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Pesquisa na quarentena

“Voltei a vestir meu chapéu de epidemiologista”

Pedro Hallal, reitor da Universidade Federal de Pelotas, fala sobre o esforço de pesquisa para identificar quantas pessoas já tiveram o novo coronavírus

Charles Guerra/UFPel

Há três anos, assumi o cargo de reitor da Universidade Federal de Pelotas [UFPel] e apertei a tecla pause na minha vida científica. Interrompi o vínculo com todos os projetos de pesquisa em que trabalhava para me dedicar 100% ao comando da universidade. Até que surgiu a pandemia do novo coronavírus. Eu estava vestindo o chapéu de reitor, mas não dava para fazer de conta que não tinha um outro chapéu guardado, o de epidemiologista. Fiz mestrado e doutorado com bolsas pagas pela sociedade. O governo fez um investimento na minha formação para que eu estivesse pronto para ajudar em um momento de pandemia. O programa de Pós-graduação em Epidemiologia da UFPel é um dos mais conceituados do país e seus pesquisadores têm uma evidente contribuição a dar nesse momento.

Estou coordenando o primeiro estudo feito no Brasil sobre a prevalência da Covid-19 em uma população, a do Rio Grande do Sul, que agora será ampliado para todas as regiões do Brasil. O objetivo é entrevistar e coletar sangue de indivíduos em cidades selecionadas em quatro momentos diferentes, com intervalo de duas semanas entre as coletas. Com isso, conseguiremos saber o percentual de pessoas que têm anticorpos contra o Sars-CoV-2, ou seja, que já entraram em contato com a doença, e os sintomas que sofreram. Cada coleta mostrará o retrato de um momento, e a comparação das quatro revelará a velocidade com que o vírus está se disseminando. Se cada coleta é uma foto, o conjunto das quatro vai mostrar um filme. Adotamos a imagem de um iceberg como logotipo do projeto, uma vez que as estatísticas oficiais mostram apenas a ponta mais evidente do problema.

No estudo do Rio Grande do Sul, os resultados da primeira coleta foram divulgados no dia 15. Foram realizados testes em 4.189 indivíduos em nove cidades do estado, e dois testaram positivo para anticorpos da doença – o que indica uma prevalência de 0,05% na população. Extrapolada para os 11,3 milhões de gaúchos, essa proporção sugere que haveria hoje 5.650 pessoas infectadas no Rio Grande do Sul, e não as 747 oficialmente registradas. As cidades não foram escolhidas ao acaso, são os principais municípios de cada uma das nove regiões do estado. Depois de um intervalo de duas semanas, haverá outra coleta com mais 4,4 mil pessoas, que se repetirá outras duas vezes. É uma iniciativa tripartite. Um dos polos é a academia – são 10 universidades gaúchas envolvidas sob a liderança da UFPel. Outro é o poder público. O governo do estado coordena o estudo e o Ministério da Saúde forneceu os testes. E também há a sociedade civil. O financiamento foi obtido com instituições privadas, como a Unimed e o Instituto Cultural Floresta, do Rio Grande do Sul, e o Instituto Serrapilheira, no Rio de Janeiro.

O Ministério da Saúde solicitou que a gente expandisse a pesquisa para o país inteiro. Em duas semanas, nós preparamos o protocolo da pesquisa e remetemos para o Ministério da Saúde, que fez o repasse de recursos para a UFPel. Fizemos uma chamada para contratar a empresa que vai fazer as entrevistas e coletar amostras de sangue dos entrevistados e a selecionada foi o Ibope [Instituto Brasileiro de Opinião Pública e Estatística]. O trabalho será feito em 133 cidades em todas as regiões e cada etapa vai coletar dados e amostras de mais de 33 mil pessoas.

Esses estudos não têm precedentes no mundo em volume da população estudada. Houve um estudo populacional feito na Áustria, que entrevistou 1,5 mil pessoas e constatou que 0,33% da população tinha sido infectada. Teve também um estudo em uma cidade alemã que foi o epicentro da epidemia no país – o contágio foi multiplicado depois de uma grande festa popular – e lá deu uma prevalência de 14%. Foram realizados cerca de 4 mil testes.

Tenho trabalhado em um ritmo que não é compatível com a saúde mental e física de uma pessoa e espero que isso não dure muito tempo. São 16 horas por dia, todos os dias, mas é compensador ver os resultados. As pesquisas da UFPel estão hoje entre as mais citadas por pesquisadores, autoridades e imprensa. A universidade atua em várias frentes contra a Covid-19. Desde o começo da pandemia, passamos a produzir em parceria com a Universidade Católica de Pelotas uma quantidade enorme de álcool em gel para uso do Sistema Único de Saúde. Também temos equipes produzindo grandes volumes de máscaras em impressoras 3D, tanto as mais simples como as mais sofisticadas.

Um grupo da engenharia desenvolveu uma pia portátil, com acionamento automático e sem necessidade de contato manual, que será instalada em lugares públicos. Também temos gente trabalhando com a recuperação de ventiladores pulmonares e tentando fabricá-los usando um protótipo desenvolvido pela USP [Universidade de São Paulo]. Recebemos recursos do Ministério da Educação para começar a realizar testes de PCR e auxiliar no diagnóstico do coronavírus. Isso, sem falar que o hospital-escola da UFPel é referência em Covid-19 em Pelotas.

As nossas aulas estão suspensas desde 13 de março e temos um grupo de trabalho que está elaborando uma proposta de calendário acadêmico para compensar o tempo perdido. Trabalhamos com três cenários, de retorno às atividades em junho, julho ou agosto. Não parei de usar o chapéu de reitor.

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