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Memória

Veteranos do Projeto Nióbio tentam resgatá-lo do esquecimento

Há 45 anos, pesquisadores e técnicos começaram a desenvolver tecnologia nacional para a produção do metal em Lorena (SP)

Lingotes de nióbio metálico guardados na EEL em 2019

Léo Ramos Chaves / Revista Pesquisa FAPESP

Quando o engenheiro e físico baiano José Walter Bautista Vidal (1934-2013) saiu em busca de gente capaz de executar um ambicioso programa de desenvolvimento tecnológico concebido pelo governo brasileiro em 1978, o engenheiro Daltro Garcia Pinatti (1940-2021) pareceu a pessoa certa para a missão. Ele era professor do Instituto de Física da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e se dedicava desde 1973 a pesquisas sobre nióbio, um metal maleável, brilhante e versátil.

Entre 1978 e 1991, o engenheiro liderou o Projeto Nióbio, cujo objetivo era desenvolver tecnologia nacional para a produção de nióbio metálico. A empreitada consumiu milhões de dólares do governo federal e de empresas privadas, e mobilizou mais de uma centena de pesquisadores e técnicos num galpão na zona industrial de Lorena, no interior de São Paulo. Pouco conhecido até entre especialistas, o projeto faz parte das origens da Escola de Engenharia de Lorena (EEL), que hoje é uma das unidades da Universidade de São Paulo (USP) e comemorou em agosto os 45 anos do início da aventura.

Acervo do Departamento de Engenharia de Materiais / EEL / USPRosa Conte e Pinatti com um forno de fusão por feixe de elétrons, em 1980, durante visita à empresa Leybold-Heraeus, em Hanau, na AlemanhaAcervo do Departamento de Engenharia de Materiais / EEL / USP

O trabalho contribuiu para que a Companhia Brasileira de Metalurgia e Mineração (CBMM), empresa que controla os maiores depósitos de nióbio do mundo em Araxá (MG), dominasse a tecnologia de produção do nióbio metálico, usado na fabricação de fios supercondutores para tomógrafos, aparelhos de ressonância magnética e outras aplicações. “Nossa missão era desenvolver uma planta-piloto e transferir a tecnologia para a indústria”, diz a física Rosa Ana Conte, que foi aluna de Pinatti na graduação e na pós-graduação na Unicamp, participou do Projeto Nióbio desde o começo e hoje leciona em Lorena. “Fizemos a nossa parte.”

Formado na Escola de Engenharia de São Carlos (EESC) da USP em 1964, Pinatti fez o mestrado e o doutorado na Universidade Rice, no Texas, nos Estados Unidos, no fim da década de 1960. O aprendizado foi decisivo para o êxito do Projeto Nióbio. Em Rice, ele tinha um forno de fusão por feixe de elétrons, à disposição para pesquisar as propriedades do molibdênio e ligas para aplicações em altas temperaturas.

O equipamento era utilizado para refinar o metal e obter amostras com elevado grau de pureza, o que aumentava a resistência do material e sua utilidade para aplicações especiais como, por exemplo, o escudo de proteção térmica da cápsula desenvolvida pelo programa espacial norte-americano para a primeira viagem tripulada à Lua. No Brasil, Pinatti conseguiu que a Unicamp comprasse um forno semelhante para seu laboratório no Instituto de Física, importado da fabricante alemã Leybold-Heraeus, para pesquisas com metais especiais.

O equipamento chegou em 1974 e Pinatti o usou para desenvolver um novo processo de refino do nióbio, aplicando o conhecimento adquirido nos experimentos com o molibdênio. Até então, a rota tradicional para a produção de materiais como o nióbio metálico envolvia processos químicos muito dispendiosos. Com o forno alemão, Pinatti conseguiu substituí-los por um processo físico, em que as altas temperaturas geradas pelos feixes de elétrons no interior da máquina produzissem efeito semelhante, só que a um custo muito menor.

Léo Ramos Chaves / Revista Pesquisa FAPESPApós 45 anos, alguns dos pesquisadores e técnicos que participaram do Projeto Nióbio: Sebastião Ribeiro, Rodolfo José Lopes, Rosa Conte, Carlos Roberto Dainesi e Antonio Sartori (da esquerda para a direita)Léo Ramos Chaves / Revista Pesquisa FAPESP

Desperdício da riqueza
O pesquisador levou alguns anos para desenvolver a técnica e alcançar os primeiros resultados no laboratório da Unicamp, mas não demorou para que seu caminho cruzasse com o de Bautista Vidal. Chefe da Secretaria de Tecnologia Industrial do Ministério da Indústria e do Comércio no governo do general Ernesto Geisel (1974-1978), o físico baiano coordenava iniciativas para reduzir a dependência do Brasil de petróleo importado, adquirir tecnologias que o país não dominava e buscar autonomia em áreas consideradas estratégicas.

Quando o assunto era o nióbio, Pinatti e Bautista Vidal compartilhavam o diagnóstico de que o Brasil aproveitava mal suas enormes reservas, limitando-se a exportar minério bruto extraído da terra em vez de produtos que agregassem valor ao metal e criassem nichos de mercado. “Basicamente, nós exportávamos terra com nióbio, e isso não fazia sentido”, explica o físico Antonio Fernando Sartori, outro ex-aluno que trabalhou com Pinatti na Unicamp e em Lorena e continuou dando aulas na EEL após o fim do projeto. “Era um desperdício da riqueza que possuímos.”

A equipe de Pinatti na Unicamp conseguiu produzir várias amostras na forma de pequenos lingotes, cilindros maciços com 25 centímetros (cm) de comprimento, 5 cm de diâmetro e 4,2 quilos (kg) de peso. Em 1978, Bautista Vidal levou o material à Alemanha para submetê-lo a testes de qualidade. As análises comprovaram que as amostras produzidas pelos cientistas brasileiros tinham elevada pureza e convenceram os alemães a firmar um acordo de cooperação com a secretaria de Vidal para desenvolver a tecnologia em escala-piloto.

Léo Ramos Chaves / Revista Pesquisa FAPESPForno de fusão e refino por feixe de elétrons utilizado nos anos 1980 e 1990, em LorenaLéo Ramos Chaves / Revista Pesquisa FAPESP

Pinatti ia precisar de um forno maior, um local adequado para sua instalação e dinheiro para financiar obras e contratar pesquisadores e técnicos. A solução encontrada foi abrigar o projeto sob o guarda-chuva de uma fundação privada, que poderia receber recursos públicos e de empresas e teria a flexibilidade necessária para viabilizar o empreendimento, sem as amarras da burocracia federal. Para agilizar o processo, o Ministério da Indústria e do Comércio assumiu o controle de uma fundação municipal que geria a Faculdade de Engenharia Química de Lorena, que enfrentava dificuldades financeiras, e rebatizou-a de Fundação de Tecnologia Industrial (FTI), em 1978.

Bautista Vidal usou arranjo semelhante para outros projetos. O que recebeu maior volume de recursos foi o Proálcool, que incentivou a produção de álcool combustível e o desenvolvimento de novos motores para automóveis. “Tecnologia é poder”, disse o físico baiano em 1996, em depoimento a pesquisadores do Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil (CPDOC), da Fundação Getulio Vargas (FGV). “Quando assumi, ocupava duas salas próximas ao gabinete do ministro. Quando saí, [a secretaria] estava instalada em um prédio de 12 andares.”

O grupo Peixoto de Castro, que fabrica tubos de aço em Lorena e tem negócios na indústria química, doou o terreno e forneceu estruturas metálicas para sustentar as instalações do Projeto Nióbio. A Companhia Siderúrgica Nacional e a Companhia Ferro e Aço de Vitória, que eram estatais na época, doaram parte do aço usado na construção. A obra só acabou um ano após a chegada do novo forno, construído pela Leybold-Heraeus de acordo com instruções de Pinatti. O equipamento custou cerca de US$ 1 milhão, o equivalente a US$ 3,5 milhões em dinheiro de hoje, segundo o engenheiro Carlos Alberto Baldan, que dirigiu a FTI e trabalhou com Pinatti do início do projeto até 2018.

Simone Colombo/EEL/USPEm 2008, o Departamento de Engenharia de Materiais da EEL homenageou PinattiSimone Colombo/EEL/USP

Os dois canhões de elétrons do forno tinham potência de 300 quilowatts, consumindo energia equivalente à que seria necessária para manter 100 chuveiros elétricos ligados simultaneamente. Uma bomba de vácuo com capacidade para extrair do interior do forno 18 mil litros de ar por segundo garantia o ambiente adequado para a purificação do metal. Uma torre de refrigeração foi construída ao lado do galpão para garantir volume de água suficiente para resfriar o material produzido pela máquina. O equipamento fabricava lingotes maiores, com 1,2 metro (m) de comprimento, até 13 cm de diâmetro e peso de 136 kg, e tinha capacidade para refinar 20 toneladas de metal por ano.

A CBMM foi o maior cliente do projeto de Lorena. Fundada pela família Moreira Salles em 1955, a companhia investiu pelo menos US$ 3,5 milhões nos projetos desenvolvidos com a FTI na década de 1980, de acordo com um relatório da empresa preservado pelo Arquivo Nacional, ou quase US$ 10 milhões em valores atualizados. Seus contratos previam, além dos serviços de refino do nióbio, treinamento para funcionários da companhia e assistência técnica por cinco anos depois que a CBMM adquirisse seu próprio forno. Em troca, a fundação receberia 1% do faturamento dos lingotes produzidos em escala industrial.

Os recursos federais que financiaram o Projeto Nióbio se esgotaram com a crise econômica em que o país afundou na década de 1980, e o arranjo institucional precário que sustentava a FTI começou a chamar a atenção do Tribunal de Contas da União com o fim do regime militar, em 1985. O fluxo de verbas foi interrompido em 1990, a fundação municipal foi extinta e o governo do estado de São Paulo acabou absorvendo a escola de engenharia no ano seguinte, abrindo caminho para sua incorporação à USP. “Ficamos cinco meses sem salários, no limbo, até que se encontrasse uma solução”, lembra a física Conte.

Léo Ramos Chaves / Revista Pesquisa FAPESPGalpão que abriga maquinário e equipamentos utilizados na produção do nióbio metálicoLéo Ramos Chaves / Revista Pesquisa FAPESP

O último contrato da CBMM com os pesquisadores de Lorena expirou em 1995, sem que houvesse renovação. O forno de Pinatti continuou funcionando por algum tempo após o fim do Projeto Nióbio, atendendo encomendas de indústrias e institutos de pesquisa até ser desativado no início dos anos 2000. O equipamento continua montado em seu galpão, mas não há como colocá-lo em operação sem trocar o sistema eletrônico de controle e religar linhas de alta tensão. “Ele ficou ultrapassado”, diz Rodolfo José Lopes, técnico da escola que trabalhou na manutenção do forno desde sua chegada.

Boa parte da documentação do projeto se perdeu com os solavancos sofridos pelos pesquisadores de Lorena. O Departamento de Engenharia de Materiais da escola guarda papéis e fotografias antigas, mas até hoje não conseguiu organizar o material adequadamente. No ano passado, quando a USP abriu um processo para a seleção de projetos de preservação de acervos históricos das suas unidades, os veteranos do Projeto Nióbio pediram recursos para resgatar a história do empreendimento e criar um memorial no galpão de Lorena, mas o pedido não foi aprovado.

A CBMM seguiu com seu próprio projeto e, no ano passado, faturou R$ 11 bilhões e obteve lucros de R$ 4,5 bilhões. A maior parte das suas receitas vem das exportações de ferro-nióbio, liga usada pelas siderúrgicas para fabricar aços mais resistentes. Sua planta industrial tem capacidade para produzir 270 toneladas de nióbio metálico por ano, mas as vendas de produtos especiais como esse representam menos de um décimo do faturamento total. Os Moreira Salles, que também são acionistas do Itaú Unibanco, continuam no comando do negócio, e agora têm empresas japonesas, coreanas e chinesas como sócias. Elas estão organizadas em dois consórcios, cada um com 15% das ações.

A companhia prevê investir neste ano R$ 300 milhões em pesquisa e desenvolvimento, o equivalente a 3% do seu faturamento. Há mais de duas centenas de projetos em andamento, a maioria em parceria com institutos e universidades no Brasil e no exterior. O objetivo principal hoje é usar o nióbio para desenvolver baterias de lítio mais eficientes para carros elétricos. Não há nenhum projeto com a EEL-USP em andamento. No site da CBMM, não existe menção à contribuição que os pesquisadores de Lorena deram à companhia no passado.

Artigos científicos
MARCOMINI, J. B. e CONTE, R. A. Refino em forno de feixe de elétrons. Revista ABM Metalurgia, Materiais & Mineração. v. 71, março/abril de 2015. p. 156-9.
CASTRO, M. H. M. e SCHWARTZMAN, S. Tecnologia para a indústria: A história do Instituto Nacional de
Tecnologia
. Rio de Janeiro: Centro Edelstein de Pesquisas Sociais. 2008.
SARMENTO, C. E. B. Ciência, indústria e soberania nacional: As transformações na política tecnológica brasileira na década de 1970 – Memória e projeto. Revista História Oral, v. 2, junho de 1999. p. 153-66.

Relatório
CBMM – 30 anos no desenvolvimento tecnológico do nióbio”. Relatório enviado pela empresa ao Conselho de Segurança Nacional em 23 de setembro de 1986. Arquivo Nacional. Fundo do Conselho de Segurança Nacional, BR DFANBSB N8.0.PSN, AIC.102, p. 187-96.

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