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Antônio Xerxenesky

6.373 O mundo independe da minha vontade

FAPESP_CONTOfinal_0614_VISCAvisca“O mundo é a totalidade dos fatos, não das coisas”, é a frase na cabeça do senhor L. ao se apresentar a Hans, o homem que anunciava no periódico local a venda de sua residência, um casebre tristonho em um terreno pedregoso coberto de nada no interior da Noruega. Hans o cumprimentou efusivamente. É um dia alegre para Hans, cujas dívidas se acumulavam como pratos sujos na pia da cozinha.

Hans o aguardava do lado de fora da casa, que naquele dia cinzento parece uma construção prestes a desabar, e após o aperto de mãos logo pergunta ao senhor L. se ele estaria disposto a pagar o valor anunciado, aquele número abusivo de coroas norueguesas. O senhor L. responde que sim, embora não diga que é proveniente de uma família abastada. Hans desconfia.

“O que o senhor faz, senhor L.?”

“Sou professor”, ele responde.

“De quê?”

“De lógica.”

Hans olha ao redor e o senhor L. acompanha a sua visão. O rio, a ruptura azul-celeste entre duas montanhas, aquilo que batizaram de fjord. O silêncio interrompido apenas por algumas aves intransigentes que insistiam em existir naquele vazio.

“Por favor, entre”, Hans abre a porta de madeira e a segura para L., que apenas enfia o rosto pela abertura e olha ao redor.

“Sim, como eu imaginava.” Uma cama, uma escrivaninha, uma cadeira, uma janela empoeirada que provavelmente não abre.

“O senhor não quer entrar?”

“Não é necessário. É como eu imaginava. Vamos acertar o pagamento?”

Hans fecha a porta assim que L. tira o seu rosto anguloso de dentro. Ele parece tenso, mas L. nunca perguntaria o que foi, se está tudo bem. Hans fica mais inquieto com o desinteresse de L. pela sua inquietude.

“Você não quer saber por que estou vendendo a casa?”

“Cada um tem seu motivo. O que interessa é que podemos fazer negócio.”

“Vivi uma história de amor nesta casa”, Hans fala, sua voz mudando de tom no meio da frase.

Conto_anotacao-1, anotou algum dia o senhor L., tentando resolver a questão inescapável da tautologia. O senhor L. sentia – embora admitir isso em público causasse problemas e constrangimentos – que estava destinado a um grande futuro, a deixar um legado que alteraria para sempre o pensamento filosófico ocidental.

“Entendo”, o senhor L. responde automaticamente a Hans.

“É difícil para mim olhar para essa cama, onde passei tantos momentos amorosos.” O rosto de Hans é rosado, e suas orelhas ficam coradas como as bochechas ao falar isso.

O senhor L. encontra-se perante um dilema: se ele disser um “Certo, ótimo motivo para não falarmos mais disso e fecharmos logo o negócio”, pode atrair a ira do ex-morador e arruinar tudo. Se perguntar detalhes, terá que se submeter ao inferno. Ele fica em silêncio.

“Uma história realmente trágica!”

“Imagino.”

“O senhor é professor do que, mesmo?”

“Lógica.”

“Um ramo da filosofia, se não me engano”, diz Hans, balbuciando.

Na sua obra, a única que publicaria em vida, o senhor L., tentando resolver os problemas essenciais da filosofia, buscando criar uma base para todo o pensamento, desenhou um diagrama que dialoga diretamente com o raciocínio algébrico e que é fundamental para entender como funcionam as proposições:

Conto_anotacao-2

“Você acha que a filosofia pode trazer consolo?”, Hans subitamente pergunta.

Entre as vinte e sete coisas que o senhor L. gostaria de fazer hoje, discutir filosofia com o vendedor da residência não era uma. “Não”, ele responde em um volume quase inaudível.

“Mas como a filosofia lida com a questão do amor?”

“Se tentar lidar com isso, será calcada em mentiras. Será psicologia, metafísica. Outra coisa.”

O rosto de Hans se contorce como se o senhor L. tivesse ofendido a sua mãe. A tensão contamina L. Precisa desviar do assunto. Só assim sobreviverá até o fechamento do negócio.

“Vamos olhar a casa”, ele diz, e Hans abre a porta instintivamente. Entram.

O primeiro passo denunciou uma madeira frouxa, talvez carcomida por cupins. O segundo passo revelou que a casa não valia o preço anunciado. O rangido da madeira era audível até para um pássaro distante. Raios de sol atravessavam as frestas da parede.

“É um ambiente ideal para viver em paz, longe dos incômodos das grandes cidades”, alardeou Hans. “O senhor é de Viena?”, perguntou.

“Esta casa está em um estado lamentável, Hans”, murmura.

Hans finge que não o escuta. “A posição solar das janelas é leste!”, exclama, como quem anuncia uma casa com piscina. “Excelente para secar roupa no horário da manhã.” Hans observa o rosto inabalável do senhor L. “Você acorda cedo?”

“Meu interesse aqui é um lugar para trabalhar”, responde secamente.

“Sim, sim, trabalho. Mas um homem não vive só de trabalho. É um lugar isolado, bom para trazer uma garota…”

Algo dentro do senhor L. parece entrar em fusão. Ele controla uma tosse engasgada. Hans nota o desconforto do interlocutor e emenda:

“Ou talvez um garoto, se isso for a sua preferência.”

Os olhos do senhor L. incham como um balão.

“Ou dois garotos, ou quinze galinhas, cada um com seu gosto!”, exclama Hans, encaixando uma gargalhada para descontrair o ambiente.

6.13 A lógica não é uma teoria, mas uma reflexão do mundo.

Lógica é transcendental.

“A solidão não é para todos”, fala Hans, enfiando as mãos no bolso. “Você sabe lidar com a solidão, senhor L.?”

A resposta não é um sim, nem um murmúrio, mas um grunhido incompreensível.

6.2 A matemática é um método lógico.

6.21 Proposições matemáticas não expressam pensamentos.

“Eu queria saber por onde ela anda”, choraminga Hans.

“Quem? O quê?”, L. pergunta, um pouco confuso, pensando que ele se refere a algo da casa, à chaleira que não está sobre o fogão.

“Ingrid!”, exclama Hans, como quem declama poesia após beber um tonel de vinho.

6.3 A pesquisa lógica representa a investigação de toda regularidade. Fora da lógica, tudo é acidente.

Os olhos de Hans estão úmidos. L. sabe o que vai acontecer. Hans o abraça. “Será possível viver sem ela?”, ele diz, sua voz abafada por causa do rosto colado contra o casaco de L.

O senhor L. não sabe o que falar, então se cala.

6.5 Para uma resposta que não pode ser expressa, a pergunta também não pode ser expressa.

Logo abaixo dessa proposição, o senhor L. escreveria: “O enigma não existe”.

“Por que não deu certo entre nós?”, Hans urra, suas lágrimas agora escorrendo e misturando-se com o muco esverdeado do nariz. Ainda está abraçado contra o casaco de lã do senhor L.

Abaixo da consideração sobre o enigma, o senhor L. escreveria: “Se uma pergunta pode ser feita, então ela também pode ser respondida”.

Mas tudo que ele queria naquele momento era comprar uma casa.

Antônio Xerxenesky é um escritor e tradutor nascido em 1984, em Porto Alegre, e radicado em São Paulo. Autor dos romances F (2014) e Areia nos dentes (2008), Xerxenesky é mestre em literatura comparada pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e traduziu para o português diversos autores contemporâneos de língua espanhola, como Enrique Vila-Matas, Rodrigo Fresán e Juan Villoro.

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