Imprimir PDF Republicar

Resenhas

A outra travessia

Escravos daqui, dali e de mais além. O tráfico interno de cativos na expansão cafeeira paulista José Flávio Motta Alameda Editorial 387 páginas, R$ 67,00 (preço estimado)

Durante 300 anos o tráfico negreiro transatlântico foi o motor da economia brasileira. As estimativas mais recentes calculam que, entre meados do século XVI e meados do século XIX, mais de 4.860.000 africanos desembarcaram em nossos portos, o que representa cerca de 40% de todos os seres humanos que foram embarcados como escravos na África com destino ao Novo Mundo. Essa terrível engrenagem econômica, que produziu, em um mesmo movimento, sofrimento e riqueza inauditos, continuou a funcionar no Brasil após 1850, não mais pela via oceânica, mas agora por caminhos terrestres e pela navegação costeira.

O tráfico interno de escravos – isto é, a compra e venda de cativos dentro do Brasil, fossem nascidos na África, fossem nascidos aqui – coexistiu desde sempre com o tráfico transatlântico. Na segunda metade do século XIX, porém, ele adquiriu novo volume e sentido. Em que pesem as dificuldades para uma quantificação precisa, os especialistas calculam que entre 220 mil e 300 mil escravos tenham sido transacionados no mercado interno brasileiro nos 38 anos compreendidos entre a abolição do tráfico (1850) e a abolição da escravidão (1888). O destino deles também se tornou mais concentrado. Em sua grande maioria, os trabalhadores escravizados vendidos no mercado interno foram direcionados para as províncias cafeeiras do Centro-Sul do Brasil, isto é, Minas Gerais, Rio de Janeiro e, sobretudo, São Paulo.

José Flávio Motta, professor da Faculdade de Economia e Administração da USP, acaba de lançar um livro que traz novas luzes para a compreensão dessa outra travessia. Escravos daqui, dali e de mais além. O tráfico interno de cativos na expansão cafeeira paulista resultou de uma vasta pesquisa, originalmente defendida como tese de livre-docência. Motta examina 1.656 escrituras de compra, venda, permuta e doação, lavradas entre 1861 e 1887, e que envolveram 3.677 escravos nos municípios paulistas de Areias, Guaratinguetá, Piracicaba e Casa Branca. Tal recorte é bastante significativo. Essas cidades se localizavam no coração do Vale do Paraíba (as duas primeiras) e nos chamados “Oeste Velho” (Piracicaba) e “Oeste Novo” (Casa Branca) de São Paulo, regiões que estiveram, em distintos momentos do século XIX, dentre as maiores produtoras mundiais de café.

O livro ilumina de forma admirável a dinâmica de funcionamento demográfico e econômico dos negócios negreiros. Enquanto os capítulos 1 e 2 resumem muito bem o movimento territorial da cafeicultura no espaço paulista e os principais achados da historiografia relativa ao tema do tráfico interno no Brasil, os outros três são divididos conforme a periodização adotada para se compreender os fluxos do comércio de escravos.

Na década de 1860 (capítulo 3), em sua maioria os cativos foram transacionados dentro da própria província de São Paulo, as compras prevalecendo sobre as vendas nos municípios examinados, expressão da prosperidade concomitante da cafeicultura no Vale do Paraíba e no Oeste Velho. Na década de 1870 (capítulo 4), notadamente após 1873, o tráfico interno para a cafeicultura paulista viveu seu momento mais intenso, com o predomínio de compras interprovinciais que privilegiavam jovens do sexo masculino, em uma retomada do modelo demográfico nefasto do tráfico transatlântico. Na década de 1880 (capítulo 5), já sob os efeitos da pressão abolicionista e da interdição do tráfico interprovincial, os municípios nos quais a atividade cafeeira perdera competitividade – caso de Areias – tornaram-se vendedores de escravos; Casa Branca, na fronteira cafeeira do Oeste Novo, continuou adquirindo a mercadoria humana até o ano anterior à Abolição. Em cada um desses capítulos, variáveis como idade, sexo e preços dos escravos são examinadas prestando-se atenção às distintas posições ocupadas pelos quatro municípios no tempo e no espaço, isto é, ao seu caráter cambiante como zonas pioneiras, maduras ou decadentes da cafeicultura.

O cruzamento cuidadoso entre as conjunturas do café, a política da escravidão e a dinâmica do tráfico interno oferece contribuições decisivas para outros campos da historiografia sobre a escravidão brasileira. Para ficarmos em apenas um exemplo: a demografia produzida pelo tráfico interno ajuda a entender por que a associação do movimento abolicionista com a revolta das senzalas teve um de seus epicentros justamente no oeste de São Paulo, e não no Vale do Paraíba.

Rafael Bivar Marquese é professor do Departamento de História da Universidade de São Paulo.

Republicar