Imagine uma peça de teatro em que, em vez de luzes e cortina, o público se depare com a escuridão. Um breu absoluto, que começa do lado de fora, com o espectador sendo guiado pela equipe do espetáculo até seu assento. Se alguém precisar sair, é preciso levantar a mão, falar a numeração da cadeira e interromper a apresentação. Além disso, quem sai, não volta. Não existem cenários. O cheiro de café recém-passado e o tilintar de talheres anunciam uma cozinha. Mais adiante, chaves girando na fechadura, buzinas e motores sugerem uma rua movimentada. Em seguida, o som da água e o aroma de um sabonete indicam que alguém toma banho – e as gotas que respingam na plateia colocam o espectador ali, dentro do banheiro. Ao final, uma lanterna se acende. Pela primeira vez, é possível ver os rostos de quem conduziu aquela travessia sensorial: o elenco do Teatro Cego.
Composta por atores cegos e atores que enxergam, além de músicos, a companhia paulistana criada em 2012 é um dos 13 grupos brasileiros analisados por Lucas Almeida Pinheiro no livro Teatro e artistas com deficiência visual: Poéticas do acesso à cena (Editora Unicamp, 2024). “Esses espetáculos não são feitos exclusivamente para pessoas com deficiência”, conta Pinheiro, professor do curso de artes cênicas da Universidade Estadual de Maringá (UEM), no Paraná. “O desafio desses grupos é ressignificar a dimensão visual tão presente no teatro. Nas montagens há um trabalho muito mais pormenorizado de recursos auditivos, táteis, olfativos e até mesmo do paladar.”
Na obra, resultado de sua tese de doutorado, defendida em 2022 na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), o pesquisador trabalha, entre outras questões, com grupos que suprimem a visão do espectador por uso de vendas – a exemplo do Teatro dos Sentidos, do Rio de Janeiro, e algumas obras do Noz Cego, de Salvador – ou com encenações no escuro, como o Teatro Cego. “A ideia é convidar o espectador que enxerga a se aproximar, mesmo que pontualmente, do universo perceptivo de uma pessoa que não enxerga”, explica Pinheiro. “Entretanto, na ausência de iluminação e de informações visuais, e por ser balizada em diálogos entre as personagens, esse tipo de encenação não é capaz de abranger, por exemplo, pessoas surdas sinalizantes [que se valem da Língua Brasileira de Sinais (Libras)].”
Parte dos grupos analisados por Pinheiro não suprime a visão do espectador que enxerga e trabalha com a audiodescrição, um recurso de acessibilidade. “Na forma convencional, o profissional da audiodescrição acompanha ensaios ou assiste à gravação de espetáculos para encontrar pausas ou silêncios. Nesses momentos, descreve o que está acontecendo em cena. A pessoa cega ou com baixa visão ouve a audiodescrição por meio de fones de ouvido, que estão conectados via ondas de rádio ao microfone de quem faz a audiodescrição”, conta o pesquisador. “Entretanto, isso exige uma infraestrutura do espaço onde é apresentado o espetáculo. O ideal é que o narrador fique em uma cabine com isolamento acústico para que sua fala não incomode os outros espectadores, mas no Brasil esse profissional costuma trabalhar no mesmo espaço do técnico de som e de luz.”
Como alternativa, algumas companhias produzem textos dramatúrgicos mais descritivos. É o caso do Coletivo Grão – Arte e Cidadania, grupo paulista criado em 2012 pela diretora, dramaturga e produtora Cintia Alves e pela musicoterapeuta e compositora Juliana Keiko, que reúne artistas que enxergam, cegos, ouvintes e surdos. “É como se essas companhias incorporassem a audiodescrição à estrutura do espetáculo. Quando, por exemplo, um ator entra por um lado do palco e senta-se, outro personagem menciona o movimento e diz ‘Ah, você vai se sentar aqui’”, diz Isa Etel Kopelman, do Departamento de Artes Cênicas da Unicamp e uma das organizadoras de dossiê sobre arte e deficiência publicado em 2023 na Pitágoras 500: Revista de Estudos Teatrais. “Isso permite que os espectadores cegos façam as próprias interpretações sem que uma voz externa explique o espetáculo.”

Marcelo Santanna / Cortesia da artistaA pesquisadora e coreógrafa Carolina Teixeira na performance Poética protéticaMarcelo Santanna / Cortesia da artista
A presença em cena de artistas com deficiência não é novidade. O performer Felipe Monteiro, professor do Programa de Mestrado Profissional em Artes da Universidade Federal de Uberlândia (Profartes-UFU), lembra que já no século XVIII os chamados show de horrores (ou freak shows), comuns na Europa, exploravam esses corpos para fins de entretenimento. “Além de serem constrangidos em público, os artistas nessa condição eram obrigados a executar atividades incomuns e arriscadas, como engolir objetos”, conta o pesquisador, autor do livro Subjetividade(s) e(m) performance: Corpo, diferença e artivismo (Editora CRV, 2020). “Muitos deles vinham de camadas sociais mais pobres e se submetiam a isso como forma de sobrevivência.”
Em meados do século XX, esse cenário começou a mudar na medida em que se consolidava o discurso em torno dos direitos humanos. Nos anos 1960, já existiam grupos fora do Brasil com uma proposta ética e humanista. “Manifestações artísticas feitas por pessoas com corpos diferenciados surgem principalmente a partir daquela década, com a arte da performance e por meio de iniciativas como o Teatro Nacional do Surdo, companhia norte-americana fundada em 1967”, prossegue Monteiro, portador de amiotrofia espinhal progressiva, doença neuromuscular que provoca perda muscular progressiva.
Também datam desse período as primeiras experiências cênicas do diretor norte-americano Robert Wilson, um dos principais nomes da cena teatral contemporânea, que não apenas inseriu pessoas com deficiência em seus espetáculos, bem como refletiu sobre a questão nos enredos. Uma de suas montagens é O olhar do surdo (1970), ópera silenciosa parcialmente inspirada nas percepções de um menino com deficiência auditiva. Segundo Monteiro, um marco para artistas e pesquisadores ocorreu nos anos 1980 com as artes da deficiência, movimento cultural que eclodiu nos Estados Unidos e no Reino Unido.
No Brasil, grupos com essa proposta emergiram na década de 1990, como informa Marcia Berselli, do Departamento de Artes Cênicas da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), no Rio Grande do Sul. Entre eles figura o Roda Viva Companhia de Dança, que surgiu na Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN) em 1995 como Roda Viva Dança sobre Rodas, então composta de dançarinos cadeirantes. “Foi uma das primeiras iniciativas na profissionalização de artistas com deficiência no país, cujas montagens tiveram, inclusive, repercussão internacional”, diz Berselli, que está à frente do grupo de pesquisa Teatro Flexível: Práticas Cênicas e Acessibilidade. Uma das integrantes da companhia foi a pesquisadora, coreógrafa e performer Carolina Teixeira. Autora do livro Deficiência em cena, publicado em 2011 e reeditado 10 anos depois, ela tem os membros esquerdos paralisados em função de um Acidente Vascular Cerebral (AVC) isquêmico que sofreu na infância.
Outra iniciativa desse período é o Grupo Benjamin Constant. A companhia amadora que reunia crianças e adolescentes funcionou entre 2003 e 2015 no Instituto Benjamin Constant, no Rio de Janeiro, especializado no atendimento a pessoas com deficiência visual. A experiência se desdobrou no Corpo Tátil, grupo profissional fundado em 2015, que existe até hoje e é composto apenas por adultos. As duas propostas foram idealizadas pela diretora teatral Marlíria Flávia, que não tem deficiência visual. “Ela desenvolveu práticas para fazer com que esse corpo que não enxerga consiga fazer uma mimese de um corpo que enxerga”, conta Pinheiro, da UEM. E exemplifica: “No caso de um ator que precise pescar em cena, sem nunca ter pescado na vida ou visto alguém pescando, em vez de ajustar o corpo dessa pessoa, Marlíria propõe amarrar uma corda na cadeira da plateia e pede para esse ator puxar a corda. Depois, o processo se inverte e o ator se torna o peixe fisgado. Assim, se cria uma fisicalidade de alguém que está pescando.”

Clarice CajueiroO bailarino Edu O. (terceiro a partir da esq.) em apresentação do Grupo X de Improvisação em DançaClarice Cajueiro
Segundo Berselli, da UFSM, o processo de formação de artistas no Brasil é ainda muito centrado em corpos que respeitam um padrão de normalidade. “Os outros que não se enquadram nessas perspectivas se tornam dissidentes, como corpos com deficiência, pessoas de faixas etárias avançadas ou que envolvam questões de gênero”, observa a pesquisadora. “Essa temática inclusiva deveria estar mais presente nos cursos de artes cênicas desde a graduação.”
No momento, Monteiro, da UFU, desenvolve o projeto de pesquisa “Corpos diferenciados e artivismo”. “A ideia é discutir o corpo com deficiência sem estigmatização ou discurso de superação, por exemplo. Faço isso por meio de produções cênicas que trazem corpos com deficiência, mas que não são evidenciados ou destacados por esse aspecto”, relata. Da lista fazem parte montagens encenadas por estrangeiros, como os performers Nicola Fornoni, da Itália, e Kamil Guenatri, nascido na Argélia e radicado na França, além de brasileiros, a exemplo dos bailarinos Marcos Abranches, de São Paulo, Carolina Teixeira, do Rio Grande do Norte, e Edu O., pseudônimo de Carlos Eduardo Oliveira do Carmo, professor da Escola de Dança da Universidade Federal da Bahia (UFBA).
Em tese de doutorado defendida em 2023 na Universidade do Estado da Bahia (Uneb), Edu O. refletiu sobre suas vivências na dança a partir da teoria crip (teoria aleijada), desenvolvida pelo acadêmico norte-americano Robert McRuer, da Universidade George Washington, nos Estados Unidos, que questiona a normatividade compulsória do corpo em nossa sociedade. Com isso, criou o próprio conceito: a bipedia compulsória na dança. “A bipedia que organiza o mundo a partir de seu ponto de vista quer excluir e invisibilizar outras experiências”, constata o pesquisador, que é cadeirante.
Edu O. participa do Grupo X de Improvisação em Dança, sediado em Salvador. A companhia, criada no fim dos anos 1990 pelos professores da UFBA Fátima Daltro e David Iannitelli, não foi concebida a partir da deficiência física dos bailarinos. Porém a presença de integrantes com essa condição impactou o processo de criação do grupo. A partir de 2008, por exemplo, seus espetáculos passaram a contar com audiodescrição, recurso pouco utilizado em montagens de dança. “Quando não são focadas nas pessoas com deficiência, as companhias de dança não nos acolhem. Suas práticas e reflexões são voltadas para um corpo bastante normativo: em geral, jovem, magro e branco”, afirma o pesquisador.
Desde 2023, Edu O. coordena o Mapeamento Acessa Mais, fruto de uma parceria entre o Ministério da Cultura e a UFBA. O objetivo é fazer um levantamento em âmbito nacional de profissionais com deficiência no campo das artes cênicas, como produtores, técnicos e artistas. O relatório, em fase de organização e análise de dados, já reúne quase 4 mil nomes. Para ele, o diagnóstico é claro: “Falta visibilidade, mas não falta produção”.
A reportagem acima foi publicada com o título “Poética acessível” na edição impressa nº 351 de maio de 2025.
Artigos científicos
BERSELLI, M. et al. Perspectivas sobre a cena acessível a partir da análise do espetáculo “Birita procura-se”. Urdimento ‒ Revista de Estudos em Artes Cênicas. v. -1, n. 50, p. 1-25. 2024.
CARMO, C. E. O. do. Fissuras pós-abissais em espaços demarcados pela bipedia compulsória na dança. Ephemera: Revista do Programa de Pós-graduação em Artes Cênicas da Universidade Federal de Ouro Preto. v. 3, n. 5, p. 40-61. 21 jul. 2020.
Livros
OLIVEIRA, F. H. M. O. Subjetividade(s) e(m) performance: Corpo, diferença e artivismo. Curitiba: CRV, 2020.
PINHEIRO, L. A. Teatro e artistas com deficiência visual: Poéticas do acesso à cena. Campinas: Unicamp, 2024.