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Vidas embrulhadas

Sem-teto de Los Angeles, São Paulo e Tóquio dão novas funções aos materiais descartados pela sociedade de consumo

Sob o sol intenso do verão de 1995, Cecília os acompanhava das nove da manhã até o final da tarde, para entender as estratégias de construção de suas casas, barracas ou tendas, com materiais descartados, sobretudo o papelão das embalagens. Conciliava as caminhadas com os cursos na Universidade da Califórnia (UCLA), para onde tinha ido com a intenção de realizar apenas levantamentos bibliográficos. Mas, convidada por instituições assistenciais, não deixou escapar a oportunidade de trabalhar e aprender com os habitantes das grandes cidades que até então lhe eram absolutamente desconhecidos.

As descobertas e as emoções que resultaram dessas investigações estão sintetizadas em 32 fotografias que a pesquisadora produziu e agora vai expor no Museu de História Cultural da própria Universidade da Califórnia, entre os dias 4 de setembro e 2 de janeiro do ano 2.000. A exposição Castoff/Outcast – Living on the Street (Restos e Marginais – Vivendo na Rua) retrata as formas de construção e de sobrevivência não apenas dos moradores de rua de Los Angeles, os homeless, mas também de São Paulo, onde ela pesquisou em seguida, e de Tóquio, cujo inverno conheceu de forma inusitada, no início deste ano, entrevistando os homeressu, como são conhecidos por lá.

Maria Cecília faz questão de frisar: não está interessada no voyerismo ou na estética da miséria, mesmo que tenha formado um acervo com cerca de 5.000 fotos ao longo desses anos de trabalho, com a finalidade de documentar construções extremamente efêmeras. Tampouco lhe atrai o estudo dos perfis psicológicos ou sociológicos dos moradores de rua, embora tenha ouvido numerosas histórias pessoais. Quer, sim, mostrar uma cultura material já integrada à arquitetura urbana e repensar o uso do espaço público, o significado dos materiais, a obsolescência dos produtos e o design.

Com sua pesquisa, intitulada Vidas Embrulhadas ou Aspectos do Design no Hábitat Informal das Grandes Cidades – São Paulo, Los Angeles e Tóquio, imagina que poderá atrair especialistas de outras áreas e despertar consciências que levem ao reconhecimento e à reintegração dos moradores de rua, negligenciados a ponto de não constarem sequer das estatísticas oficiais. Em Los Angeles, formam um grupo estimado em cerca de 30.000 indivíduos, em São Paulo, talvez cheguem a 6.000 e, em Tóquio, aproximam-se dos 8.000. Constituem, porém, grupos com hábitos e interesses próprios, além de uma engenhosidade ilimitada, como atestou este trabalho.

Criatividade
Nas três cidades que estudou, com financiamento da FAPESP, da Nihon University, da Japan Foundation e do Swedish Institute, Maria Cecília testemunhou “a transformação do nada na eterna sobrevivência.” Os moradores de rua não apenas reciclam ou reutilizam os materiais descartados pelos cidadãos comuns, mas dão a eles, principalmente às embalagens, novas funções. Placas de papelão tornam-se paredes, camas, mesas, salas de estar ou cobertores. Garrafas de refrigerante são transformadas em vasilhames de água ou utensílios de cozinha. Latas viram panelas, pratos ou funis. Móveis e os restos dos produtos industriais também ganham novas funções, e os gabinetes de geladeiras podem, por exemplo, transformar-se em carroças.

“O objeto que morreu para a sociedade de consumo é exumado, por uma necessidade de sobrevivência, e transformado em matéria-prima, com finalidades diferentes das originais”, diz a pesquisadora. “Não se trata mais de um design para proteger produtos, mas de uma espécie de antidesign, cuja principal função é servir de abrigo para frágeis vidas humanas.” Em Los Angeles, São Paulo e Tóquio, os componentes estruturais das casas que às vezes duram apenas um dia são os mesmos: papelão, plástico e latas de alumínio. São as composições que variam bastante, de acordo com as matérias-primas encontradas e a necessidade de conforto térmico e de proteção contra o vento, a chuva ou a neve.

Pode ocorrer, como num acampamento no centro de Tóquio, que os sem-teto ergam suas tendas com galhos de árvore e pedaços de plástico azul, um material bastante valorizado na arquitetura das ruas por ser flexível, resistente e isolante térmico.

“Os detalhes da construção e as junções de materiais revelam técnicas de projeto e de construção absolutamente únicas”, diz ela. Há casas móveis e outras construídas dentro de carros velhos ou até de trailers. Além de constituir a estrutura das habitações, os materiais cumprem também uma função artística, como ela verificou no Japão, onde os homeressu desenham ou pintam no papelão que reveste suas moradias, erguidas num canto da estação do metrô no centro de Tóquio, de onde foram definitivamente expulsos em fevereiro do ano passado, após um conflito que ocasionou três mortes.

Orgulho e espanto
Mais de uma vez Maria Cecília verificou que, para o morador de rua, a casa é um espaço sagrado, do qual normalmente se orgulham. “Com papelão, plásticos, panos e cobertores velhos e tudo o que encontramos no lixo, criamos um espaço aconchegante”, contou certa vez à pesquisadora uma moradora de rua em São Paulo, enquanto a convidava para conhecer a pequena cozinha montada embaixo de um viaduto. “Minha casa é meu castelo”, confessou-lhe um sem-teto no Japão. “Tenho gerador de eletricidade e televisão, e minha casa é muito bem organizada”, acrescentou. Na mesma comunidade, outro homeressu lhe dizia que preferia os plásticos brancos aos azuis, porque gostava de deixar sua casa mais iluminada – e a considerava mais confortável do que os hotéis baratos da cidade.

Maria Cecília espantou-se também com o ritmo intenso de trabalho dos sem-teto para conseguir água, alimento ou combustível, nos países de inverno rigoroso. Foi no Japão que ouviu este comentário: “Não pensem que somos preguiçosos e vivemos sempre dormindo. Se fosse assim, não nos manteríamos vivos. Sempre andamos para procurar coisas úteis. Quando não pudermos mais caminhar, morreremos.”

Em cada país, ela acredita, o crescimento da população que vive nas ruas pode ter origens específicas diferentes, mas invariavelmente se deve às mudanças políticas e econômicas deste final de século. Em Tóquio, a seu ver, associa-se com clareza à crise econômica desta década, porque era raro encontrar homeressu antes de 1994, quando a situação do país complicou. “Os moradores de rua representam as contradições e os conflitos da nossa sociedade”, diz. Eles transformam o espaço urbano: os catadores de papelão não passam mais despercebidos na paisagem urbana, empurrando carroças em São Paulo ou carrinhos de supermercado em Los Angeles ou Tóquio. Para a pesquisadora, a cultura que criaram não pode mais ser negada. “A miséria hoje está publicamente exposta nas principais cidades do mundo.”

Dúvidas e surpresas
Ir às ruas, com a roupa mais simples possível e a disposição de passar horas ouvindo os habitantes a quem normalmente se dá pouca atenção, é uma decorrência dos trabalhos anteriores de Maria Cecília, que acompanhou de perto a história da tecnologia e da habitação do Brasil neste século. Ela escreveu um livro sobre os 90 anos da Escola Politécnica da Universidade de São Paulo (USP) e em seguida o Móvel Moderno no Brasil, a partir de sua pesquisa de mestrado. No doutorado, analisou a obra de designers de móveis pioneiros no Brasil, entre eles Joaquim Albuquerque Tenreiro (1906-1922), português radicado no Rio de Janeiro. Desde que entrou nessa área, há 21 anos, porém, ela sabia: estava estudando o mobiliário da casa de classe média.

Após terminar a tese de doutoramento, em 1993, ocorreram-lhe dúvidas e descobertas inesquecíveis. Em meio aos afazeres familiares, passava de carro pelos bairros da zona Oeste de São Paulo, quando notou, jogadas pelas ruas, as peças clássicas do design brasileiro, cuja história conhecia tão bem. A princípio, não entendeu por que era descartada a tecnologia que havia custado tanto ao país. Com o tempo, a pesquisadora verificou o que acontecia: uma vez descartados, cadeiras, poltronas e bancos de designers famosos são dessacralizados, perdem o charme e o misticismo de objetos característicos de uma classe social.

Vieram mais surpresas. “Além do mobiliário, encontrei lares e seres humanos”, conta Maria Cecília. “Descobri uma outra cidade, feita de restos da sociedade de consumo.” Ela conta que visitou de 40 a 50 comunidades de rua em cada uma das três cidades, em áreas evitadas pela maioria da população. Em São Paulo, conheceu as habitações ou mocós, por exemplo, das áreas próximas ao Elevado Costa e Silva, na Praça da Sé, na região da antiga Rodoviária, e na baixada do Glicério. Antes, buscava o apoio de instituições ligadas diretamente aos moradores de rua, que lhe indicavam os elementos-chave das comunidades. “Sempre fui recebida com uma hospitalidade inacreditável”, diz. Tomava também certa precaução. Em Los Angeles, por exemplo, como o uso de drogas à noite é mais intenso, acompanhava os homeless somente durante o dia, com uma colega holandesa e duas norte-americanas.

Professorada USP desde 1998, Maria Cecília iniciou este ano uma colaboração mais intensa com pesquisadores franceses. E já faz tempo que participa de uma rede internacional de especialistas de diversas áreas que, a seu ver, consolidam uma nova área de pesquisa, que trata do morador de rua das grandes cidades. Para ela, o século XX não pode entrar na história apenas como a civilização do concreto e do vidro, mas também a do plástico e do papelão que ganham vida nova nas ruas.

Perfil
Maria Cecília Loschiavo dos Santos, 45 anos, graduou-se em 1975 em Filosofia na Universidade de São Paulo (USP), onde fez o mestrado e o doutorado na área de estética. Pesquisadora do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade de Campinas (Unicamp) entre 1996 e 1997, realizou o pós-doutoramento em estética e planejamento urbano na Universidade de Califórnia (UCLA), em Los Angeles, e em estética e design na Nihon University, em Tóquio, e é autora de diversos livros. É professora da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo (FAU) da USP.

Projeto
Aspectos do Design no Hábitat Informal das Grandes Cidades – São Paulo, Los Angeles e Tóquio. Coordenadora: Maria Cecília Loschiavo dos Santos; Investimento: R$ 13.910.

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