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Medicina

Valores humanos

O urologista Miguel Srougi, autor de 4 mil cirurgias, se empenha em melhorar as instituições em que trabalha

O cirurgião Miguel Srougi:  admiração dos colegas, alunos e pacientes

Léo RamosO cirurgião Miguel Srougi: admiração dos colegas, alunos e pacientesLéo Ramos

Quem passasse pela rua Urano na primeira metade dos anos 1960 talvez escutasse o som de um rádio ligado em alto volume que saía de uma das casas do tranquilo bairro paulistano da Aclimação. Dentro da residência, debruçado sobre livros e cadernos, um jovem assoviava e ouvia música enquanto fazia a revisão das disciplinas que estudava. O que à primeira vista poderia parecer displicência era a demonstração de uma profunda capacidade de concentração do então estudante Miguel Srougi, que tirava sempre a nota máxima no Colégio Santo Agostinho, no bairro da Liberdade.

Quase 50 anos depois, o agora médico e pesquisador continua com a mesma capacidade de concentração que permite a ele realizar cinco cirurgias num único dia sem complicações posteriores. O urologista Miguel Srougi tem cerca de 4 mil operações realizadas em câncer de próstata em 42 anos de carreira. Há apenas outro cirurgião no mundo com um número maior, o norte-americano Patrick Walsh, que foi quem desenvolveu a cirurgia preservadora de nervos em 1979, procedimento que evita a impotência e a incontinência urinária na maioria dos casos. “Realizo grande número dessas intervenções porque quando iniciei ela não era executada no Brasil. O tempo me lapidou, as taxas de sucesso cresceram e o mito, merecidamente ou não, se propagou”, diz o brasileiro. Nos homens mais velhos o risco dessas complicações é um pouco maior, mas nos mais jovens a impotência caiu de 100% para 15% e a incontinência de 35% para 2%.

Srougi em Harvard, entre 1976 e 1977

Arquivo FamiliarSrougi em Harvard, entre 1976 e 1977Arquivo Familiar

“Miguel é o melhor cirurgião de todos nós e o melhor urologista que conheço”, diz José Cury, também urologista, coordenador da graduação médica da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FMUSP) e do laboratório de sexualidade do Hospital das Clínicas (HC). “Ele tem enorme credibilidade e não é por acaso que o PIB do Brasil passa pelas suas mãos.” Cury refere-se aos empresários das grandes companhias que geram boa parte do Produto Interno Bruto brasileiro e aos políticos influentes de todos os partidos que são ou já foram tratados por Srougi.

O médico paulistano formou-se na FMUSP em 1970. Fez residência médica, especialização em cirurgia e passou dois anos na Universidade Harvard, nos Estados Unidos, se aprimorando em urologia. Na volta, doutorou-se na USP, mas decidiu não ficar na instituição. “Achei que não havia lugar para mim aqui na época e aceitei o convite do empresário Antônio Ermírio de Moraes para montar um serviço de urologia no Hospital da Beneficência Portuguesa”, conta Srougi. Anos depois foi chamado a prestar concurso para professor titular da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp).
O período na Unifesp, de 1996 a 2005, foi especialmente importante para o cirurgião. “A medicina da Unifesp é carente de recursos e quase abandonada pelos órgãos que deveriam apoiá-la economicamente. Mas tem profissionais muito qualificados, com um espírito institucional admirável”, diz. “Foi lá que aprendi os valores verdadeiros da academia.” Por que, então, a volta para a FMUSP? O cirurgião conta que foi por uma questão de raízes, por ter sido formado e crescido na instituição.

No concurso para titular da FMUSP, em 2005

Arquivo FamiliarNo concurso para titular da FMUSP, em 2005Arquivo Familiar

O retorno gerou mudanças importantes na urologia da FMUSP e do HC a partir de 2005, quando Miguel Srougi se tornou professor titular na sua casa de origem. Com características pessoais voltadas para pesquisa, ensino e clínica, o cirurgião diz não ter nenhum pendor para cargos administrativos. “Antes falávamos em pesquisa, ensino e assistência. A esses se agregou também a capacidade de gestão”, informa Srougi. “Ora, os grandes líderes em medicina não conseguem exercer essas quatro atividades com a mesma competência, é impossível.” O atual secretário estadual de Saúde, ex-diretor do HC e também professor da FMUSP Giovanni Guido Cerri elogia não só o médico, mas também o talento administrativo que Srougi diz não ter. “Ele tem sim essas características. Sabe utilizar o prestígio profissional para investir e administrar projetos, mas acima de tudo é um grande urologista”, afirma o secretário.

O cirurgião diz ter suas preferências: o ensino da medicina e o atendimento aos pacientes. “Formar novos médicos com valores para exercer uma medicina humanizada é inebriante”, diz ele. Como atua intensamente na área de câncer urológico, operando no HC e em hospitais privados, passa muitas horas por semana se atualizando. Mas ainda há muito do que cuidar: os muitos doentes do HC, os alunos da graduação e da pós-graduação, os residentes e o laboratório. Para dar conta de tudo é preciso da ajuda de outros profissionais.

Miguel Srougi operando

Arquivo FamiliarMiguel Srougi operandoArquivo Familiar

No retorno à USP, Srougi chamou a patologista Kátia Leite, então no Hospital Sírio-Libanês, para chefiar o LIM 55, um dos laboratórios de investigação médica do HC, dedicado à pesquisa. Até voltar para FMUSP, ele tinha quase 130 trabalhos indexados no PubMed. Nos últimos sete anos, esse número subiu para 370. A mudança se deve à produtividade do LIM comandado por Kátia desde 2006. Foram cerca de 40 trabalhos publicados por ano nos últimos seis anos pelo grupo de urologia, num total de 240 artigos indexados. “Sem contar livros, capítulos e apresentações em congressos”, diz.

Kátia Leite conhece Miguel Srougi desde quando era aluna da FMUSP. Se reencontraram na primeira passagem dele pelo Sírio-Libanês, em 1988. Depois Srougi ficou por dois anos no Hospital Alemão Oswaldo Cruz, onde criou o Instituto da Próstata, e voltou para o Sírio. Posteriormente, instada por Srougi, Kátia fez o doutorado na Unifesp. Na USP, quando se tornou responsável pelo LIM, ela e o grupo de pesquisadores da urologia começaram a montar um banco de tumores de próstata, atualmente um dos maiores do mundo, para investigação científica utilizando técnicas moleculares.

Com a nora Karin, a esposa, Iara, e os filhos Victor e Thomaz em Aspen, nos Estados Unidos

Arquivo FamiliarCom a nora Karin, a esposa, Iara, e os filhos Victor e Thomaz em Aspen, nos Estados UnidosArquivo Familiar

Kátia atribui a mudança e a consequente produtividade do laboratório à mentalidade de Srougi. “Ele é altamente estimulante, a qualidade principal do líder. Valoriza a ação das pessoas e ajuda sempre. É um facilitador que não tenta competir”, relata. Segundo ela, o brasileiro faz parte de uma elite mundial de cirurgiões e pesquisadores que contribuí-ram para o entendimento do câncer de próstata e conseguiram aumentar a taxa de sucesso das cirurgias, como Patrick Walsh, Peter Scardino e William Catalona.

A intensa atuação do médico elevou o parâmetro de ensino na sua área dentro da Faculdade de Medicina, onde há critérios internos de avaliação de cursos. Há dois anos a urologia tinha 16% de ótimo e bom na opinião dos alunos de graduação. Hoje tem 100%: 94% ótimo e 6% bom. Na pós-graduação a melhora foi menos espetacular, mas também sensível. “Quando cheguei aqui nossa pós-graduação tinha nota 3 menos na Capes. Em um ano e meio pulamos para 5 – o máximo é 7 – e na última avaliação passamos para 6”, diz Srougi, envaidecido. Isso levou o curso a ficar entre os três únicos programas de pós-graduação em cirurgia com nota 6 no Brasil.

Durante a graduação, em 1967 (no centro da foto)

Arquivo FamiliarDurante a graduação, em 1967 (no centro da foto)Arquivo Familiar

Ao sucesso como cirurgião Srougi aliou outra qualidade, rara em qualquer profissão. Ele se tornou um habilidoso captador de recursos utilizados em obras de melhoria dentro das instituições que trabalha. No período da Unifesp, por exemplo, conseguiu R$ 2,8 milhões de empresários para reformar as enfermarias do Hospital São Paulo, vinculado à universidade, e cerca de R$ 13 milhões do governo federal, para apoio à instituição.

No HC vem ocorrendo o mesmo. Em outubro de 2011, com apoio de Aloysio Faria, do Banco Alfa, ficaram prontas duas novas salas cirúrgicas e uma enfermaria humanizada, que custaram R$ 8 milhões. As duas salas são as mais modernas da América Latina, equipadas com aparelhos suspensos por braços mecânicos, equipamentos de raios X, laser e microscópios acoplados às mesas de cirurgia, por exemplo. O sistema de comunicação poderá transmitir uma operação para todos os anfiteatros da instituição e via internet, o que permitirá a um médico no exterior ver a cirurgia em tempo real e opinar em casos complexos. Há um pequeno anfitea-tro, separado das salas por vidro, para os alunos e residentes terem aulas e cursos.

O urologista em uma das novas salas de cirurgia do HC, construídas com dinheiro de doação

Arquivo FamiliarO urologista em uma das novas salas de cirurgia do HC, construídas com dinheiro de doaçãoArquivo Familiar

“Isso tudo foi feito para os pacientes carentes, que mal conseguem chegar ao hospital por falta de recursos”, lembra o urologista José Cury. As salas serão usadas para cursos de aperfeiçoamento por todas as disciplinas de cirurgia do HC. Em outubro de 2011, apenas na urologia havia uma fila de 892 doentes à espera de vaga para serem operados. Destes, 140 eram crianças e 50 tinham câncer. “Na urologia contamos com cerca de 50 cirurgiões altamente qualificados”, diz Srougi. “Hoje fazemos 300 operações por mês e pretendemos executar mais 150 intervenções mensais.”

Srougi fez muitas reformas com dinheiro de doações no HC. Nas salas e enfermarias da urologia, na Associação Atlética dos alunos, na escola municipal frequentada pelos filhos dos funcionários do hospital e no LIM, entre outros lugares. Para ajudar os alunos sem recursos, Srougi reformou a Casa do Estudante ao conseguir reunir 18 doadores – e ele foi um deles –, que deram cada um R$ 180 mil. A casa estava em péssima situação, com apenas dois banheiros, e alojava 30 alunos e alunas. Dos 1.200 estudantes da FMUSP, pelo menos 100 apresentam dificuldade material para se instalar em São Paulo. “Em 2007 gastamos mais de R$ 3 milhões na reforma e construímos biblioteca, lavanderia, salas de almoço, salas de convivência e de estudos, jardim. Agora são 26 quartos com computador e banheiro para 52 alunos que são selecionados na USP.” Srougi usa parte das doações que consegue também para dar bolsas para residentes e membros da instituição se aperfeiçoarem no exterior.

Casa do Estudante da FMUSP, reformada em 2007

Eduardo CésarCasa do Estudante da FMUSP, reformada em 2007Eduardo César

Qual a mágica para conseguir dinheiro dos empresários? “Nada torna uma relação humana mais forte quando se consegue resgatar uma pessoa para a vida, sem envolvimento material. Esse tipo de relação cria cumplicidade e confiança”, diz ele. “As pessoas que têm recursos e que me privilegiam com seu apoio sabem que nossos projetos irão melhorar o nosso entorno.” O amigo de infância Nelson Cury, industrial conhecido como Diné, confirma: “Quando o Miguel levanta a mão todos acorrem porque sabem que ele vai usar bem o dinheiro”. Diné é um dos velhos amigos da rua Urano, no bairro da Aclimação. “As pessoas querem retribuir o carinho e a competência com que foram tratadas.”

Outro amigo do tempo de colégio, Valentim Gentil Filho, do departamento de psiquiatria da FMUSP e do Instituto de Psiquiatria do HC, tem opinião semelhante. Ele conta que os pacientes são apaixonados pelo urologista. “Convivo socialmente com ele e as pessoas fazem questão de dizer que são pacientes do Miguel, não importa se são muito ricas ou muito pobres”, diz Gentil.

Srougi com docentes da Unifesp, em 2000

Arquivo FamiliarSrougi com docentes da Unifesp, em 2000Arquivo Familiar

A vida familiar de Miguel Srougi parece tão bem-sucedida quanto a profissional. Casado com Iara, filósofa de formação, tem dois filhos. Thomaz é economista pós-graduado pela Universidade de Chicago. Victor é residente da FMUSP. “Ele dizia que não queria se aproveitar do meu nome e que faria cirurgia plástica. Só decidiu pela urologia no último dia”, conta Srougi. A urologia é a mais disputada entre as 11 disciplinas cirúrgicas – no ano passado, dos 36 candidatos à residência, 18 a queriam. Havia apenas seis vagas. Victor competiu e ganhou. “Ele comemorou mais do que quando entrou na faculdade. Ficou oito anos me enganando”, diz o cirurgião. “Mas eu também o enganava”, revela com um sorriso. “Eu sempre disse para ele que não ligaria se optasse pela cirurgia plástica.”

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