Nivaldo Mercúrio tinha 7 anos quando uma ambulância preta com a sigla DPL, de Departamento de Profilaxia da Lepra, parou em frente à sua casa, em um sítio em Itápolis, interior de São Paulo. Dois médicos desceram e pediram para examinar toda a família. “Descobriram que minha mãe tinha hanseníase, a antiga lepra, e dias depois voltaram para levá-la”, ele relembra, aos 88 anos, enquanto caminha pelas ruas do antigo hospital-colônia Aimorés, hoje parte do Instituto Lauro de Souza Lima, em Bauru, um dos principais centros de atendimento a pessoas com hanseníase no estado de São Paulo. “Depois os médicos pediram para que eu, meu pai e meus irmãos fôssemos para a rua e puseram fogo em nossa casa.” Em 1933, a internação compulsória e a queima da casa das pessoas com hanseníase eram as formas adotadas para evitar que outras pessoas se contaminassem com a doença, vista com forte repulsa desde os tempos medievais.
Dez anos depois, Nivaldo recebeu o mesmo diagnóstico da mãe e foi levado para Aimorés, onde vive desde então, exceto por alguns meses em que tentou trabalhar em Itápolis. Sua mãe foi levada para outro hospital e ele nunca mais a viu. Estima-se que cerca de 40 mil pessoas tenham sido separadas de suas famílias por causa das estratégias de isolamento adotadas como forma de tratar a hanseníase. O desafio agora é tentar reaproximar as famílias separadas à força. Desde 2011, uma equipe da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) trabalha com o Movimento de Reintegração das Pessoas Atingidas pela Hanseníase (Morhan), organização não governamental sediada no Rio de Janeiro, para fazer com que familiares de pessoas com hanseníase que há muito não se viam ou sequer se conheciam se encontrem.
A hanseníase é uma doença transmissível por meio do contato com secreções nasais, tosses ou espirros de pessoas infectadas. Por muito tempo conhecia-se apenas seu agente causador, a bactéria Mycobacterium leprae, identificada pelo médico norueguês Gerhard Hansen em 1873, que atinge os nervos e gera manchas esbranquiçadas ou avermelhadas na pele. Antes incerto, o tratamento hoje é simples, gratuito e eficiente, à base de sulfona e outros dois medicamentos, rifampicina e clofazimina, sem a necessidade de internações compulsórias. No entanto, o Brasil é o segundo país em número de casos da doença no mundo, atrás apenas da Índia. Em 2014, o Ministério da Saúde registrou 31.064 novos casos.
Pequenas cidades
Os hospitais-colônia, que funcionaram dos anos 1930 a 1980, eram pequenas cidades, com igreja, delegacia, presídio e prefeitura. Seus ocupantes plantavam, cozinhavam e faziam pequenas transações entre eles usando uma moeda própria, chamada lazareto, em referência aos primeiros hospitais-colônia surgidos na Ilha de San Lazzaro, perto de Veneza, na Itália, em meados do século XIII. “Uma vez internados, os doentes só saíam dos leprosários com autorização dos médicos, o que raramente acontecia”, conta a médica Lavínia Schuler-Faccini, professora da UFRGS e uma das coordenadoras do Instituto Nacional de Genética Médica e Populacional (Inagemp), sediado em Porto Alegre.
“A maioria dos que nos procuram são filhos de pessoas com hanseníase querendo encontrar os irmãos, já que os pais muitas vezes estão mortos”, diz Artur Custódio, presidente do Morhan, fundado em 1981 por ex-internos de hospitais-colônia, que hoje atende pessoas à procura de seus familiares. O trabalho integrado de médicos, historiadores, antropólogos e sociólogos permitiu às equipes de Porto Alegre e do Rio reaproximar 800 pessoas, por meio de visitas a antigos hospitais-colônia e consultas a arquivos para atestar o parentesco. “Quando as informações encontradas nos documentos não são suficientes, aplicamos o teste de DNA”, explica a bióloga Flávia Costa Biondi, da equipe da UFRGS. Pais e filhos que se reencontram, porém, raramente voltam a viver juntos. “Em geral os filhos não conseguem reconhecê-los como pais ou mães. O isolamento os fez completos desconhecidos”, diz Lavínia. Algumas histórias são dramáticas, como a de um homem que queria saber do pai internado havia décadas em um leprosário do Acre. Meses depois a equipe do Morhan o localizou, mas ele tinha morrido fazia poucas semanas.
Estima-se que 25 mil crianças tenham se tornado órfãs de pais vivos internados em hospitais-colônia, principalmente nas regiões Norte e Nordeste. As crianças que nasciam nos leprosários ou não tinham com quem ficar eram levadas para os preventórios, como eram chamados os orfanatos para filhos de pessoas com hanseníase, às vezes em outras cidades. “Os médicos diziam às mulheres que seus filhos tinham morrido no parto, quando haviam sido dados para adoção”, relata Lavínia. Em 1943, os 22 preventórios do país abrigavam cerca de 2.500 crianças, que depois eram entregues para parentes ou desconhecidos dispostos a criá-las. Não era fácil encontrar quem as adotasse, porque se temia que as crianças estivessem contaminadas e pudessem transmitir a doença.
Depois de examinar cerca de 10 mil fichas preenchidas por filhos de pessoas isoladas em leprosários do país, a equipe do Morhan verificou que muitas crianças adotadas eram forçadas a trabalhar, sofriam maus-tratos e eram discriminadas por serem filhos de pessoas com hanseníase. Por meio desses documentos, os pesquisadores também identificaram rotas de saída de crianças para adoção. “Muitas crianças do norte de Minas Gerais foram enviadas para a Itália e, do sul do Pará, por meio do Suriname, para a Holanda”, diz Custódio. Em julho, a equipe do Morhan localizou na Holanda dois irmãos, filhos de brasileiros que tiveram hanseníase e ainda estão vivos.
O projeto coordenado pela equipe da UFRGS e do Morhan inspirou-se na busca de crianças e pais desaparecidos durante o governo militar da Argentina (1967 a 1983). Estima-se que, à época naquele país, 500 crianças tenham nascido de mães presas que depois desapareceram. Em geral, elas eram integradas às famílias de militares e, às vezes, registradas como filhos biológicos dos pais adotivos. “Mas há também casos de bebês abandonados em instituições religiosas ou em esquinas de Buenos Aires”, diz a antropóloga Claudia Lee Williams Fonseca, da equipe da UFRGS.
Custódio defende que os filhos — e não apenas os pais — sejam indenizados pelo Estado brasileiro, que continuou a isolar pessoas com hanseníase até 1986, mesmo tendo assinado, em 1952, um acordo internacional comprometendo-se a interromper as internações compulsórias depois da descoberta de tratamentos eficazes para a doença. Na década de 1940, a sulfona começou a ser usada no tratamento da hanseníase no Brasil, que seguiu outros países, permitindo que as pessoas fossem tratadas apenas por meio de visitas periódicas a hospitais, não precisando mais serem isoladas. Em 2007, uma Medida Provisória aprovada pelo Congresso Nacional concedeu pensão vitalícia às vítimas da doença que continuaram a ser isoladas até 1986.
Isolamento
A internação compulsória foi adotada no Brasil como estratégia para o controle da hanseníase a partir de 1924 e ganhou força na década de 1940, durante o governo Getúlio Vargas, com o Plano Nacional de Combate à Lepra, que previa o isolamento compulsório de todos os casos confirmados e o cuidado e a educação dos filhos sadios das pessoas doentes. “Como não havia nenhum medicamento eficaz”, diz Claudia Fonseca, da UFRGS, “o isolamento das pessoas com hanseníase era considerado essencial, tornando-se mais importante que o próprio tratamento existente”.
Na década de 1920, as pessoas com hanseníase vagavam pelas ruas das cidades ou postavam-se à margem das estradas à espera de esmolas de viajantes, que os evitavam, porque se pensava que até o ar poderia estar contaminado. “Os doentes viveram em completo abandono por décadas no Brasil”, diz o médico Marcos Virmond, diretor do Instituto Lauro de Souza Lima, que atende cerca de 2 mil pessoas todos os meses. O instituto ainda preserva prédios, a igreja, o cassino, transformado em museu, as ruas de paralelepípedos e as praças repletas de árvores do antigo hospital-colônia Aimorés. Em São Paulo, o primeiro asilo desse tipo foi o Santo Ângelo, construído em Mogi das Cruzes, em 1928, onde, no arco da entrada principal, lia-se “Aqui renasce a esperança”.
Em 1943, os 41 hospitais-colônia espalhados pelo país abrigavam 17 mil pessoas, que, uma vez internadas, precisavam encontrar novas formas de sobrevivência para não se abater pelo isolamento. “As pessoas, privadas de direitos básicos de cidadania, eram vigiadas, controladas e governadas por leis específicas”, diz Claudia Fonseca. A década de 1940 foi uma época de combate intensivo à doença, avalia Virmond. As pessoas suspeitas de estarem infectadas eram denunciadas às autoridades sanitárias e perseguidas nas ruas e em suas casas. Em seguida, eram isoladas nos hospitais-colônia. Em Aimorés, os doentes detidos pela polícia sanitária eram transportados em vagões especiais de trens até o hospital.
A rejeição às pessoas com hanseníase não vem de hoje. A doença é considerada uma das mais antigas da história da humanidade — ainda que por séculos muitas doenças dermatológicas fossem confundidas com lepra. “Há registros de casos de pessoas queimadas vivas em suas casas na Idade Média, na Europa”, diz a socióloga Glaucia Maricato, da UFRGS. A aparência das pessoas com a doença, que causa deformações, somada ao medo do contágio, motivava os europeus a manter os pacientes em asilos, os lazaretos, ou expulsá-los das cidades. A hanseníase, mais do que qualquer outra, era vista como uma doença impura. Veio daí a ideia de que a maldade era uma das características do portador. “Os homens daquele tempo estavam persuadidos de que no corpo reflete-se a podridão da alma”, escreveu o historiador francês Georges Duby no livro Ano 1000 ano 2000: na pista de nossos medos. “O leproso era, só por sua aparência corporal, um pecador. Desagradara a Deus e seu pecado purgava através dos poros.”
A visão medieval da doença perdurou até o século XX, segundo a historiadora Yara Nogueira Monteiro, do Instituto de Saúde de São Paulo. Em um artigo publicado na revista Saúde e Sociedade, ela analisou como o isolamento compulsório das pessoas com hanseníase no estado contribuiu para que o estigma da doença atingisse pessoas sadias. De modo geral, ela observa, a internação de um dos pais acarretava a chamada explosão familiar. Quando a notícia de que alguém tinha hanseníase se espalhava, era comum que parentes próximos perdessem o emprego e as crianças fossem expulsas da escola. Esse efeito cascata, segundo ela, contribuiu para que os doentes fossem deixados ainda mais à margem da sociedade.
Foi o que aconteceu com Nivaldo Mercúrio. Em 1968, curado, ele deixou o hospital-colônia, voltou para Itápolis e arrumou um emprego. Semanas depois, porém, outros empregados exigiram do dono da empresa que ele fosse demitido porque vinha de um leprosário. Ele exibia os sinais de seu passado: suas mãos haviam atrofiado e falava com dificuldade, em consequência do tratamento com óleo de chaulmoogra, usado antes da sulfona. “Fui demitido e, meses depois, voltei para cá”, ele conta. O antigo hospital-colônia de Aimorés abriga hoje 74 pessoas que, como ele, um dia tiveram hanseníase.
Artigos científicos
FONSECA, C. L. W. et al. Project REENCONTRO: ethical aspects of genetic identification in families separated by the compulsory isolation of leprosy patients in Brazil. Journal of Community Genetics. v. 6, 3, p. 215-22. jul. 2015.
PENCHASZADEH, V. B. & SCHULER-FACCINI, L. Genetics and human rights. Two histories: Restoring genetic identity after forced disappearance and identity suppression in Argentina and after compulsory isolation for leprosy in Brazil. Genetics and Molecular Biology. v. 37, p. 299-304. mar. 2014.
MONTEIRO, Y. N. Violência e profilaxia: os preventórios paulistas para filhos de portadores de hanseníase. Saúde e Sociedade. v. 7, n. 1, p. 3-26. 1998.