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Opinião

A cultura popular na fabricação da identidade nacional

Muitos autores já demonstraram que a cultura das classes populares é a matéria-prima por excelência da construção das nacionalidades nos Estados gerados nestes últimos 150 anos. Com efeito, embora esse tipo de estrutura burocrática se inaugure no campo jurídico e da política, é no campo da cultura que ele ganha espessura. Isto porque, para que os Estados nacionais se legitimem, é preciso que eles constituam culturalmente seu povo, homogeneizando o território e universalizando as particularidades locais. Esse processo de construção simbólica da nacionalidade, que procura incluir e dar um sentido nobre ao modo de vida das camadas pobres, é tradicionalmente obra dos intelectuais.

No caso brasileiro, o Estado republicano teve que enfrentar-se, desde muito cedo, com o problema do divórcio da sociedade política com as camadas populares, já que sua constituição destituiu de direitos civis os iletrados. Como bem observa José Murilo de Carvalho em seu livro Os Bestializados, o vasto mundo da cultura popular vicejava, fora do mundo político oficial. A falta de pontes entre o modo de vida das elites e das camadas pobres estimulava um imaginário que as percebia como perigosas e ameaçadoras da nova ordem e reduzia a “política cultural” à criminalização e perseguição policial de suas manifestações culturais e religiosas.

Algumas tentativas foram feitas, já no final do século, para descriminalizar capoeiras e batuques, e torná-los ícones de brasilidade. No entanto, pode-se dizer que somente a partir da chamada era Vargas se esboça mais nitidamente um novo pacto político que procura incorporar as manifestações populares ao Estado, de modo a produzir, nas elites e no povo, uma convicção compartilhada de nacionalidade. Para tanto, foi preciso domesticar essa cultura popular, retirar-lhe sua autonomia própria e sua excessiva alteridade: foi preciso torná-la mestiça. Tratou-se, com efeito, de romper a lógica da honra e das redes de lealdades locais, que organizavam essa vida popular de modo a incorporá-las em formas de representação política mais universais.

O êxito desse empreendimento deveu-se, em grande parte, à cumplicidade, mais ou menos consciente, entre os intelectuais (das elites e das camadas populares) e o projeto do Estado nacional; os primeiros, procurando integrar o negro à nação, os segundos buscando ampliar seu espaço na sociedade brasileira. A obra inaugural de Gilberto Freyre (1933), Casa Grande e Senzala, ao romper com o peso das teorias raciais européias que, na sua lógica determinista, só podiam conceber a mestiçagem como degeneração, cria o paradigma da cultura mestiça que permite pensar positivamente essa incorporação do negro à brasilidade.

Não é fácil explicar a rápida acolhida dos valores mestiços, a partir da era Vargas, como ícones de nacionalidade. Na trilha aberta pela interpretação freyriana, muitos pensadores buscaram decifrar esse enigma da cultura brasileira: por que, entre as inúmeras possibilidades de se perceber as relações entre as raças, o brasileiro fez da mestiçagem um valor tão arraigado?

Não há uma resposta simples para essa questão. Um dos mais doces legados de Gilberto Freyre foi nos ter feito realmente acreditar que somos um povo mestiço. A mestiçagem teria começado no momento em que o português desembarcava nestas terras e cedia aos encantos das mulheres indígenas e teria se prolongado com a escravidão, que deu aos senhores a oportunidade de escolherem as escravas “mais belas e mais sãs para suas amantes”. Desse encontro teria nascido a raça mais eugênica e melhor adaptada aos trópicos: o mulato, feliz meio-termo entre a degradação do escravo e os vícios dos senhores.

A pregnância dessa auto-representação tem dificultado a percepção do papel que os próprios intelectuais desempenham continuamente na moldagem da cultura popular. Ao tornar o hibridismo e a ambigüidade modos de ser próprios ao mundo mestiço, a reflexão naturaliza a cultura, fazendo de suas expressões mais visíveis – o malandro com sua dupla moral, o futebol com suas regras claras de combate ao inimigo, o carnaval como momento do deboche autorizado – propriedades de uma alma brasileira que caberia interpretar e descrever.

O meu propósito não é, evidentemente, negar a vivacidade e a inteligência presentes nessas lógicas populares de navegação em uma sociedade que parece notabilizar-se pela distância que promove entre suas regras de convivência formais e as reais. O que gostaria de sublinhar é a necessidade de recusarmos considerar essa formas de perceber o mundo como objetos em si mesmo, legados de uma tradição que perdura desde nosso longínquo passado colonial; é preciso buscar, para além do conteúdo que elas expressam, os atores, as estratégias e os interesses que dão sentido a essas formas de auto-representação. Um bom exemplo de como as expressões da cultura popular são continuamente retrabalhadas simbolicamente pelos intelectuais em função de conjunturas determinadas, é a história da capoeira.

Em seu belo trabalho sobre o tema, O Mundo de Pernas para o Ar, Letícia Reis mostra como intelectuais brancos e negros trabalharam continuamente para recriar a capoeira: os primeiros fazendo dela um esporte; os segundos tentando preservar seu aspecto lúdico e combativo. Nesse processo unificaram-se regras e métodos, codificaram-se os golpes, promoveram-se campeonatos nacionais, mas também recriaram-se simbolicamente tradições regionais, inventaram-se hierarquias associadas às cores dos orixás. Nenhuma dessas características representa um legado imediato das maltas cariocas do século passado. São construções resultantes das estratégias simbólicas de diversos grupos – elites brancas e mulatas, mestres baianos, etc – para, em diferentes momentos históricos, legitimar seu modo de perceber o lugar do negro na sociedade nacional.

Não resta dúvida que, apesar das transformações quanto às formas de organização social e significado que a capoeira sofreu ao longo de seus quase duzentos anos de vida urbana, há algo nessa expressão cultural que permanece: a centralidade do corpo como forma de autonomia, a valorização do confronto indireto da ginga e da malícia, a inteligência dos pés. Isto não quer dizer que ela retrata simplesmente uma maneira de ser. A questão que devemos nos colocar é, pois, por que ela ainda faz sentido: se tais expressões culturais resultam de uma experiência social particular – a relação entre negros e brancos no mundo urbano do Império e da jovem república – por que permanecem significativas até hoje como formas de representação do brasileiro?

A única maneira de responder a essa questão é nos perguntarmos para quem essas expressões culturais fazem sentido: em primeiro lugar, a eficácia dessa representação não implica que a totalidade da população nela se reconheça. Em segundo lugar, apesar da aceitação da cultura mestiça como representação da brasilidade, isto não acarretou uma valorização da condição do negro enquanto tal, que continua, de uma forma mais ou menos generalizada, excluído do Brasil oficial.

Finalmente, se o país parece aceitar com orgulho a malícia de seu povo, sua ginga e malandragem como definidores do seu caráter, ninguém aceita publicamente para si essas qualidades como virtudes. Assim, é preciso que nos perguntemos por que erigiu-se a malandragem, a capoeira, o jogo do bicho, o carnaval como manifestações da nacionalidade, entre tantas outras manifestações possíveis – o gauchismo, o cangaceiro, o barroco, etc..

Tudo leva a crer que essas imagens ainda constituem as melhores metáforas para expressar a incapacidade de o Brasil formal coincidir com o Brasil real. Nesse espaço vazio, o confronto político, direto e explícito, permanece menos eficiente do que a malícia e o jeitinho. Transformar essa condição em caráter é eximir-se de pensar outras formas possíveis, institucionais e simbólicas, de superação desse dilema.

Paula Montero é antropóloga, diretora do Museu de Arqueologia e Etnologia da USP e pesquisadora do Cebrap

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