Desde muito cedo, Anna Curtenius Roosevelt sabia que seria arqueóloga. A mãe, a pintora Frances Blanche Webb Roosevelt (1917-1995), certamente a influenciou. Viveu parte da infância entre arqueólogos no Arizona e no Novo México, no sudoeste dos Estados Unidos, e mais tarde passou a levar as filhas – Alexandra, Susan e Anna – para conhecer os sítios arqueológicos da região. “Foi assim que me interessei pela área”, conta Anna Roosevelt. Professora de antropologia na Universidade de Illinois, em Chicago, ela é reconhecida como uma das mais proeminentes especialistas em arqueologia da Amazônia. Sua atuação no Brasil, porém, é vista com reserva por certos grupos de arqueólogos. Uma das queixas é que ela não formou discípulos brasileiros. Outra é que levou parte do material escavado para os Estados Unidos.
Anna Roosevelt pensou inicialmente em se dedicar à arqueologia clássica e estudar as culturas antigas do Oriente Médio. Durante a graduação na Universidade Stanford, no entanto, um estágio no Museu de História Natural de Nova York lhe abriu os olhos para a América do Sul. No doutorado, pela Universidade Columbia, estudou as comunidades que viveram nas planícies inundáveis do rio Orinoco, na atual Venezuela, antes da chegada do colonizador europeu à América. Seu trabalho ali e em sítios arqueológicos na ilha de Marajó e em Santarém, ambos no Pará, ajudaram a reinterpretar a ocupação ancestral da Amazônia e do próprio continente americano.
Em colaboração com pesquisadores do Museu Paraense Emílio Goeldi, Roosevelt identificou em sítios arqueológicos do município de Monte Alegre, próximo a Santarém, no oeste do Pará, pinturas rupestres de quase 13 mil anos – uma delas é considerada o observatório solar mais antigo do mundo.
Bisneta do presidente norte-americano Theodore Roosevelt Junior (1858-1919), que realizou duas expedições à Amazônia no início do século passado, Anna Roosevelt nunca deixou de retornar ao Brasil, onde planeja realizar novas escavações nos próximos anos. A seguir, leia os principais trechos da entrevista concedida a Pesquisa FAPESP, por telefone, em 11 de outubro.
Especialidade
Arqueologia
Instituição
Universidade de Illinois, em Chicago
Formação
Graduação em arte, história, letras clássicas e antropologia pela Universidade Stanford (1968) e doutorado em antropologia pela Universidade Columbia (1977)
Produção
Cerca de uma centena de artigos científicos, além de livros e capítulos de livros
Seu trabalho ajudou a mudar a compreensão de como se organizavam os assentamentos humanos pré-históricos na América do Sul. Como chegou a conclusões diferentes daquelas dos arqueólogos que a antecederam?
Por volta da década de 1950, os pesquisadores que produziram hipóteses sobre a arqueologia da Amazônia mudaram a teoria que prevalecera até então. No final do século XIX, naturalistas como Domingos Soares Pereira Penna [1818-1888] e Emílio Goeldi [1859-1917] compreendiam a complexidade das sociedades amazônicas. Os arqueólogos que trabalharam mais tarde na região, como Betty Meggers [1921-2012] e seu marido, Clifford Evans [1920-1981], norte-americanos da Smithsonian Institution, pensavam que apenas regiões desérticas com grandes rios, como o Nilo ou os rios dos vales mexicanos, suportariam civilizações com culturas complexas. O interessante é que se sabe que os seres humanos arcaicos emergiram na África em região de florestas tropicais, e não de savana. Ainda que fôssemos animais de floresta tropical no início, Meggers e Clifford concluíram que os seres humanos não poderiam sobreviver em florestas tropicais por causa das doenças e da dificuldade de cultivar alimentos. Para eles, as únicas civilizações que teriam existido na Amazônia seriam originárias de outra região e teriam desaparecido rapidamente.
O que a levou a pensar diferente deles?
No início da minha carreira, eu não lidava com a floresta tropical. Estava interessada em agricultura. Sabia que os rios Orinoco e Amazonas ocupavam planícies inundáveis maiores que a do Nilo e tinham bons solos. Meu raciocínio foi de que isso teria sido suficiente para comportar grupos humanos capazes de desenvolver cultura complexa. Em meu doutorado, mostrei que, na região do Orinoco, as pessoas teriam praticado agricultura intensiva durante o crescimento da população antes da colonização europeia. Meu foco eram as sociedades das planícies inundáveis, as várzeas. À medida que aprendi mais sobre as florestas tropicais e a geologia da Amazônia, percebi que havia diferentes tipos de florestas, mesmo em áreas de terra firme, com solos gerados pela erosão dos Andes e bons o suficiente para suportar a agricultura. Esse tipo de solo poderia ser cultivado de modo intensivo, desde que fossem construídos terraços para retê-lo ou se usassem resíduos orgânicos como fertilizantes, caso das terras pretas de índio. No Sudeste Asiático, em muitas áreas em que surgiram culturas complexas, como a Khmer, houve agricultura intensiva em floresta tropical. Na Amazônia, sociedades complexas poderiam ter existido em regiões de terra firme, dependendo da natureza do solo e das estratégias de plantio. Esses povos não derrubavam a floresta nem a queimavam. Desenvolveram uma forma de manejo agroflorestal. Nas planícies inundáveis de grandes rios, como os da região de Llanos de Moxos, na Bolívia, ou dos rios Ucayali, no Peru, e Orinoco, nas Guianas, revolviam e drenavam o solo, faziam terraplanagem e usavam a terra intensivamente para a agricultura. No interior da floresta, cultivavam pomares.
Por onde você começou seu trabalho antes de vir para o Brasil?
Fiz minha tese a partir do trabalho de campo na região do rio Orinoco, na Venezuela. Depois, pedi financiamento ao governo dos Estados Unidos para analisar coleções de materiais da Amazônia guardados em museus da América do Norte, da América do Sul e da Europa. Foi uma grande oportunidade de viajar pelo Peru e pela Colômbia. Em minha primeira ida ao Brasil, em 1980 ou 1981, tive a oportunidade de ver em Santarém a terra preta de índio e percebi que aquele tipo de solo era formado a partir de lixo de habitações grandes. No Museu Americano do Índio, nos Estados Unidos, e no Museu Paraense Emílio Goeldi e no Museu Nacional, no Brasil, vi pontas de projétil de sítios de cultura paleoíndia [que existiu entre 13 mil e 10 mil anos atrás], algumas coletadas pelo arqueólogo Mário Simões (1914-1985). Notei que a duração dessas culturas na Amazônia era maior do que diziam os livros-texto.
As sociedades complexas de Marajó seriam comparáveis às do início da cultura egípcia
Como conseguiu fazer suas primeiras escavações?
Foi por intermédio do geólogo José Seixas Lourenço, diretor do Goeldi à época, que estava trabalhando em Marajó. Eu lhe dei uma cópia de minha tese de doutorado, e ele deve ter imaginado que meu trabalho poderia validar o dele, o que de fato ocorreu. Embora Simões e eu fôssemos amigos, ele não me teria concedido permissão para escavar. Simões não classificou as pontas de projétil como sendo de paleoíndios: disse que era da cultura arcaica, que surgiu por volta de 10 mil anos atrás, na sequência da cultura paleoíndia. Na época, os arqueólogos norte-americanos influenciavam a opinião de todos e afirmavam que a única cultura paleoíndia era a de Clóvis, no Novo México, Estados Unidos. As pontas encontradas na Amazônia, no entanto, eram diferentes das de Clóvis. Tinham pedúnculo [pequena haste] e eram triangulares. Outras pessoas que estudavam as culturas paleoíndias na Amazônia, na Califórnia e no Peru chegaram às mesmas conclusões que eu. A transição que havia sido imaginada da cultura Clóvis, quando as pessoas caçavam animais de grande porte, para a do período arcaico, quando os indivíduos se alimentavam de plantas e peixes, nunca aconteceu. Constatamos que, nas áreas costeiras e ao longo dos rios, as pessoas nunca foram caçadoras de grandes animais, mas forrageiras de amplo espectro. Arqueólogos como o brasileiro Oldemar Blasi [1920-2013] e o norte-americano Wesley Hurt [1917-1997], que haviam trabalhado em Lagoa Santa, Minas Gerais, sabiam disso. O que observamos não era muito diferente do que outros estavam encontrando. Olhar a sequência completa de culturas da Amazônia permitiu aprimorar a história de como se deu a ocupação da região e compreender como viviam os paleoíndios em outras partes do continente.
Havia diferença entre o modo de vida dos paleoíndios na Amazônia e os de outros lugares do que hoje é o Brasil?
Não. Alimentavam-se de peixes pequenos, frutos e óleos de palmeiras, como murici, ou da vagem de leguminosas, como o jatobá. Também comiam animais pequenos. Adoravam tartarugas.
Foi importante começar os estudos pelas coleções de museus?
Aprendi muito com essas coleções. Na de Harvard, havia conchas e cerâmica coletadas na década de 1870 no Brasil pelo geólogo canadense Charles Hartt [1840-1878]. Hartt e Pereira Penna haviam descrito sambaquis amazônicos do período arcaico. Usei as conchas para datar o sambaqui de Taperinha, próximo a Santarém, antes de ir para lá. Dava 6 mil anos de idade. Quando escavamos a parte mais profunda de Taperinha, que tem mais de 6 metros de espessura, encontramos cerâmicas mais antigas. A cerâmica encontrada em Pedra Pintada, em Monte Alegre, tinha cerca de 7,5 mil anos, quase 500 anos a mais do que a mais antiga de Taperinha. Meu objetivo inicial era escavar nessa região, que abrigava mais culturas. Havia material de paleoíndios e cerâmica do período arcaico. Essa cerâmica, aliás, representa uma forma de adaptação completamente nova e contribuiu para compreender o povoamento das Américas. Ela indica que muito cedo os grupamentos humanos assumiram ocupações sedentárias, ao se tornarem dependentes de uma alimentação à base de peixes e moluscos.
Esse foi o local mais importante em que trabalhou na Amazônia, não?
Foi lá que identificamos a presença de paleoíndios na Amazônia. O material arqueológico encontrado também retrata uma sequência completa das culturas que existiram na região no passado.
O que essa sequência de culturas revela?
Mostra um dinamismo e uma criatividade enormes. Há exemplos de arte monumental desde os primeiros momentos. A maior parte das pinturas tem mais de 1 metro e vários painéis têm muitos metros de extensão. Em Serra da Lua, são 500 metros de pinturas. Na caverna de Pedra Pintada e no Painel do Pilão, em Monte Alegre, eu e meu aluno Chris Davis encontramos pigmento de tinta nas camadas mais antigas. As pinturas são o primeiro registro que esses povos deixaram. De acordo com a tese de doutorado de Chris, uma delas configura um observatório solar, importante para saber em que período do ano estavam. Esse painel é o mais antigo observatório solar que se conhece no planeta, datado de 13 mil anos atrás, início do período paleoíndio, grupo que permaneceu por 1 mil a 2 mil anos na região. Em Marajó, a tradição de pintar cerâmicas começou no início da era cristã e, entre os Shipibo, no Peru, continua até hoje. Eles eram curiosos e inteligentes. Dos primeiros paleoíndios às culturas atuais, peixes pequenos sempre foram parte importante da alimentação, além de frutos de palmeiras e outras árvores. Eles usavam e ainda usam a floresta de modo inteligente. Em alguns lugares, cultivavam as planícies alagáveis de modo intensivo, produziam milho e outras culturas. Ao mesmo tempo, plantavam árvores que geram frutos mais nutritivos, como os de palmeiras, o pequizeiro e a castanheira, e produziam muita comida. É possível produzir muito mais alimento e por mais tempo dessa forma do que cultivando soja ou criando gado.
Como foi seu trabalho em Marajó?
Analisamos vários terraços. Alguns haviam sido ocupações domésticas, e não apenas centros cerimoniais. Havia lixos e fogões. No final do século XIX, os alunos de Hartt já haviam compreendido isso. Os arqueólogos do início do século XX, porém, não usaram essas informações. As escavações revelaram que por quase um milênio uma população grande teria vivido em Marajó.
No seu livro Moundbuilders of the Amazon, você descreve esse povo como sendo parte de uma civilização de certo modo semelhante a outras civilizações ocidentais, como a egípcia. Quais as semelhanças entre elas?
As sociedades complexas de Marajó seriam comparáveis às do início da cultura egípcia ou às primeiras sociedades complexas do Oriente Médio, como a de Çatalhoyuk, na Turquia. O que chamamos de cultura egípcia é uma combinação de milênios de desenvolvimento. As sociedades complexas iniciais existiram bem antes das primeiras dinastias de faraós, que construíram as pirâmides. É com isso que se parecia a cultura marajoara. Seria semelhante também às culturas formativas do México, Peru ou da Ásia. Elas passam por etapas similares de adaptação e de desenvolvimento. Criavam monumentos cerimoniais, embora variasse a forma como organizavam os assentamentos. Marajó, por exemplo, tem mais sítios – e maiores – do que os da cultura Çatalhoyuk.
O que a levou ao sul do Pará, depois de ter trabalhado em Marajó e Santarém?
Fui investigar o que teria acontecido com a cultura de paleoíndios em áreas interfluviais [regiões de terra firme entre os rios]. Um piloto de avião interessado em arqueologia levou a foto de uma ponta de projétil ao Museu Goeldi e um dos meus colaboradores lá, o arqueólogo Mauro Vianna Barreto, hoje pesquisador da Universidade Federal do Pará [UFPA], me encaminhou. Era o mesmo tipo de ponta de projétil que eu havia encontrado em Pedra Pintada. Fiz contatos e descobri que estava com um dono de hotel em Castelo dos Sonhos, no Xingu. Com ele, consegui o nome de um antigo minerador chamado Waldemar, que a havia encontrado.
O minerador a ajudou?
Eu e a arqueóloga Maura Imazio da Silveira, uma amiga de longa data que trabalhava no Museu Goeldi, fomos visitá-lo. Perguntei se ele havia encontrado algum objeto de madeira ou palha, que pode se manter preservado na água. Ele me disse: “Espere um minuto. Quero mostrar uma coisa”. Retornou com uma peça de madeira que parece ter sido parte de um arpão e que havia sido preservada na água. Foi um dos momentos mais emocionantes da minha carreira. Logo imaginei que aquela ponta de projétil fizesse parte de um arpão. Ela data de uma época em que o sítio arqueológico Curupité era uma corredeira e provavelmente era usada para fisgar peixes durante a piracema. Agora essa área está submersa, a 12 metros de profundidade. Waldemar entrou em um pequeno avião comigo e com Maura e sobrevoamos a região em que havia sido achada, no rio Curuá. Marcamos as coordenadas do local no GPS e depois voltamos de barco ao local. Na segunda vez em que estivemos lá, Ney, genro de Waldemar, mergulhou conosco e nos mostrou onde havia sido encontrada a ponta de projétil.
Vocês retornaram a Curupité? Encontraram algo mais?
Fomos outras vezes e precisamos retornar. Fizemos um bom mapa desse sítio arqueológico subaquático, mas precisamos escavar para compreender melhor a cultura que viveu ali. Curupité é importante por revelar que há sítios submersos na Amazônia, relevantes por preservarem bem os materiais. Também pode haver sítios de paleoíndios na região do rio Negro, no Amazonas. Tempos atrás integrantes de etnias atuais entregaram pontas de projéteis achadas na região à geóloga Elena Franzinelli, da Universidade Federal do Amazonas. São pontas semelhantes às de Curupité. Preciso da colaboração de oceanógrafos para estudar a região. Uma das coisas interessantes sobre a história cultural amazônica é que, em certos lugares, as mulheres pareciam ser mais importantes do que os homens como governantes, como relatou o missionário espanhol Gaspar de Carvajal (1500-1584). Por exemplo, encontrei só uma imagem de homem representada na arte monumental de Marajó. A maioria das figuras é feminina.
Há indícios de que as mulheres tinham um papel importante nessas culturas?
É comum as mulheres terem proeminência nas primeiras sociedades complexas. No Egito, algumas das primeiras dinastias eram matrilineares e o governo frequentemente era exercido por duas pessoas: um homem e sua mãe, a rainha-mãe. Chamo esse sistema de governo dual, que também existiu em muitos reinos africanos de regiões tropicais no período colonial. Uma sociedade amazônica atual, os Shipibo, do Peru, representa na cerâmica as mulheres com roupas e pinturas dos xamãs. É uma cultura matrilinear com a mulher como chefe da casa da família, de acordo a Ronald Weber. Já no rio Negro a maior parte das sociedades é patrilinear. Em entrevistas a antropólogos, no entanto, vários povos atuais do rio Negro dizem ser originalmente descendentes de uma sociedade comandada por mulheres que teria vivido em uma grande ilha na foz do Amazonas. Para mim, é Marajó.
Por que Marajó?
Esses povos representam em suas cerâmicas e pinturas a anaconda, o espírito animal da “mulher-xamã”. Existe a hipótese de que os povos de áreas da Amazônia com solos pobres, como nas proximidades do rio Negro, formam, por razões desconhecidas, sociedades patrilineares. Ao longo da várzea do Amazonas, porém, as culturas são matrilineares, como os povos antigos de Marajó e os Shipibo, que vivem até hoje em uma planície inundável do rio Ucayali, no Peru, um tributário do Amazonas. As mulheres tiveram um papel mais importante nas regiões de várzeas do que em outras áreas. No século XVII, o missionário jesuíta Samuel Fritz (1654-1728) reportou a existência de um povo com tradição policroma [que pinta suas cerâmicas de vermelho, branco e preto] no Amazonas, no qual as mulheres faziam as cerâmicas. Fritz perguntou o significado do padrão pintado, o mesmo observado em Marajó, e lhe disseram que era a anaconda. As mulheres Shipibo dizem que os padrões nos grandes vasos representam a xamã-mulher. Elas a chamam de grande anaconda. Na cultura marajoara, as imagens mostram mulheres com roupas e apetrechos de xamãs. Além disso, as casas são construídas ao redor dos fogões, o que sugere que fossem sociedades matrilineares. Nessas comunidades, as famílias eram formadas pela mãe, nascida no local, e pelo marido, vindo de fora. As filhas deviam crescer cozinhando com a mãe, por isso os fogões estão juntos. Nas patrilineares, como as do rio Negro, os fogões são separados, porque as mulheres não são aparentadas.
As mulheres também eram influentes em comunidades ancestrais de outros lugares do mundo?
Não. Nas sociedades primitivas da Grécia, os túmulos das mulheres eram mais ricos do que os dos homens. É um sinal de que eram mais abastadas. É comum em certas fases do desenvolvimento dos povos as mulheres serem mais proeminentes. Quando surgem os impérios e o militarismo se torna relevante, os homens assumem papel predominante.
Sua formação foi influenciada pelas mulheres da família. O que aprendeu com elas?
Aprendi com as mulheres da família e com as sociedades regidas por mulheres ou por duplas de homens e mulheres que estudei. Fui criada em um matriarcado. Minha avó paterna, Eleanor Butler Roosevelt [1888-1960], era a chefe da família. Ela e minha mãe ficaram viúvas cedo e passaram a morar juntas. Havia ainda minhas duas irmãs e eu. Minha avó era muito inteligente e moderada, comandava em silêncio. Meu tio e o homem que cuidava da propriedade em que vivíamos eram receptivos à liderança feminina. Mais tarde, quando li sobre o povo Axante, de Gana, soube que os homens respeitavam muito a rainha-mãe. Mas o matriarcado pode ser severo. Fiz uma revisão da literatura a respeito do povo Warao, da Venezuela, Guianas e Suriname, que vive sobre palafitas e tem descendência matrilinear. Nessa sociedade, os homens vêm de outros grupos, para casar com as filhas, e podem ter uma vida difícil. Há abusos praticados pelas esposas contra homens jovens. É comum eles serem levados a serviços de saúde porque foram espancados. Nem tudo o que as mulheres fazem é maravilhoso. No entanto, elas apresentam tendência menor a abusar de substâncias, o que permitiria tomarem decisões melhores. Segundo estudos, elas também costumam ser menos violentas, embora sejam combativas.
Não vejo evidências de ocupação humana na América do Sul anterior a 13 mil anos
Tem planos de voltar ao Brasil?
Pretendo realizar escavações no sítio subaquático paleoíndio em Curupité e no sítio arqueológico de Guajará, em Marajó. Neste, há cemitérios bem preservados. Desejo, no entanto, ir primeiro a Curupité. A mineração pode estar alterando muito a paisagem e colocando o sítio em risco. Também gostaria de trabalhar no rio Negro, mas precisaria da colaboração de um oceanógrafo com barco e, talvez, um submarino. Ali não é possível mergulhar por ser muito profundo. Além disso, o arqueólogo Alexandre Guida Navarro, da Universidade Federal do Maranhão, me convidou para explorar as aldeias de palafita que existiram no Maranhão. Antes, porém, preciso ir à África fazer entrevistas e iniciar escavações no Congo. Lá existe uma cultura chamada Sangoan, que, em minha opinião, foi a primeira cultura do homem moderno, o Homo sapiens sapiens [essa cultura produziu ferramentas de pedra e durou de cerca de 130 mil a aproximadamente 50 mil anos atrás, distribuindo-se por toda a área tropical da África na época]. Ela está associada à floresta tropical. As teorias de que, naquela região, as florestas teriam se transformado em savanas não está correta. Não há evidência de que tenham existido savanas na bacia do rio Congo no Pleistoceno, período geológico que se estendeu de 2,58 milhões a 11,7 mil anos atrás. Ferramentas de pedra produzidas por essa cultura foram encontradas submersas e os materiais orgânicos foram bem preservados. Espero escavar um sítio próximo à fronteira com Angola. Se encontrar objetos de madeira ou restos de plantas bem conservados, poderia ter uma ideia sobre como era o ambiente em que viveram e as ferramenta que usavam.
Há quanto tempo trabalha lá?
Desde 1997. O que depreendi das escavações em Pedra Pintada me levou a questionar a hipótese do surgimento dos seres humanos primitivos na savana no Pleistoceno. Sou interessada em arqueologia ambiental e percebi que a maior parte das conclusões sobre o ambiente durante o surgimento humano na África estava errada. Resolvi trabalhar lá para revisar a ideia. Na África, apliquei uma lição que aprendi na Amazônia: é preciso olhar para as sociedades atuais para se compreender as antigas, e vice-versa. Dizia-se que os povos indígenas das florestas tropicais eram primitivos, viviam da agricultura de subsistência e não tinham desenvolvido uma civilização. Olhe para a pré-história. É diferente. Na Amazônia, aprendi que a conquista da região pelos europeus e o estabelecimento de governos baseados na cultura europeia alteraram a forma de vida dos nativos. Lá, as pessoas não se adaptaram só ao ambiente. Adaptaram-se também aos eventos e processos históricos e políticos.
A propósito, em quais museus ou instituições estão depositados os artefatos que escavou na Amazônia? Outros pesquisadores têm acesso a eles?
A maior parte do que coletamos em escavações são pequenos restos biológicos carbonizados e quebrados. Os museus brasileiros não desejavam adquiri-los. Eles são úteis principalmente para identificação de espécies e para datação. A maior parte do material cultural de nossas escavações em Santarém foi para um museu local. Algumas coisas foram para a arqueóloga Denise Schaan (1962-2018), na UFPA. Eram pequenos cacos de cerâmica e fragmentos líticos produzidos quando as pessoas fabricavam ferramentas de pedra. Escavamos principalmente onde depositavam lixo. Ouvi dizer que cupins atacaram os rótulos e as caixas desse material no museu de Santarém. Em Chicago, tenho carvões, ossos de animais e lascas dos cacos cerâmicos que foram para a UFPA. As pontas de projétil de Pedra Pintada estão no Museu Goeldi, assim como os poucos cacos decorados e com bordas encontrados em Taperinha. Inicialmente, o material marajoara ficou em uma sala do Goeldi na Rocinha [onde fica a sede administrativa do museu]. As peças inteiras ainda estão lá. Um diretor do museu me pediu para remover os materiais pequenos quebrados porque não havia capacidade de armazená-los em suas instalações. No museu, o material acabou sendo colocado em um anexo externo, no qual os visitantes às vezes entravam. Depois, mudamos para um depósito que aluguei em Santarém, com a família de Wilton Hagman, proprietário do local onde está o sítio arqueológico de Taperinha, e, mais tarde, para a Universidade de Illinois, em Chicago. Os pesquisadores são livres para vir estudar esse material, embora apenas Alexandre Guida Navarro e José Oliver tenham vindo ver as peças. Sei que alguns pesquisadores visitaram as coleções em Belém.
Há indícios de que tenha existido ocupação humana há 25 mil anos onde hoje é o Mato Grosso e há 15 mil anos na serra da Capivara, no Piauí. O que pensa sobre essas datações? O que podem mostrar sobre a ocupação do continente?
As datas mais antigas não são de materiais que seguramente resultem de cultura material [objetos feitos ou modificados por seres humanos]. Para mim, o material lítico não é ferramenta. Não vejo evidência de ocupação humana na América do Sul anterior a 13 mil anos.
Novas tecnologias, como a genômica, são úteis na arqueologia amazônica?
Há mais de 10 anos, foi feita a análise de DNA de uma amostra de mil anos do baixo Amazonas. Foi um dos resultados das Américas a mostrar que a diversidade genética era grande no período pré-histórico. Dados anteriores indicavam que a genética de grupos atuais da Amazônia e de outros lugares da América era uniforme e que haveria baixa diversidade. Na época, propuseram a hipótese de que teria havido um gargalo populacional no estreito de Bering. Poucas pessoas o teriam atravessado e chegado à América. Seus descendentes teriam depois se espalhado pelo continente, deixando uma baixa diversidade genética. Quando a hipótese surgiu, ainda não se havia extraído material genético de esqueletos antigos. Sabemos agora que a ideia não está correta. Material genético de povos paleoíndios que viveram por volta de 12 mil anos atrás e dos povos do sítio arqueológico de Windover, na Flórida, datado em cerca de 6 mil anos, mostram que a diversidade é semelhante à observada no nordeste da Ásia, de onde vieram os primeiros seres humanos a chegar à América. Essa diversidade não é mais encontrada nos grupos indígenas atuais. O verdadeiro gargalo populacional ocorreu em 1492, com a chegada dos europeus à América. É comum pesquisadores atribuírem o desenvolvimento de comportamentos e características culturais indígenas à influência da natureza, mas ela pode decorrer da interação humana.
Você é bisneta do presidente Theodore Roosevelt (1858-1919), que participou de duas expedições à Amazônia. Visitou os lugares em que ele esteve?
Não. A primeira expedição dele foi mais para o sul e a segunda mais para sudoeste de onde estive. Quando li sobre sua segunda expedição, eu disse a mim mesma que minhas escavações jamais terminariam com alguém morto [na expedição ao rio da Dúvida, em 1914, uma pessoa morreu afogada e outra assassinada; uma terceira foi deixada para trás]. A expedição dele não foi muito bem organizada. Ele ficou doente e se tornou emotivo. Em determinado ponto, ele disse para o grupo continuar sem ele. Parece-me narcisista. É preciso ter personalidade, mas não se pode ser narcisista em uma escavação.