da rede nacional, demitiu Magadan e a substituiu por Daniel Filho, inaugurando uma nova dramaturgia, com temas contemporâneos e brasileiros.

Já para começar, a novela Véu de noiva, de Janete Clair, tinha um galã corredor de Fórmula 1, num momento em que o piloto Emerson Fittipaldi era um herói nacional. “As modificações se inspiraram no modelo introduzido por Beto Rockfeller, mas com uma organização de produção mais próxima do modelo industrial”, diz Esther. Tanto assim que a emissora criou em 1971 um departamento de pesquisa para monitorar movimentos quantitativos e qualitativos da audiência, como parte de uma política “de profissionalizar suas relações com anunciantes e agências de publicidade”. “Antes disso, TV ainda não era um negócio muito lucrativo”, diz Esther. “Seria interessante que economistas começassem a estudar essa indústria.” Eis aí mais um filão promissor que a preservação dos arquivos televisivos pode estimular.

Projeto
Acervo quadruplex da extinta TV Tupi (nº 2009/54923-7); Modalidade Auxílio à Pesquisa – Programa Infra-estrutura; Pesquisadora responsável Esther Império Hamburger (USP); Investimento R$ 446.934,77 (FAPESP).

Republicar