Em abril de 2002, durante uma etapa da Copa do Mundo de Triatlo, no Japão, Carla Moreno sentiu uma dor intensa. Ela tinha de nadar 1,5 quilômetro, pedalar outros 40 quilômetros e, para finalizar, correr mais 10 quilômetros. Ocorre que, acostumada a terminar as provas com todo o corpo latejando, especialmente as pernas e os braços, a triatleta pouco ligou para os sinais que seu organismo emitiu de que havia alguma coisa errada. “Fiz o de sempre: eu simplesmente deletei a dor”, relembra Carla, que chegou em 5º lugar. Três semanas depois disputou outra prova. Quando foi investigar a razão do desconforto anormal, descobriu que tinha participado das duas provas com uma fratura de estresse: fissuras em três pontos da tíbia, principal osso que liga o tornozelo ao joelho e que, numa corrida, sustenta a maior parte do peso do corpo e absorve o impacto contra o solo.
Essa espécie de microfratura foi provocada por movimentos que o ser humano faz corriqueiramente todos os dias, mas que, repetidos milhares de vezes na vida esportiva, fazem o osso do atleta reagir como um pilar de concreto que se esfarela sob o peso excessivo de uma construção. É um sinal claro de que o corpo foi além de seus limites. Nesses casos, a dor serve de sinal de alerta – ou, pelo menos, deveria servir. “Nem liguei”, relembra Carla, de 27 anos. “Sou capaz de agüentar a dor até desmaiar.”
O relato de Carla, que disputa as Olimpíadas de Atenas pelo Brasil, está longe de ser um caso isolado. A vida do atleta de alto rendimento é marcada pela carga excessiva de esforço físico e pela exposição a lesões em articulações, ligamentos, músculos e ossos. Fruto de treinos diários com milhares de repetições de um mesmo movimento. De saltos e aterrissagens cujo impacto pode se aproximar de 1 tonelada. Do exercício forçado com pesos, para aumentar a massa muscular. Dos jogos em que é comum levar pancadas do adversário ou sofrer contusões provocadas pelos próprios movimentos, bruscos e vigorosos. Das atividades que moem as articulações, submetidas a pressão além do normal. Por conta disso tudo, inchaços, desconforto e dor são companheiros freqüentes do esportista. “Infelizmente, faz parte da realidade dos esportes de competição a máxima ‘No pain, no gain’ (sem dor, não há vitória)”, avalia Moisés Cohen, chefe do Centro de Traumatologia do Esporte, da Universidade Federal de São Paulo (Cete-Unifesp). “O atleta de elite convive tanto com a dor que acaba achando normal senti-la. É justamente essa tolerância que favorece lesões mais graves e permanentes.”
Procurando a melhoria contínua do desempenho, o esportista de competição ignora os limites de seu organismo, com claros prejuízos para a saúde. “O esporte de alto rendimento não é saudável nem provoca bem-estar”, afirma Antônio Carlos da Silva, do Centro de Estudos de Fisiologia do Exercício (Cefe), também da Unifesp. Pesquisas já mostraram que o esporte praticado com moderação faz o organismo produzir endorfina, substância natural que tem estrutura e efeito semelhantes aos de opiáceos, dando ao esportista sensação de bem-estar. Há evidências de que, praticado em excesso, como fazem com freqüência atletas de competição, o esporte faça o corpo produzir cortisol, o hormônio do estresse, que provoca desconforto e é capaz até de diminuir as barreiras imunológicas do organismo.
Aos 21 anos, a ginasta Daiane dos Santos já sofreu três cirurgias nos joelhos: no direito, passou por uma artroscopia em 2003 e, no último mês de junho, por uma artroscopia para retirada de um fragmento de cartilagem; no esquerdo, operou o tendão patelar em 2002. “Faz parte da vida do atleta”, costuma repetir Daiane, quando indagada sobre as dores que sente nos treinamentos e fora deles. Pesquisas de V. P. Panzer e colaboradores, da Universidade de Oregon, Estados Unidos, mostraram que na ginástica a força do solo sobre o corpo na aterrissagem é de 8 a 14 vezes o peso do atleta. No caso de Daiane, isso significaria algo como meia tonelada atuando por uma fração de segundo sobre seus ossos e articulações. “Daiane pode até superar essa marca, pois salta muito alto e isso aumenta o impacto na volta ao solo”, avalia o físico Marcos Duarte, da Escola de Educação Física e Esporte da Universidade de São Paulo (EEFE-USP), especialista na análise dos movimentos humanos (biomecânica). Daiane tem 42 quilos. Imagine o que se passa com os gigantescos jogadores de vôlei. No auge de sua forma, o jogador Marcelo Negrão tinha 90 quilos, distribuídos em 1,98 metro de altura, e dava saltos em que seus pés chegavam a 1,10 metro do solo. O impacto de sua aterrissagem chegou a ser calculado em 900 quilos, e ele repetia esse movimento cerca de cem vezes em um jogo. Isso é parte da explicação para a lesão no joelho direito que o afastou das quadras por um ano e oito meses.
Forçar além do normal
Nos treinamentos, ir além do limite físico do atleta é um princípio básico, visto como a alavanca que gera a evolução. “A idéia é forçar um pouco além do normal para provocar uma adaptação que trará ganho para o indivíduo”, explica Silva. O trabalho é feito em ciclos: primeiro vêm os exercícios, que são levados até a sobrecarga e mantidos até exaurir as reservas do atleta; em seguida, vem a recuperação. Nessa fase, espera-se do organismo uma supercompensação, capaz de repor as reservas e ainda elevar a um novo patamar os recursos do esportista.
Há dois riscos nesse método. Um é negar o devido tempo para a recuperação. “É preciso dar boas pausas. Manter um ritmo além do normal, temporada após temporada, gera um efeito cumulativo de sobrecarga”, diz Silva. Outra atitude de risco é ignorar quando o físico do atleta já atingiu o limite máximo de desenvolvimento. “Com freqüência, o treinador se vê diante de um dilema: será que meu atleta já desenvolveu todo o seu potencial?”, conta o pesquisador. Como uma pequena diferença pode significar uma medalha, há muitos que preferem arriscar e forçar um pouco mais. Também aparece a tentação de aplacar dores e inchaço com analgésicos e corticóides, que podem configurar doping. No esporte de elite, alguns de fato acabam cometendo esses pecados. “Para alguns esportistas e treinadores, vale tudo na busca por resultados”, afirma Silva.
Abusos no esforço de preparação geram quadros conhecidos como de overtraining – ou treinamento excessivo. O atleta passa a ter alterações no humor, problemas para dormir, mudança de apetite e, nas mulheres, início de osteoporose e alterações no ciclo menstrual. Mais: o rendimento começa a cair de maneira aparentemente inexplicável. Diagnosticado no início, o overtraining tem um tratamento prosaico – férias. Mas, quando esses sintomas se tornam crônicos, podem ameaçar a carreira do esportista e o descanso tem de ser prolongado por muitos meses. Infelizmente, é comum o atleta e sua equipe ignorarem os sinais do excesso de treinamento. E, na tentativa de recuperar a performance, fazerem treinamento ainda mais puxado, que acaba agravando o quadro. O pesquisador John Raglin, da Universidade de Indiana, Estados Unidos, estima que a maioria dos corredores de elite de longa distância dá sinais de overtraining pelo menos uma vez em suas carreiras. A cada ano, entre 5% e 15% dos atletas de competição estudados por Raglin apresentaram quadro de overtraining, e de 25% a 30% tiveram pelo menos parte dos sintomas.
Mais comuns na carreira esportiva são as pequenas lesões. É raro encontrar um atleta que não tenha muitas histórias para contar. O joelho é a principal vítima na maioria dos esportes. No futebol, por exemplo, o desgaste parece inevitável. Quem duvidar disso que converse com o atacante Ronaldo, o fenômeno. Sua imagem de dor ao romper o tendão da rótula do joelho direito, em abril de 2000, quando atuava pela Inter de Milão, não deixa dúvidas. O jogador vinha de cinco meses sem jogar, após uma cirurgia exatamente naquele local, e ficou quase um ano e meio afastado das partidas após a segunda contusão. “As lesões podem fazer um jogador de 30 anos ter o joelho igual ao de alguém anos mais velho”, afirma Cohen, em tese, sem se referir ao caso Ronaldo.
Nas modalidades em que é exigida maior explosão, como vôlei, o atletismo de provas rápidas e o próprio futebol, lesões musculares são freqüentes. Nos esportes de muito contato, como é o caso de basquete e handebol, predominam as lesões nas articulações. Mas poucos esportes se comparam ao judô em matéria de moer atletas. “Várias pesquisas já mostraram isso”, sustenta Wagner Castropil, ortopedista especializado em medicina do esporte e ex-judoca. Em 1996, Castropil fez um estudo com cem judocas que competiam e apurou que 70% dos atletas tinham problemas no ombro, 60% no joelho e 55% nas mãos. Essas contusões e lesões levavam alguns desses atletas a se afastar dos treinos por 15 dias ou mais. “O judô é altamente agressivo ao aparelho locomotor e ao sistema esquelético”, afirma Castropil. “Enquanto no vôlei, por exemplo, o choque com a bola dura no máximo um segundo, no judô há esforço brutal nas articulações durante 40, 60 segundos ininterruptos.” Em muitos sentidos os praticantes da natação levam vantagem. Trata-se de esporte que exige muito do sistema cardiorrespiratório, em que não há contato com adversários e o corpo interage com um meio que funciona como amortecedor – a água. De forma geral, os nadadores estão menos expostos a lesões que seus colegas de outros esportes. Em compensação, como nenhuma modalidade é completa, sua postura corporal fora da água nem sempre é das melhores.
Além das dores em si, treinamentos extenuantes e lesões constantes trazem um efeito colateral – o estresse psicológico. Nessa área, o ex-corredor Joaquim Cruz dá um depoimento com tons dramáticos. Em sua carreira de mais de 20 anos, o atleta conseguiu mais cirurgias do que medalhas olímpicas, embora esteja entre os corredores brasileiros de maior sucesso em todos os tempos. Foram duas medalhas – ouro em Los Angeles (1984) e prata em Seul (1988), ambas nos 800 metros rasos – contra oito operações – uma no pé direito, uma no joelho esquerdo e três em cada tendão-de-aquiles. Nem todas as intervenções eram necessárias, afirma hoje o corredor. “Poderia ter evitado algumas cirurgias, mas não agüentava o desgaste emocional de me afastar dos treinos”, relata. “Queria ‘consertar’ o mais rápido possível e voltar a treinar forte.”
Cruz diz que houve momentos em sua carreira em que chegava à pista de treinamento e “tinha vontade de correr para trás”. O cansaço físico e emocional era tamanho, relembra, que qualquer coisa seria melhor do que repetir a rotina de correr para a frente. Ele descreve essa forma de estafa como dor – “uma dor psicológica’’ –, embora fosse bem diferente do desconforto físico que o acompanhava no início da carreira. Quando começou, Cruz costumava ter desarranjos intestinais e falta de apetite antes da competição, que davam lugar a vômito e ardor nas pernas até meia hora após a corrida. Sem falar nas inúmeras vezes em que, durante toda a carreira, teve a impressão de que iria desmaiar durante a corrida. “Eu sentia que iria travar, mas insistia e achava energia além do limite”, relembra. Nada disso abalou sua convicção de que o esporte de competição compensa. “Parece que a gente já nasce para competir, pensando em vencer”, afirma. Para ele, quem vira atleta tem maior tolerância à dor.
O tenista Gustavo Kuerten, de 27 anos, é outro atleta que convive com a dúvida sobre ter feito a coisa certa ao se submeter a uma cirurgia. Dois anos após ter operado o quadril, que apresentava desgaste em uma articulação, o tenista admite que ainda vive em função da recuperação. Ele revela que está com 70% de sua capacidade, mas diz que para jogar em nível competitivo é preciso estar 120%. Em jogos, começa a sentir dores após meia hora ou pouco mais. Isso “suga sua energia”, como definiu em entrevista à revista Veja em julho. Guga tentou mudar a maneira de bater na bola após a cirurgia, mas não se adaptou. Por sinal, a forma como os tenistas passaram a golpear a bola é um dos motivos para as contusões mais freqüentes no quadril e na virilha em atletas ligados ao esporte. Até os anos 1980, o mais comum era que, num golpe de direita, projetassem a perna esquerda à frente. Agora os tenistas mantêm as pernas paralelas, como faz Guga, o que permite maior amplitude ao movimento e maior potência ao golpe. Um estudo do médico Rogério Teixeira, da Unifesp, mostrou que o efeito colateral dessa nova forma de bater foi aumentar o desgaste de músculos e articulações do quadril, devido à brusca rotação do tronco.
Mas, afinal, se a vida do atleta é tão sofrida, por que tantas pessoas se submetem a isso? A questão é que esporte de competição não é atividade física para aumentar o bem-estar e a saúde. Esporte de alto rendimento é profissão. É um caminho para ter dinheiro, fama, influência e – sim, também isto – desafiar os limites do homem. Assim, a pressão para conseguir bons resultados envolve valores que ultrapassam a ética exclusivamente esportiva. “Vivemos numa era em que o que importa é vencer”, afirma a psicóloga Katia Rubio, da EEFE-USP. “Na publicidade, na escola, no trabalho, valoriza-se a competição e o vencedor. O mundo do esporte e a cabeça do atleta são um espelho disso.” A pesquisadora desenvolveu, com apoio da FAPESP, um projeto em que entrevistou todos os atletas brasileiros vivos que ganharam medalhas olímpicas de 1920 a 2000, cujo resultado foi o livro Heróis olímpicos brasileiros, lançado neste ano. Para Katia, os princípios éticos que pautavam o esporte amador ficaram no passado e hoje predomina a competição extrema. “O atleta que quer a vitória a todo custo está mais suscetível a ignorar seus limites”, diz.
Já vai longe o tempo em que Adhemar Ferreira da Silva preferiu continuar pagando aluguel a aceitar uma casa para morar com os pais, após ter conquistado a medalha de ouro nos jogos de Helsinque (1952). Na ocasião, isso poderia parecer remuneração, e Adhemar pretendia concorrer nos jogos seguintes – nos quais, por sinal, voltou a ganhar o ouro no salto triplo. Quando o nadador Mark Sptiz ganhou sete medalhas de ouro, em Munique (1972), houve suspeitas de que já tinha um contrato de patrocínio disfarçado com um fabricante de material esportivo. “Ele foi para o pódio com um par de tênis amarrado no pescoço”, relembra Katia. Nos jogos de Moscou (1980), o amadorismo foi definitivamente deixado de lado pelas regras olímpicas. Hoje há desafios como o feito pela Speedo ao nadador norte-americano Michael Phelps, de 19 anos, que ganhará US$ 1 milhão se igualar o recorde de medalhas de Spitz.
Apesar disso, a psicóloga não acredita que os interesses comerciais tenham enterrado de vez o espírito olímpico e instalado um vale-tudo no esporte mundial. Para a psicóloga, o espírito esportivo ainda prevalece em países com menos estrutura no mundo do esporte, como é o caso do Brasil. “Aqui, ainda vivemos um misto de persistência, determinação e teimosia”, afirma Katia, lembrando que atletas brasileiros ficam sem patrocínio mesmo após ganhar medalhas.
Um agravante no sofrimento e nas lesões dos atletas é o fato de começarem a treinar cedo, quando ainda são muito jovens. Acontece que “criança não é adulto pequeno”, como relembra Antônio Carlos da Silva. Seus sistemas muscular, cardiovascular e nervoso não estão preparados para sobrecarga de exercícios. “Há o risco de hipertrofiar um sistema e ignorar os outros”, exemplifica. “Resultado possível: um atleta com coração que não acompanha o desenvolvimento dos outros sistemas do organismo coloca sua vida em perigo.” Moisés Cohen diz que não é raro atender crianças e adolescentes que chegam ao centro de traumatologia da Unifesp com lesões provocadas por sobrecarga de exercícios. Para ele, a busca por espaço tem parte da culpa por terem ultrapassado os limites. “Eles se lesionam tentando se afirmar em um meio extremamente competitivo”, afirma. Sem dúvida é possível, sim, começar a treinar cedo para o esporte competitivo. Mas o correto, segundo os especialistas, é o jovem atleta ter acompanhamento multidisciplinar e se exercitar respeitando o nível de maturidade de seu conjunto físico.
Quando o esportista ficar mais velho, seu corpo vai agradecer. Poderá ter uma vida mais confortável e uma carreira possivelmente mais longa – as lesões são fator importante no abandono das competições. Acima de tudo, terá menos problemas quando ganhar mais idade – hora em que o organismo apresenta a conta por todos os abusos atléticos cometidos ao longo da vida. Não é raro que artroses, tendinites crônicas e lesões por esforço repetitivo transformem a vida do esportista aposentado em um martírio. “Vemos até gente com dificuldade de andar”, conta o médico Wagner Castropil. Em 1989, já no final de sua carreira, a ex-jogadora de basquete Hortência teve de acolchoar o genuflexório da igreja em que casou, caso contrário não suportaria uma dor no joelho que já a acompanhava havia décadas. Ela também tem uma dor histórica no tornozelo e tendinite persistente no ombro, devido a anos e anos fazendo mais de mil arremessos diários. O ex-jogador de basquete Oscar Schmidt não pode ficar com o joelho esquerdo dobrado mais de uma hora e meia. No cinema, precisa dar uma levantadinha no meio da projeção para se esticar. Seu menisco tem a forma de um “V”, o que o impede de dobrar a perna direita totalmente. Também tem vários dentes quebrados.
Ironicamente, os exercícios físicos moderados são a melhor receita de saúde para atletas aposentados. Castropil cita um estudo finlandês que, analisando atletas que participaram de Olimpíadas no início do século 20, verificou que aqueles que continuaram se exercitando após deixarem as competições tinham estado geral de saúde melhor do que um sedentário. Para os que pararam de se exercitar, no entanto, o tempo foi implacável. “Esses ex-atletas sem exercício tinham saúde geral pior do que uma pessoa sedentária”, conta Castropil. A verdade é que muitos atletas gostam de se consolar com uma máxima já consagrada: a dor é passageira, a glória é para sempre. Ciência e experiência deixam cada vez mais claro que a frase é tão impactante quanto questionável.
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