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Eduardo Sabino

Ícaro

luana geigerNesta manhã, enquanto partilhamos o leite, os pães e o canto estridente de Sofia, vejo uma nuvem de genes pairar sobre a mesa. Identifico incontáveis ervilhas na crosta cinzenta. Elas se combinam para formar cromossomos, que se unem em espirais de DNA, as cadeias como tornados ao redor das crianças.

Domingo com a família. Davi mastiga um pedaço de pão desproporcional à miudeza da boca, Vanessa me pede, pela terceira vez, o pote de manteiga. A cozinha bem iluminada, Sofia irrompendo no ambiente de touca capilar, uma canção arranhada e insistente vibrando as cordas vocais. Da posição em que estou, tudo acontece em câmera vagarosa, um comercial de margarina contaminado por mutações surreais.

Penso na mitologia grega, especialmente em Ícaro e no presente ganhado por ele do pai. Também recebi um par de asas para sobrevoar o labirinto da vida. Como Ícaro, voei para onde não deveria. Sem para-raios, caio, sob tempestade genética.

Sofia é arquiteta e conhece um pouco de alquimia. Transforma em ser vivo, com massagens certeiras, um corpo enferrujado pelo cotidiano. Vanessa está em fase de crescimento, uma baratinha esperneando nas metamorfoses da adolescência. Davi nas primeiras descobertas. Folhas em branco, os filhos. Destas nas quais se escrevem livros de receita, mandamentos ou poemas. Eu, engenheiro genético, opto pelos códigos.

Primeiro, a domesticação de animais, a genética nascendo em cruzamentos raciais e planejados. Depois Mendel e suas ervilhas amestradas, observando padrões, notando o quanto as variações no cultivo obedeciam a estatísticas simples. Agora o Genoma Humano decifrado, o DNA traduzido, a caixa de Pandora aberta.

Deixei escapar genes, sombras, esperanças. O mundo para sempre modificado.

Sofia se senta e diz qualquer coisa sobre a beleza do dia. Vanessa mistura o achocolatado, a colher tilintando no fundo do copo. Davi remexendo as mexericas no centro da mesa, até selecionar a maior. Observo o nosso Éden particular. Estão nus e não se envergonham. Não há frutos proibidos, no máximo transgênicos.

Família, o meu objeto de pesquisa. Essa necessidade de saber para onde as coisas vão. Buscar um improvável desvio na rota. Retardar, quem sabe, o encontro dos ratos com a ratoeira universal.

Colhi partículas para saber-lhes tudo. O cabelo de Vanessa no pente, um pelo pubiano de Sofia, o primeiro dente extraído de Davi, a unha do meu indicador esquerdo. Ingredientes de uma poção científica e perigosa.

As horas extras se estenderam no laboratório. A desconfiança dos colegas, os arquivos pessoais se multiplicando, o sonho da perfeição ao alcance de uma senha.

Existem poucas formas de nascimento. Duas vias, apenas. Uma vez no mundo, ou mesmo antes de se chegar a ele, os tipos de morte possíveis são inúmeros. Assassinato, canibalismo, suicídio, afogamento, combustão, batida de carro, elevador danificado, espinha de peixe na garganta, abuso de cigarro, AA, AB, BB. De quase todas, com alguma sorte em estatística, escapa-se. Por mais violenta que seja, a vida social tem uma flexibilidade estranha aos códigos genéticos.

Vanessa salta da mesa, sempre a primeira a terminar. Segue para o espelho. Começa o ritual narcisista, o retoque de maquiagem. O rosto de boneca pronto, ela retira o celular do bolso. Um, dois, vários clicks para o Orkut. Congelo a sua imagem, aperto a tecla mute do mundo. Não é magra nem gorda para a idade, um corpo pré-adolescente programado para explodir. Há nele a fórmula para crescer e se expandir em todas as direções. As ancas serão moradas de celulite, a cintura se dilatará, as pelancas farão dos braços molas flexíveis. Amá-la será uma constante, mas em breve não a terei por inteiro em meus braços. Vanessa tem nos genes uma variante que estimula o acúmulo de colesterol nas células. A obesidade será inevitável, talvez o diabetes.

O caçula também se levanta. Vejo-o jogar as cascas da mexerica no lixo e atravessar o corredor, em velocidade, ao encontro do videogame. O menino não tem bom coração, apesar da pureza infantil. Síndrome de Brugada, como o avô. Grande chance de partir por volta dos quarenta, o coração disparado durante um sonho sereno. Davi e os leões no coliseu pulsante. Se ele não for vítima de outras estatísticas, vou-me antes.

Sofia herdou uma alteração genética da mãe e terá um câncer aos sessenta anos. Um dia a personalidade sensata e organizada vai contrastar com o crescimento desordenado das células. Também não a verei sucumbir.

“Meninos, esqueci de dizer, tem sorvete na geladeira!”

Eles voltam correndo para abraçar a mãe, presas fáceis das surpresas dela.

Como Ícaro, sinto a responsabilidade de me aproximar demais do sol, a cera se derretendo nas asas artificiais. Muito cedo abri mão de Deus. Troquei as cruzes pelas asas. Doravante sinto o peso divino como quem carrega o próprio corpo. O conhecimento do bem e do mal.

Há muitas nuances menos graves no caminho evolutivo da família. Não as investiguei a fundo. Quero retornar ao Éden. Estar nu e não me envergonhar.

Sofia carrega Davi no colo. Ele me olha, “papai está calado hoje”, Vanessa coloca o pote de sorvete sobre a mesa. Desprendo-me da nuvem para ajudar a mãe a fazer cócegas no menino. E comer sorvete. Abraços, risos, cheiros e sabores contra o pó da existência.

A partir dos cinquenta anos, o meu universo se encolherá. As conexões entre os neurônios serão destruídas pelo mal de Alzheimer. Irei embora junto com as minhas memórias, o corpo ainda em movimento.

A descoberta é recente. Sou um intruso do futuro me relacionando com o presente. Recolho os instantes como um catador de latinhas. Coleciono cartões-postais diante da injeção letal.

Sofia continua a cantarolar. A delicadeza sonora não lembra em nada a rouquidão de Armstrong. “And I think to myself, what a wonderful world…

Não darei tanta atenção às sombras sorrindo por detrás das coisas: no carro novo, na mexeriqueira do quintal, no semblante tranquilo de Sofia.

Davi e Vanessa se juntam contra mim, beijam-me o pescoço com as bocas lambuzadas. Entrego-me ao momento.

Sofia se conecta ao jornal do dia pelo dispositivo móvel. Quer ler para mim o horóscopo do meu signo. Ouço as dicas com atenção. Quando me dou conta, a nuvem sombria já se desfez. Por hoje chega de previsão do tempo.

 

Eduardo Sabino é escritor e jornalista, autor do livro Ideias noturnas: sobre a grandeza dos dias. Foi editor da revista literária Caos e Letras e colabora regularmente com sites e revistas, como Balaio de Notícias e Observatório da Imprensa.

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