– Não posso sentir minha perna – diz a atleta.
– Esqueça – rebate o técnico. Faça o melhor
que puder. Você tem de saltar mais uma vez!
– Não, você não está entendendo. Meu pé
está machucado de verdade.
– Esqueça.
– Vou ter de fazer isso de novo?
– Você pode? Pode? – pergunta o treinador.
– Não sei ainda – responde a atleta, à beira das lágrimas, pouco antes de se decidir. Vou saltar… Vou saltar…
O diálogo dramático aconteceu na Olimpíada de Atlanta (1996) entre a ginasta Kerry Strug e o técnico Bela Karolyi, romeno que treinava a equipe norte-americana. No quarto dia da competição Kerry foi vítima de uma torção grave no tornozelo esquerdo, em seu primeiro salto sobre o cavalo. Não era permitido atendimento médico antes de um novo salto, e a atleta se aconselhou com o treinador, cujas frases e gestos enfáticos não deixaram dúvida: ela deveria tentar, mesmo machucada. Estava em jogo não apenas seu desempenho pessoal, mas a medalha de ouro por equipes, então inédita para as norte-americanas. No segundo salto, Kerry correu, voou com eficiência e aterrissou com os dois pés. Um segundo depois, não resistiu à dor no tornozelo e desabou no chão. O técnico Karolyi – o mesmo que em 1976 revelou a ginasta Nadia Comaneci – recolheu Kerry do solo e a carregou nos braços. O salto recebeu nota 9,712. As meninas dos EUA ficaram com o ouro, mas teriam conseguido a medalha mesmo sem o segundo salto de Kerry Strug. “Eu me senti obrigada a saltar”, contou depois a atleta, na época com 18 anos.
O episódio, marcante na história olímpica, revela o papel decisivo que o fator psicológico pode ter no esporte de alto rendimento. Em vários sentidos: mostra a importância da motivação para superar obstáculos, indica a ascendência do treinador sobre o atleta e é um exemplo dos efeitos das discutíveis técnicas autoritárias, empregadas especialmente contra mulheres. Acima de tudo o caso mostra como a mente pode levar o atleta ao seu limite – e até além dele. “A preparação psicológica é a diferença entre o ouro e a prata”, acredita Benno Becker Júnior, presidente de honra da Sociedade Brasileira de Psicologia do Esporte.
Na verdade, esporte e psicologia andam juntos desde os jogos da Grécia Antiga, quando os competidores se isolavam antes das competições e ficavam imaginando resultados positivos – técnica conhecida como visualização. Quando o barão de Pierre Coubertin ressuscitou os jogos, foi a mente dos atletas o tema do primeiro encontro internacional pré-olímpico. De forma geral os objetivos continuam os mesmos. A idéia é trabalhar o lado emocional do esportista, usando técnicas que o levem a atingir o máximo de seu desempenho. Isso é importante no esporte de competição, em que milésimos de segundo fazem a diferença entre fracasso e sucesso. John Kremer, da Queen’s University, da Irlanda, autor de livros sobre psicologia esportiva, define o objetivo de sua profissão como modular os três “cês”: em inglês, confidence (confiança), commitment (compromisso) e control (controle).
Ioga e meditação
Não há uma receita geral. Para cada modalidade esportiva e tipo de atleta, os ingredientes entram em proporção diferente. Num esporte como o tiro, por exemplo, o preparo psicológico deve enfatizar o controle e a concentração; nos esportes coletivos ganha importância o engajamento, tentando tornar ótimos a comunicação e o espírito de equipe; na ginástica vale mais a confiança. As técnicas variam com o objetivo a ser alcançado. O atirador irá praticar ioga, meditação e relaxamento, a ponto de fazer seu coração bater mais lentamente durante uma prova; um time de basquete desenvolve dinâmicas de grupo para estimular a interdependência; e a ginasta faz exercícios mentais em que reproduz em sua cabeça a imagem do movimento perfeito – uma, duas, centenas de vezes.
“É fundamental ter uma preparação sob encomenda e jamais depender apenas de uma técnica”, afirma John Kremer. “Numa competição, o atleta deve contar com estratégias variadas para atingir seu estado mental ótimo”, diz o psicólogo Dietmar Samulski, da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e escolhido pelo Comitê Olímpico Brasileiro (COB) para acompanhar a delegação brasileira em Atenas.
Lição de casa
Em geral, as receitas de preparação são escolhidas conforme o perfil do atleta. Um exemplo foi a prescrita por Benno Becker Jr. para um nadador da equipe brasileira dos 200 metros que tinha dificuldades emocionais em encarar os últimos 50 metros. “Percebi que uma boa técnica seria a da visualização, com diálogo interno”, relembra o psicólogo. O nadador ganhou uma “lição de casa”: várias vezes ao dia deveria visualizar o momento em que faria a virada na piscina e encararia os últimos metros; no exercício, deveria se imaginar voando como um pássaro sobre a água. “Deu certo”, avalia Becker Jr., que não revela o nome do atleta por sigilo profissional.
Os objetivos da preparação psicológica são antigos, mas as técnicas têm acompanhado o desenvolvimento da ciência. Becker Jr. cita um exemplo: hoje os atletas trabalham com a mentalização de no máximo cinco metas, pois as pesquisas sobre retenção cognitiva mostraram que essa é a quantidade ótima para um ser humano. O conhecimento do cérebro mudou rotinas. O atleta hoje acorda pelo menos três horas antes de uma disputa, pois se sabe que o sistema nervoso central leva esse período para despertar completamente após o sono. Também a tecnologia do vídeo, popularizada no mundo inteiro, tem ajudado atletas que trabalham com visualização de movimentos. Na ginástica é usual o treinador gravar seqüências e exibir repetidamente o movimento ideal para o atleta, de forma a ajudá-lo na visualização.
Um dos campos mais promissores em termos de avanço científico relacionado à preparação psicológica é o biofeedback. Trata-se mais de um instrumento para avaliação do estado psicofisiológico do atleta do que de uma técnica psicológica. Tradicionalmente o biofeedback é usado em terapias de cura, como em pacientes que perderam o controle dos movimentos. No esporte, exames para monitorar ondas cerebrais, freqüência cardíaca, pressão arterial, profundidade da respiração e temperatura, por exemplo, avaliam o estado mental do atleta. Com base nesses parâmetros, o especialista ganha em duas frentes: avalia o sucesso da técnica psicológica que está aplicando e dá ao esportista consciência clara de qual o estado mental em que tem seu melhor desempenho. Assim o atleta pode reproduzir essa espécie de nirvana esportivo com maior facilidade ou avaliar quais técnicas o levam mais próximo desse ponto ótimo.
O biofeedback colabora para ampliar a confiabilidade da psicologia esportiva, ainda vista com alguma reserva. Para muitos, o trabalho psicológico funciona para quem o faz funcionar – it works when you work it, na expressão inglesa. “Conduzir uma avaliação científica da efetividade da ajuda psicológica para a performance atlética é um negócio complicado”, afirma o psicólogo norte-americano Michael Shermer, em artigo publicado na revista Scientific American, em janeiro de 2000, no qual se assume um cético declarado. O psicólogo participou de uma edição da Race Across América – prova ciclística que atravessa 3 mil milhas nos Estados Unidos – depois de meditar, participar de seminários sobre controle de estados internos, ouvir fitas motivacionais e aprender auto-hipnose contra a dor. “Não sei dizer se funcionou, nem como cientista nem como ciclista”, avaliou. Ele explica as dificuldades de tirar a prova nessa área: seria preciso considerar todas as variáveis que influenciaram um atleta, ver se o trabalho psicológico traria resultados semelhantes em outros competidores, ter um grupo de controle submetido a condições quase idênticas… Em resumo, ele acredita que os psicólogos do esporte são “como a maioria dos cientistas sociais”: saem-se melhor explicando um comportamento do que tentando controlá-lo.
A questão da efetividade da psicologia esportiva e da validade de seus modelos é tão controversa que há estudos destinados unicamente a revisar as dezenas, centenas de pesquisas anteriores. Mas também a revisão está sujeita a novas polêmicas. “O rendimento de um atleta de competição depende de vários fatores, e cientificamente é muito difícil isolar o fator psicológico”, admite Samulski. “Pessoalmente, penso que medidas e mesmo testes psicológicos raramente oferecem compreensão tão profunda quanto a das abordagens qualitativas”, acredita John Kremer. Também é preciso ter em mente a consistência dos resultados. Pesquisas já mostraram o chamado efeito Hawthorne, que faz a performance melhorar no curto prazo apenas por conta do início do trabalho psicológico e do engajamento dos envolvidos. “Só de saber que há alguém se preocupando, o atleta já melhora suas reações”, relata o psicólogo Eduardo Aguiar, das Faculdades Metropolitanas Unidas (UniFMU), de São Paulo, que atua na área esportiva e trabalhou na preparação da triatleta Carla Moreno para a Olimpíada de Atenas. O bom impacto inicial não quer dizer que a melhora da performance veio para ficar, advertem os especialistas.
Os psicólogos costumam lembrar a final da Copa do Mundo de futebol de 1998 como uma boa prova da necessidade de trabalho emocional no esporte competitivo. Na decisão da França, o atacante Ronaldo teve um crise de convulsão – talvez um sinal de sobrecarga emocional – na véspera do jogo decisivo. O incidente abalou o lado psicológico de toda a Seleção Brasileira. Resultados: uma equipe apática, uma atuação apagada e uma derrota inesquecível. Isso não significa que chamar um psicólogo às pressas diante de uma crise terá algum resultado benéfico. “Isso raramente funciona”, avalia John Kremer. “Os melhores resultados aparecem com trabalhos de longo prazo.”
Fibrilação
Há procedimentos indicados para situações de crise. Repare nos gritos, nos gestos e na cara de transtornado que o técnico Bernardinho faz ao orientar a Seleção Brasileira masculina de vôlei. Existe uma explicação, digamos, científica para isso. “Há momentos em que o time reage com apatia, como um coração que sofreu fibrilação; nessa altura, só um choque pode fazê-lo voltar ao normal”, explica Benno Becker Jr. “Os gritos são esse tratamento de choque.” Para Samulski, Bernardinho estuda psicologia esportiva por conta própria e sabe o que faz. “Ele é um grande motivador”, diz o psicólogo do COB.
Para os especialistas, Bernardinho está longe de ser comparável a treinadores como Bela Karolyi, que protagonizou a cena marcante da Olimpíada de Atlanta. “Ele é exigente, mas escuta a opinião de seus jogadores”, avalia Samulski. “Isso não é ser autoritário.” Claro que esse termo tem caráter negativo, mas é preciso observar que autoritarismo não é sinônimo de insucesso no esporte. Há treinadores bem-sucedidos tanto na linha dura como na democrática. Karolyi, por exemplo, dirigiu a equipe feminina norte-americana em várias Olimpíadas, com poder inclusive para indicar as integrantes da equipe. “Mas é preciso relativizar o sentido de sucesso, no caso da orientação autoritária”, acredita Eduardo Aguiar. “Pode ser que essa abordagem consiga uma boa performance imediata do atleta, mas um péssimo resultado no longo prazo e quando se olha o ser humano como um todo.”
Em grande medida, os comportamentos individuais refletem escolas nacionais. Rússia, Japão e Coréia, por exemplo, são lembrados por sua cultura esportiva autoritária. “Russos e japoneses chegam a bater, especialmente em mulheres atletas”, afirma Benno Becker Jr. O presidente de honra da Sociedade Brasileira de Psicologia do Esporte cita uma pesquisa feita no Japão, na década de 1990, que mostra o caráter cultural do procedimento: 83% disseram que apanhar fazia bem para a disciplina e 86% revelaram que, se fossem treinadores, também bateriam. “Talvez isso funcione para obter resultados, mas essa escola autoritária cria gerações doentes.”
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