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resenha

Uma vida na arena da ciência

Desafiando fronteiras – Trajetória de vida do cientista José Israel Vargas | Lígia Maria Leite Pereira | Editora UFMG, R$ 30,00, 447 páginas

Resenha_Desafiandoléo ramosA biografia de José Israel Vargas, ministro da Ciência e Tecnologia (MCT) entre 1992 e 1999 e embaixador do Brasil na Unesco, é leitura proveitosa para quem se interessa pela história da ciência no Brasil na segunda metade do século XX e seus bastidores. Escrita pela socióloga Lígia Maria Leite Pereira, a obra tem como fonte principal as memórias de Vargas colhidas em mais de 30 horas de gravação, além de discursos e entrevistas do pesquisador. O tom, às vezes, é o de um monólogo, com longos trechos entre aspas. Pela narrativa do cientista nascido em Paracatu (MG), em 1928, passeiam seus professores e alunos, familiares, cientistas brasileiros e estrangeiros, e políticos, em episódios que reconstituem mais de oito décadas da vida do cientista mineiro e da ciência brasileira.

Na primeira parte do livro, Vargas rememora a infância em Paracatu, onde a família tinha negócios nos transportes e na mineração; a adolescência em Belo Horizonte, onde foi estudar num colégio de elite com grande esforço dos pais; e a decisão de estudar química, e não engenharia como sonhava a família. O início da trajetória científica aconteceu na graduação da Faculdade de Filosofia da então Universidade de Minas Gerais, com um período de dois anos de estudo na Universidade de São Paulo. Vargas logo se encantou pela pesquisa nuclear, campo em que se doutorou em Cambridge. Como professor da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), ajudou a formular a política nuclear brasileira no início dos anos 1960, atuação interrompida após a deposição de João Goulart. Com o fim do regime militar, retomou a influência: em 1985 ele presidiu a Comissão Vargas, avaliação do programa nuclear solicitada pelo presidente José Sarney.

Transferiu-se para Grenoble, na França, como pesquisador do Centro de Estudos Nucleares do Comissariado de Energia Atômica, onde se dedicou à pesquisa por seis anos e meio. De volta ao Brasil em 1971, logo seria requisitado para colaborar com as políticas modernizadoras do governo militar. Reassumiu a cátedra na UFMG e, indicado por Celso Furtado, foi convidado por José Pelúcio Ferreira, presidente da Financiadora de Estudos e Projetos (Finep), a trabalhar como consultor do órgão. A ascensão de Aureliano Chaves ao governo mineiro, em 1974, levou-o à presidência da Fundação João Pinheiro e, dois anos mais tarde, ao comando da Secretaria de Ciência e Tecnologia de Minas Gerais. Em 1979, chegou a Brasília, para assumir a Secretaria de Tecnologia Industrial do Ministério da Indústria e Comércio. Em paralelo, tornou-se vice-presidente da Academia Brasileira de Ciências (1981-1995).

Vargas foi o mais duradouro ministro da Ciência e Tecnologia do país. Foi escolhido para o cargo por Itamar Franco em 1992 e o deixou em 1999, ao final do primeiro mandato de Fernando Henrique Cardoso. O curioso é que se opusera à criação da pasta em 1985. Seu argumento: a gestão da ciência é importante demais para disputar verbas com outros ministérios e, por isso, deveria estar ligada à Presidência da República. Teve papel importante na consolidação do MCT, que havia sido ocupado por nove nomes diferentes em sete anos de existência. Com Itamar, Vargas investiu dinheiro das privatizações em projetos que já estavam em gestação, como o Laboratório Nacional de Luz Síncrotron. A passagem pelo MCT mostra a sua influência na formulação de iniciativas hoje consolidadas, como o programa de cooperação espacial com a China, a implantação da Comissão Técnica Nacional de Biossegurança e do Centro de Previsão do Tempo e Estudos Climáticos, em Cachoeira Paulista (SP).

Em 2000, foi escolhido embaixador brasileiro na Unesco, o braço das Nações Unidas para Educação, Ciência e Cultura. A atuação diplomática não era estranha a Vargas, que no início dos anos 1960 participara de missões brasileiras na Agência Internacional de Energia Atômica, em Viena, e estivera durante sete anos no conselho executivo da própria Unesco, que presidiu entre 1987 e 1989. Sempre manteve os laços com Minas Gerais. Professor aposentado da UFMG, segue orientando alunos de iniciação científica. Na parte final do livro, em que são transcritos depoimentos de colegas e familiares, o perfil de Vargas se completa. Emerge o cientista com algo de imperial, daqueles que conseguem mobilizar, com naturalidade, um entourage de seguidores em torno dos muitos projetos a que se dedicou; o homem de cultura vasta e grande memória; e o pai carismático, que incutiu o gosto pela ciência em suas três filhas, pesquisadoras e professoras universitárias.

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