Arquivo pessoalPioneiro no estudo e na aplicação da ciência do bem-estar animal no Brasil, o zootecnista Mateus José Rodrigues Paranhos da Costa morreu no dia 5 de julho, aos 68 anos, em Franca, interior de São Paulo. Desde 1986 era pesquisador do Departamento de Zootecnia da Faculdade de Ciências Agrárias e Veterinárias da Universidade Estadual Paulista (FCAV-Unesp), campus de Jaboticabal, e se destacou pelo estreitamento dos laços entre a pesquisa de ponta na sua área e a prática no campo, propondo um modelo de pecuária mais consciente e sustentável.
“Mateus levou o Brasil à vanguarda da ciência do comportamento animal”, diz o biólogo inglês Donald Broom a Pesquisa FAPESP. “Ele era um excelente comunicador e, em várias conferências internacionais importantes, apresentou artigos sobre como envolver efetivamente os produtores nas pesquisas de bem-estar animal.”
Em 1986, Broom, hoje com 82 anos, foi o primeiro professor da disciplina de bem-estar animal assim nomeado em uma instituição acadêmica, a Universidade de Cambridge, no Reino Unido. Em 1992, Paranhos da Costa o convidou para dar uma palestra no 10º Encontro de Etologia, promovido pela Unesp em Jaboticabal. “Foi quando descobri que ele já estava investigando diversos aspectos do bem-estar, incluindo a minimização dos problemas para quem trabalhava com bovinos.”
Um dos artigos de Paranhos da Costa mais citados foi publicado em 2012 na revista Meat Science. O pesquisador destacava iniciativas técnicas, legislativas e políticas desenvolvidas na América Latina a fim de promover o bem-estar da pecuária, com ênfase em programas de capacitação dos trabalhadores e na produção de diretrizes de boas práticas de manejo. “No Brasil, estima-se que mais de 10 milhões de quilos de carne sejam descartados anualmente por causa dos hematomas nas carcaças em virtude de quedas, pancadas e escorregões do animal, que poderiam ser evitados com um manejo mais cuidadoso”, disse ele a Pesquisa FAPESP por ocasião da reportagem “Cuidado e empatia com os animais”.
Na conclusão do artigo da Meat Science, o zootecnista lembrava que o manejo tinha maior chance de sucesso quando o bem-estar dos trabalhadores também era considerado. “A melhoria do bem-estar animal melhora o bem-estar humano”, disse Paranhos da Costa ao fechar sua apresentação no workshop promovido pela Unesp para receber a pesquisadora norte-americana Temple Grandin em São Paulo, em 2018. No evento, Paranhos da Costa recebeu a medalha Temple Grandin, distinção concedida a cientistas e profissionais que se destacam na promoção do bem-estar animal, especialmente no contexto da pecuária.
Professora emérita do Departamento de Ciência Animal na Universidade do Estado do Colorado, nos Estados Unidos, a psicóloga e zootecnista Grandin transformou as práticas para o tratamento racional de animais em fazendas e abatedouros. Ela assina diversos artigos na área – um deles, de fevereiro, trata de insights da comunicação não verbal em mamíferos não humanos. “O professor Mateus foi um líder que despertou o interesse dos alunos em pesquisas práticas aplicadas que melhorariam o bem-estar do gado e de muitos outros animais”, afirma ela a Pesquisa Fapesp.
Nascido em Franca, Paranhos da Costa se graduou em zootecnia na FCAV em 1981. Concluiu o doutorado em psicobiologia pela Universidade de São Paulo (USP), campus de Ribeirão Preto, em 1995 e fez estágio de pós-doutorado em bem-estar animal na Universidade de Cambridge em 1999. Na FCAV, fundou em 1992 o Grupo de Estudos e Pesquisas em Etologia e Ecologia Animal (Etco), do qual foi coordenador. O grupo se tornou referência em manejo racional de animais de produção, com mais de 120 artigos científicos publicados.
Como lembra a zootecnista Fernanda Macitelli, professora na Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT) e pesquisadora associada ao Etco, Paranhos da Costa também elaborou, com alunos da Unesp, 12 manuais de boas práticas de manejo, hoje disponibilizados aos produtores pelo Ministério da Agricultura e Pecuária (Mapa). Os manuais envolvem, entre outros pontos, a vacinação, o embarque, o conforto das vacas em lactação e a identificação. “Mateus se empenhava em conscientizar as pessoas para a redução das marcações a fogo”, conta Macitelli. Por influência do zootecnista, em 2024 São Paulo foi o primeiro estado a dispensar a marcação a fogo na face de bovinos e bubalinos vacinados contra a brucelose – foi substituída por um brinco de identificação da vacina.
“Mateus também foi o pesquisador que mais se preocupou com o bem-estar no transporte de animais no Brasil”, lembra o veterinário Adroaldo José Zanella, coordenador do Centro de Estudos Comparativos em Saúde, Sustentabilidade e Bem-Estar na Faculdade de Medicina Veterinária e Zootecnia (FM-VZ) da USP. “Suas contribuições mudaram políticas públicas que se tornaram decisivas para o estabelecimento do arcabouço legal vigente no Brasil”, afirma. Entre elas, destaca-se a Resolução nº 791, de 2020, do Conselho Nacional de Trânsito, que consolidou as normas sobre o transporte de animais de produção, interesse econômico, esporte, lazer e exposição.
Entre 2009 e 2010, Paranhos da Costa foi pesquisador visitante na sede da Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura (FAO), em Roma. A veterinária italiana Daniela Battaglia, que coordena na FAO o Gateway to Farm Animal Welfare, plataforma on-line que fornece acesso para informações sobre bem-estar de animais de fazenda, e coproduz o FAOcast, podcast sobre bem-estar animal, destaca a Pesquisa Fapesp o quanto a expertise do zootecnista brasileiro contribuiu para enriquecer o trabalho da organização na promoção de vidas melhores para animais e pessoas: “Sua pesquisa pioneira, visão e defesa apaixonada pelo tema ajudaram a moldar a compreensão internacional do bem-estar animal como parte integrante da produção pecuária sustentável e da saúde única”. Saúde única (one health) é uma abordagem integrada que reconhece a interconexão entre a saúde humana, a animal e o ambiente.
Também é reconhecido seu papel na mentoria qualificada de profissionais nessa área de estudo. “Seus alunos vêm ocupando posições muito importantes no Brasil e em outros países na área de bem-estar animal”, diz Zanella. A zootecnista Daiana de Oliveira, professora titular de bem-estar em animais de produção na Universidade de Linnaeus, na Suécia, destaca o método distinto de Paranhos da Costa: “Como professor, ele dispensava slides e inspirava os alunos com histórias envolventes; como orientador, propunha desafios instigantes e debates científicos com grandes pesquisadores internacionais, abrindo nossas portas para o mundo”.
Paranhos da Costa vinha tratando a recidiva de um câncer no intestino quando teve Covid. Ele deixa a esposa, Janete, os filhos Paula, Mariana e Gabriel e três netas.
A reportagem acima foi publicada com o título “Bem-estar para todos” na edição impressa nº 354, de agosto de 2025.
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