Compreendido sobretudo como a corrente de pensamento que naquele momento defendia a transformação de monarquias absolutistas em Estados representativos, o liberalismo esteve na base das articulações políticas que envolveram os principais agentes da Independência do Brasil. Isso equivale a dizer que o foco no indivíduo e no direito à propriedade e à liberdade pautou as concepções que emergiram no país, ao refletir as revoluções ocorridas na Europa e a consequente exigência de adoção de sistemas políticos nos quais poderes soberanos fossem delimitados por Constituições.
Naquelas primeiras décadas do século XIX, os principais atores políticos do Brasil eram adeptos das ideias da Ilustração, formuladas no século XVIII em contraposição à hegemonia da Igreja, ao defender que os indivíduos deveriam comandar a sociedade a partir da racionalidade e do conhecimento. A historiadora Miriam Dolhnikoff, da Universidade de São Paulo (USP), entende o pensamento liberal então vigente como um desdobramento da Ilustração, na medida em que buscava repensar as relações econômicas e os direitos individuais. “No entanto, é preciso ressaltar que não existia, e segue não existindo, um liberalismo único, mas diferentes possibilidades para se pensar a economia e a política. Naquele momento, políticos que se intitulavam liberais podiam defender a monarquia constitucional ou um sistema republicano – o que, no século XIX, era considerado radical”, exemplifica Dolhnikoff.
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A concepção liberal que pautou os atores da Independência remonta à Revolução Francesa (1789-1799) e ao fim do absolutismo naquele país, que ecoou em outros regimes monárquicos da Europa. Assim, depois da queda do imperador francês Napoleão Bonaparte (1769-1821), entre 1814 e 1815, os debates políticos no continente europeu passaram a girar em torno da adoção de Constituições por países até então governados por monarquias absolutistas. “Naquele momento, o pensamento de teóricos como os franceses Henri-Benjamin Constant de Rebecque [1767-1830] e François-René de Chateaubriand [1768-1848] foi central para o desenvolvimento dos novos regimes”, explica a socióloga Isabel Lustosa, da Universidade Nova de Lisboa.
Com a chegada da Corte portuguesa ao Brasil, em 1808, os ideais do liberalismo impulsionaram o desenvolvimento de críticas ao sistema colonial vigente, que passou a ser visto como retrógrado por lideranças como dom Rodrigo de Sousa Coutinho (1755-1812), principal ministro de dom João VI (1767-1826), monarca do Império português. “Inspirado pelas ideias da Ilustração, Coutinho enxergava um grande potencial econômico na América portuguesa e defendia a realização de reformas de caráter modernizador, apoiadas em conhecimento científico”, relata Dolhnikoff, recordando que ele foi diretor da Academia de Ciências de Lisboa e era próximo do naturalista José Bonifácio de Andrada e Silva (1763-1838), que ocupou diversos cargos nos governos português e brasileiro. Na concepção do ministro, era preciso acabar com os monopólios do sistema colonial e estimular a modernização da agricultura, mediante o uso de novas técnicas. “As reformas lideradas por Coutinho depois da chegada da Corte ao Rio de Janeiro interessavam às elites luso-americanas que ainda não pensavam na Independência”, detalha Dolhnikoff.
Como reflexo da circulação de ideias disseminadas pela Revolução Francesa e em decorrência de eventos como a independência dos Estados Unidos em 1776, movimentos na Europa se estruturaram contra o poder absolutista dos monarcas. Dois deles aconteceram em 1820 e impactaram as Américas: a Revolução de Cádiz, na Espanha, e a Revolução do Porto, em Portugal.
“O princípio ideológico do pensamento dos agentes dessas rebeliões era de que o homem, e não mais Deus, constituía valor fundamental da política. Até ali, uma visão teológica tinha sido a base dos governos, passando então o cidadão a ocupar esse lugar”, afirma a historiadora Zília Osório Castro, da Universidade Nova de Lisboa. É nesse momento, assinala, que surge o constitucionalismo contemporâneo. “Na Revolução do Porto, por exemplo, os rebeldes, chamados de vintistas, bradavam: ‘Constituição ou morte!’. Vitoriosos, em 1821 a primeira medida tomada por eles foi elaborar uma Constituição, que deixou marcas em toda a vida portuguesa do século XIX”, analisa Castro.
Ela recorda, por outro lado, que apesar de os vintistas defenderem a soberania do Parlamento, e não mais do rei, conjugavam ideias reformistas com valores tradicionais. Por causa disso, apoiavam a manutenção do regime monárquico em Portugal e não a mudança para um sistema republicano, conforme aconteceu na França, em 1792. “Os agentes da Revolução do Porto queriam acabar com os privilégios da nobreza e viam na Constituição o caminho para que isso acontecesse”, detalha a historiadora. Com o estabelecimento das Cortes de Lisboa, designação do Parlamento que passou a governar o Império português a partir de janeiro de 1821, Portugal viu desaparecer um valor fundamental da vida política do país, que era a soberania do monarca. Para Castro, a substituição da soberania régia pela parlamentar teve um sentido revolucionário no contexto político do Império português.
Dolhnikoff, da USP, esclarece que a Revolução do Porto defendia o liberalismo político – ao sustentar que a monarquia deveria ser representativa – e o liberalismo econômico, segundo o qual era preciso conduzir a economia com menos interferência do governo. “Foi estabelecido um novo tipo de relação entre o Estado e a população. Em vez de súditos, as pessoas passaram a ser vistas como cidadãos com direito de ir e vir e à propriedade”, diz. Segundo ela, depois da Revolução do Porto, a circulação das ideias do Iluminismo e do liberalismo se ampliou no Brasil. “As elites passaram a se apoiar nessas correntes teóricas para interpretar as condições locais e a defender seus interesses”, informa a historiadora Marisa Saenz Leme, da Universidade Estadual Paulista (Unesp), campus de Franca. Um exemplo de ideias que circulavam localmente naquele momento eram as do filósofo e economista britânico Adam Smith (1723-1790), que defendia a valorização do indivíduo e a limitação do papel do Estado na sociedade.
Assim, luso-brasileiros e portugueses que aqui viviam, como Bonifácio, começaram a participar da Corte. “Influenciados pelas ideias iluministas e reformistas da Universidade de Coimbra, esse grupo tinha uma característica política conservadora e apostava na modernização da monarquia, mas não no estabelecimento de uma Constituição que delimitasse demasiadamente os poderes do monarca em relação aos do Legislativo”, explica o historiador Jorge Vinícius Monteiro Vianna, que defendeu doutorado sobre o tema na Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes), em 2019. Em oposição à Corte, outro grupo se formou em torno do jornalista e político Joaquim Gonçalves Ledo (1781-1847), vinculado ao comércio interno do Rio de Janeiro e sem a formação acadêmica da Universidade de Coimbra. “Eles eram críticos do absolutismo e favoráveis à ideia de liberalismo, manifestando ideias do contratualismo moderno, segundo as quais o Estado deveria funcionar como uma instituição contratada para gerir os interesses públicos e individuais”, compara Vianna. Conforme ele, esse grupo apresentava propostas consideradas “perigosas” por políticos vinculados a Bonifácio, por darem margem à ampliação da noção de soberania popular. “O chamado grupo Coimbrão queria o Estado como vetor de modernização da sociedade. Eram duas forças opostas”, observa o historiador.
No começo de 1822, outro debate significativo se desenvolveu no Parlamento português em torno da diferença de nacionalidade. No Brasil, as pessoas se consideravam portuguesas da América e começaram a defender a igualdade de direitos perante os portugueses de Portugal. Nessa lógica, a Constituição deveria beneficiar, de maneira uniforme, todo Império português, algo que não agradava as elites de Portugal. “Assim, eclodiram desavenças em torno do lugar que deveria ser o centro do Império”, detalha Castro. Por conta das divergências, políticos associados a Ledo passaram a pressionar dom Pedro I (1798-1834) a estabelecer uma Assembleia Legislativa no Brasil que permitisse a elaboração de leis próprias, adequadas aos interesses das elites locais. “Como já existia uma assembleia em Portugal, os portugueses reconheceram esse evento como um primeiro sinal de ruptura”, prossegue a historiadora da Universidade Nova de Lisboa. De acordo com a pesquisadora, nos meses seguintes, a ideia de ser brasileiro começou a ganhar contornos.
Apesar dos grupos dos Coimbrões e Ledo terem, em janeiro de 1822, unido forças momentaneamente para pressionar dom Pedro I a permanecer no Brasil e a não regressar a Portugal, como defendiam as elites portuguesas, as desavenças voltaram a se acirrar com o passar dos meses. O grupo de Ledo começou a ser considerado republicano, o que era sinônimo de radicalismo, e irritou a opinião pública. Perseguido e reprimido por dom Pedro I, o grupo não tardou a se dissolver. Coube aos políticos vinculados a Coimbra compor o governo quando a Independência foi declarada. “Durante muito tempo, historiadores daquele período interpretaram o liberalismo como incompatível com a escravidão, considerando-o apenas como exercício de retórica. Hoje, porém, se entende que, tanto no Brasil quanto nos Estados Unidos, se criou uma vertente escravista do liberalismo”, informa Dolhnikoff. Prova disso, segundo ela, é que ideais liberais no campo econômico foram mobilizados inclusive para defender o regime escravocrata, com as elites afirmando que era preciso garantir o livre mercado para o tráfico negreiro.
Correntes de interpretação
O pensamento político que cercou a Independência deu vazão a distintas linhas de interpretação que reverberam nas disciplinas de história e sociologia até os dias atuais. Em consonância com as reflexões oficiais desenvolvidas no âmbito do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB) no século XIX, um desses intérpretes foi o historiador, militar e diplomata Francisco Adolfo de Varnhagen, o visconde de Porto Seguro (1816-1878). Na sua avaliação pioneira, a Independência do Brasil teve um sentido de continuidade, dada a origem portuguesa da família imperial local. A visão pautava-se na concepção de que a unidade territorial brasileira estava garantida mesmo antes da emancipação e valia-se da ideia de união entre as três raças (brancos, negros e indígenas) que aqui viviam.
Compartilhando a ideia de que a Independência tinha sido um processo natural e não de ruptura, pensadores vinculados a outra linha interpretativa, por sua vez, não consideravam que a unidade territorial havia sido dada de antemão. Um dos expoentes dessa corrente foi o jurista e historiador Francisco José de Oliveira Vianna (1883-1951), ao sustentar, na década de 1920, que a sociedade brasileira apresentava tendências à desagregação e que somente um Estado forte garantiria a unidade territorial do país. “De acordo com esse olhar, a Coroa era vista como elemento externo fundamental para assegurar o projeto de unidade nacional”, esclarece o cientista político Bernardo Ricupero, da USP e atual diretor-presidente do Centro de Estudos de Cultura Contemporânea (Cedec).
Nos anos 1950, o jurista gaúcho Raymundo Faoro (1925-2003) contestou essa análise, ao não enxergar a necessidade de um Estado forte para assegurar a coesão do Brasil. “Para Faoro, ao contrário, o Estado era um opressor da sociedade”, detalha Ricupero. Por fim, ao mencionar interpretações mais recentes, ele resgata as visões do historiador Caio Prado Junior (1907-1990) e do sociólogo Florestan Fernandes (1920-1995). Ambos consideravam que a Independência propiciou a emancipação política, mas acabou por criar um Estado que preservou as estruturas econômicas e sociais dos tempos coloniais. “Florestan Fernandes e Caio Prado consideravam a Independência uma revolução, mas afirmavam que o processo político subsequente funcionou como um amálgama entre o novo e o antigo”, conclui o cientista político.
Projetos
1. Dimensões regionais e perfis sociopolíticos nas concepções de soberania no Brasil do 1º Reinado: A questão dos controles fiscais e militares (nº 17/02845-9); Modalidade Auxílio à Pesquisa – Regular; Pesquisadora responsável Marisa Saenz Leme (Unesp); Investimento R$ 26.800,00.
2. Governo representativo e legislação eleitoral no Brasil do século XIX (nº 13/08217-9); Modalidade Auxílio à Pesquisa – Regular; Pesquisadora responsável Miriam Dolhnikoff (USP); Investimento R$ 74.417,09.
Revista
LUSTOSA, I. e VARGUES, I. (orgs.). Revista História das Ideias – Imprensa, Independência e Constituição. v. 40, 2ª série. 2022.
Livro
DOLHNIKOFF, M. José Bonifácio: O patriarca vencido. São Paulo: Companhia das Letras, 2012.