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Ficção

A vida ao microscópio

No começo de minha carreira médica dediquei-me, por certo tempo, à anatomia patológica. Naquela época não havia residência ou qualquer tipo de curso de aperfeiçoamento nesta área; aprendia-se trabalhando com colegas mais experientes. Foi o que fiz. Consegui um emprego num pequeno laboratório que funcionava numa velha casa na Cidade Baixa. A equipe constava de três especialistas (três irmãos, a propósito), de auxiliares e do pessoal administrativo. Na verdade era como se fosse uma família; os três médicos, pessoas gentis, faziam questão de criar um ambiente acolhedor para pacientes e para a própria equipe. Na sexta-feira tínhamos uma happy hour, um momento de confraternização. E aí o Quinzinho cantava para nós, desafinado mas alegre.

O nome dele era Joaquim. Viera de uma cidade do interior. Ainda jovem, tinha uns poucos anos de estudo, mas compensava a falta de conhecimento com uma enorme inteligência e uma não menor dedicação. Quinzinho era, como se costuma dizer, pau para toda a obra. Fazia qualquer coisa: preparava o material para as lâminas, providenciava os produtos químicos necessários e, depois do expediente, limpava e arrumava o laboratório. Levar cartas no correio? Quinzinho ia. Entregar resultados de exames no hospital? Ia também. Sempre alegre, sempre disposto. E bom papo. Eu gostava de ouvir suas histórias. De família muito pobre, provavelmente teria seguido o caminho do pai, tornando-se operário em uma fábrica de calçados. Mas Quinzinho queria ir além. Quinzinho queria ser médico patologista.

De onde vinha esta, até certo ponto, curiosa aspiração? Nem ele sabia dizer direito. Aparentemente, havia sido motivado por duas coisas. Em primeiro lugar, por um filme que, em criança, vira na tevê; uma trama de mistério em que um patologista resolvia um caso complicado. Depois, pelo microscópio.
O instrumento lhe chegara às mãos por acaso. Para reforçar o orçamento familiar, Quinzinho fazia bicos nos fins de semana; lavava carros, pintava casas, cortava grama. Um de seus clientes era um professor de biologia, e foi na casa desse homem, já idoso, que Quinzinho viu um microscópio, antigo, mas de marca afamada. Perguntou ao professor se podia dar uma espiadinha. O homem disse que sim, e mostrou ao maravilhado rapaz a estrutura de um fio de cabelo. Quinzinho ficou deslumbrado: estava descobrindo um mundo novo, desconhecido. Daí em diante, cada vez que vinha à casa do professor, pedia para usar o microscópio. E fez um trato com o homem: cortaria a grama de graça em troca de algumas lições sobre o uso do aparelho. Não foram muitas: o professor, doente, faleceu. No velório, Quinzinho criou coragem e foi falar com a filha dele. Disse quem era, contou sobre a experiência com o microscópio. A mulher ouvia-o com crescente impaciência e mal disfarçada irritação.

Lá pelas tantas, interrompeu-o:
– Mas, afinal de contas, o que é que você quer?

– Eu queria o microscópio de seu falecido pai…

Ela mirou-o, ultrajada:
– Você? Você quer o microscópio do meu pai? Mas você não se enxerga, rapaz? Você, um ignorante, um grosso – usar o instrumento que foi de um grande professor? Desapareça daqui!
Orelhas ardendo, Quinzinho bateu em retirada. Confuso, humilhado – mas decidido: não desistiria do microscópio. Um dia haveria de usá-lo, na qualidade de profissional, de cientista.

A primeira providência para isso era mudar-se para a capital e foi o que Quinzinho fez, apesar da oposição da família. Seu plano era trabalhar e estudar – e entrar na universidade. Poderia estudar biologia, como o professor. Ou mesmo medicina. Qualquer área, enfim, que lhe desse a oportunidade de usar o microscópio.

Teve vários empregos: foi servente de pedreiro, trabalhou numa oficina mecânica. Um dia, passando pelo laboratório, viu o anúncio, pedindo um auxiliar. Entrou, falou com um dos donos. Que ficou impressionado com a vivacidade e a determinação do rapaz. Deu-lhe o emprego.

Quinzinho não poderia ter desejado coisa melhor. Ali estava no meio de microscópios, vários deles. Depois do trabalho, e com licença dos donos, olhava as lâminas com tecidos de biópsia ou de órgãos retirados em cirurgia. Aos poucos, foi aprendendo a identificar o que via ali. Sabia diferenciar fígado de baço, sabia quando um tumor era benigno e quando era maligno. Os médicos ficavam surpresos com aquela habilidade; um deles até lembrou o caso de um famoso hematologista argentino que nunca tinha cursado a universidade.

Não era o caso de Quinzinho. Ele queria, sim, estudar. Começou a cursar o supletivo, à noite. Mas, paradoxalmente, isto lhe era difícil; muitas vezes até adormecia durante uma aula.

– Assim nunca passarei no vestibular – suspirava.

Àquela altura eu já tinha me tornado seu amigo e confidente. Procurava animá-lo: o que é isto, Quinzinho, você é inteligente, o vestibular não será problema para você. No fundo, porém, eu tinha dúvida em relação a isso. Não deu outra: terminando o curso, fez o vestibular para medicina e foi reprovado. Uma decepção neutralizada, no entando, por uma surpresa. Naquele ano realizava-se na cidade um congresso nacional de anatomia patológica. Um dos diretores do laboratório resolveu apresentar Quinzinho aos participantes. Que ficaram verdadeiramente assombrados com o rapaz. Entregaram-lhe 20 lâminas para que fizesse o diagnóstico; ele acertou em 19 (o vigésimo caso era tão complicado que suscitou dúvidas entre os próprios patologistas). O assunto acabou chegando a uma revista de circulação nacional, que publicou uma matéria a respeito intitulada “Cientista sem diploma”. Ali estava uma foto do Quinzinho, sorridente, junto ao microscópio.

Estas coisas animaram-no e ele resolveu tentar de novo o vestibular; desta vez tinha certeza de que seria aprovado.
Não chegou a fazer a prova, porém. Um dos vários sinais que tinha na pele começou a crescer rapidamente. Ele procurou o dermatologista. A lesão foi excisada e examinada em nosso laboratório. Era um tumor maligno, um melanoma. Que evoluiu rapidamente, mesmo porque àquela época não havia tratamento adequado para esse tipo de tumor. Dois meses depois foi hospitalizado e veio a falecer, com metástases generalizadas.

Nós nunca lhe revelamos o diagnóstico. Dizíamos que era uma coisa benigna, que tinham surgido algumas complicações, mas que ele ficaria bem. Aparentemente ele acreditava em nós, o que era, para todos, um alívio. Ao menos tem esperança, pensávamos. Ao menos morrerá iludido.

Iludidos estávamos nós. Depois do enterro, a família foi recolher as coisas dele, no pequeno apartamento que dividia com dois amigos. E ali estava, entre os seus livros e cadernos, uma lâmina. O pai trouxe-a para o laboratório. Ninguém precisou olhá-la: sabíamos que ela tinha saído dali mesmo, e que o diagnóstico seria de melanoma, um tumor maligno que às vezes atalha vidas, extingue sonhos – mas não termina com a grandeza que caracteriza os verdadeiros cientistas.

Moacyr Scliar é médico e escritor, membro da Academia Brasileira de Letras e autor, entre vários livros, de A orelha de Van Gogh e Saturno nos trópicos.

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