As doenças e os medos sociais é um livro que merece ser lido, consultado e indicado. Organizado por Yara Nogueira Monteiro, pesquisadora do Instituto de Saúde (SES-São Paulo), e pela professora Maria Luiza Tucci Carneiro (FFLCH-USP), a obra é uma coletânea de 16 artigos distribuídos em quatro seções. Produzida por pesquisadores de diferentes instituições, a edição compõe o catálogo da Editora Fundação de Apoio da Universidade Federal de São Paulo (FAP-Unifesp).
O livro é resultado de um seminário promovido em 2009 pelo Laboratório de Estudos sobre Etnicidade, Racismo e Discriminação da Universidade de São Paulo (LEER-USP) – centro multidisciplinar de pesquisa criado em 2005 que se organiza em torno de diferentes núcleos. O Núcleo de Estudos sobre Discriminação promoveu o seminário que originou o livro. Com o propósito de relacionar as doenças, os aparatos de saúde, as intervenções estatais e paraestatais com o preconceito e a discriminação oriundos do temor provocado pela disseminação e contágio de males desconhecidos – ou insuficientemente controlados –, a obra reproduziu e ampliou a participação dos pesquisadores naquele seminário.
Em razão do formato original, a publicação não oferece um tratamento estrito dos medos sociais relacionados com as doenças, mas um conjunto de proposições analíticas que convergem ou tangenciam a temática anunciada. A diversidade e amplitude de autores asseguram a variedade dos temas e das abordagens, mas evidenciam também uma acentuada assimetria na densidade dos artigos. A transposição imprimiu certa ambiguidade e tensão ao resultado. Ainda que a obra em seu conjunto mantenha relevância e interesse, alguns capítulos teimam em escapar da temática proposta em direção às áreas de pesquisa nas quais os autores firmaram suas trajetórias acadêmicas.
A ambiguidade mencionada pode ser verificada pela presença de conteúdos que não são exatamente inéditos, mas que, ainda assim, propiciam releituras pertinentes e bem-vindas. Para acomodar capítulos que não tratam exatamente dos medos e das doenças, mas de questões paralelas e relevantes para a pesquisa em saúde, as organizadoras adotaram recursos engenhosos na edição do material. Destinaram a última seção Fontes para a História das Doenças aos artigos que identificam e discutem instituições, acervos e projetos relacionados com a institucionalização e disponibilização de documentos para a pesquisa na área da medicina, saúde, instituições e práticas médicas, de cura e cuidado.
Em meio a artigos de grande interesse, entre os quais a excelente abordagem de Ana Maria Galdini Raimundo Oda, que traça o percurso do banzo no capítulo “Escravidão e nostalgia no Brasil: o banzo”, emergem aspectos que, se não comprometem, de certo modo fragilizam a qualidade do conjunto. Trata-se, no caso, da ausência de imagens nos dois capítulos inseridos na parte inicial do livro, O Imaginário sobre a doença. Ambos constroem suas análises a partir de objetos imagéticos: a charge e as artes visuais na expressão de ex-votos e da pintura de A virgem e o menino. Nos capítulos “Doença e medo: charges, sentidos e poder na sociedade midiática”, de Nilson Alves de Moraes, e “Arte e doença: imaginário materializado”, de Maria Izabel Branco Ribeiro, os leitores são privados da substância que compõe a análise, ou seja, as imagens. A omissão se torna uma lacuna praticamente imperdoável quando se confrontam a qualidade geral da edição e o ótimo projeto gráfico desenvolvido.
As organizadoras foram hábeis na caracterização das seções que subdividem a coletânea. Além das partes mencionadas, encontram-se ainda as seções Doenças e medos na formação da sociedade brasileira e A difusão dos medos. Ao longo das subdivisões, se alinham trabalhos com novas temáticas, como o capítulo do experiente historiador José Carlos Sebe Bom Meihy, “O caminho do medo: apagamento das raízes brasileiras do debate sobre o tabaco”. Outros pesquisadores igualmente experientes retomam seus repertórios de pesquisa, como Cláudio Bertolli, André Mota, Rita de Cássia Marques, Beatriz Kushnir e Yara Maria Aun Khoury. Amparados pela competência habitual, atualizaram ou amplificaram suas abordagens e contribuíram para qualificar a obra como referência no campo da história social da saúde, da medicina, da cura e do cuidado.
Maria Gabriela S.M.C. Marinho é doutora em história social e docente da Universidade Federal do ABC (UFABC), onde coordena o Núcleo de Ciência, Tecnologia e Sociedade. Atua também como pesquisadora associada do Museu Histórico da Faculdade de Medicina da USP.
Republicar