Em um frio mês de junho, um casal de brasileiros com dois filhos tem o privilégio de almoçar e jantar em família. Na segunda-feira, o almoço tradicional é a bisteca de porco com arroz e feijão. Apesar do cardápio ser repetido no jantar, acaba sobrando na geladeira um pouco de feijão e de bisteca . Na quarta, o mesmo acontece com a feijoada e, na quinta, com o molho de tomate do macarrão. Ambos sobram e vão para o refrigerador. Na sexta, mais fria ainda, ao olharem os restos na geladeira, as crianças pedem para a mãe aquela sopa maravilhosa em que os restos da bisteca, um pouco de feijão e a sobra daquele molho temperado de macarrão se misturam aos legumes frescos e a um macarrãozinho pequenino. Assim nasce uma sopa maravilhosa que transforma as barrigas da família em verdadeiras bolas de basquete.
A esta altura o leitor deve estar se perguntando: que diabos aconteceu nesta coluna Neotrópicas? Virou site de receitas? O que isso tem a ver com a transdisciplinaridade?
Na realidade, o cardápio da semana da família do Sul ou Sudeste brasileiro ilustra muito bem como funciona um projeto científico transdisciplinar. Quando se fala de uma iniciativa multidisciplinar, interdisciplinar e transdisciplinar, a maioria das pessoas pensa na mesma coisa: misturar disciplinas. Essa é ainda a conotação geral, mas, gradativamente, os três termos começam a ser encarados de maneira distinta e, com isso, novas formas de ver a ciência estão sendo desenvolvidas.
Primeiro, é preciso entender o que são as disciplinas. Isso é fácil. A maioria de nós foi educada por meio do ensino disciplinar. Disciplina é um ramo particular do conhecimento cujos elementos de definição (por exemplo, os fenômenos, os conceitos, a epistemologia, as teorias e os métodos) o distinguem de outros ramos. Só para lembrar, algumas disciplinas dentro das grandes áreas em que se inserem. Nas ciências naturais, há a biologia, a química, as ciências da terra, a matemática e a física; Nas ciências sociais, a antropologia, a economia, as ciências políticas, a psicologia e a sociologia. Nas humanidades, a arte, a história, a literatura, a música, a filosofia e os estudos religiosos.
A forma como lidamos com as disciplinas pode levar à multi, inter ou transdisciplinaridade.
Num projeto multidisciplinar, as disciplinas caminham em paralelo mas sem interagirem. Esse é um dos tipos mais comuns de ciência, em que o pesquisador faz uma pergunta dentro de sua disciplina de especialidade e realiza experimentos e/ou observações para respondê-la.
Na interdisciplinaridade, disciplinas diferentes interagem entre si. A bioquímica provavelmente começou quando os químicos se interessaram em estudar as moléculas orgânicas e viram que havia uma dinâmica toda especial nos seres vivos. Outro exemplo: para desenvolver a biologia molecular, foi necessário usar conhecimentos da física, da química e de vários ramos da biologia (zoologia, botânica, ecologia).
A característica principal da interdisciplinaridade, como seu nome dá a entender, é promover a interação entre disciplinas e gerar algo novo, uma propriedade emergente que não existiria se não tivesse havido a interação. Consequentemente, nesse caso, a novidade emerge de uma tensão que leva ao preenchimento de uma lacuna existente entre as disciplinas. Essas zonas de tensão podem servir para o pesquisador encontrar novos problemas sem solução e transformá-los em linhas de pesquisa originais.
A chamada ?ciência normal? ou ?ciência do modo 1? tem usado essa abordagem para avançar e preencher tudo com novos conhecimentos. É como um quebra-cabeças gigante que começa a ser montado em várias regiões diferentes da figura, a partir de peças que à primeira vista não apresentam nenhuma ligação entre si. Os espaços vão sendo gradativamente preenchidos até que as inter-relações entre os diferentes elementos da figura mostrem algo mais complexo.
Mas a ciência aparentemente não para por aí. Alguns autores acreditam que ela está mudando gradativamente ?do modo 1? para o ?modo 2?. Ou seja, para a ciência transdisciplinar, uma abordagem em que o problema a ser resolvido não é circunscrito a uma única disciplina, mas a várias. Quando a pesquisa trabalha de forma interdisciplinar para resolver um problema que se tornou uma demanda da sociedade, estamos fazendo a ?ciência do modo 2?. As mudanças climáticas são um exemplo desse novo jeito de fazer pesquisa. A elevação na temperatura global foi descoberta pelos cientistas. O tema virou assunto de Estado e se tornou uma grande demanda da sociedade. E, agora, juntando o saber de várias disciplinas, os pesquisadores tentam frear o aquecimento global.
A Europa já vem se movendo nessa direção há algum tempo e existem discussões bastante profundas sobre o assunto. Mas nem sempre projetos que se dizem transdisciplinares o são realmente. Não basta simplesmente achar um problema e convidar colegas de áreas diferentes para realizar pesquisa sob os seus pontos de vista e depois escrever um relatório com itens separados. Para ser transdisciplinar, é preciso fazer um verdadeiro sopão da sexta, com os restos da comida deliciosa que comemos no meio da semana. O sopão é um prato em si, com características próprias, distintas dos antigos sabores que caracterizavam as sobras das receitas que, misturadas, lhe deram origem.
Humm, não vejo a hora de chegar a sexta.
Referências
Zierhofer, W. And Burger,P. 2007. Disentangling Transdisciplinarity: an analysis of knowledge integration in problem-oriented research. Science Studies 20 vol 1:51-74.
Repko, A.F. 2008. Interdisciplinary Research: Process and Theory. Sage Publications Inc. 416p.
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