Lavar as mãos, cortar o cabelo, tomar água filtrada e leite fervido, manter a casa limpa e outros hábitos do dia a dia resultam das ideias sobre transmissão de doenças por microrganismos promovidas pelo químico francês Louis Pasteur no final do século XIX. Ele nasceu há 200 anos, em dezembro de 1822, em Dôle, cidade a leste da França. Ao morrer, aos 72 anos, em 1895, havia se tornado um dos personagens mais importantes da história da ciência mundial – e ainda hoje é nome de ruas, escolas, edifícios, centros de pesquisa e laboratórios de análises clínicas. O Instituto Pasteur de Paris é uma das maiores instituições de pesquisa em doenças infecciosas e produção de vacinas do planeta, com ramificações em 26 países.
Na segunda metade do século XIX, com o patologista alemão Robert Koch (1843-1910), Pasteur lançou as bases da microbiologia e o conceito – hoje óbvio – de que as doenças infecciosas são causadas por microrganismos e podem ser prevenidas por meio de medidas de higiene e de vacinas. “Nossa mente tornou-se pasteuriana”, sintetiza o historiador da ciência Jaime Benchimol, da Casa de Oswaldo Cruz da Fundação Oswaldo Cruz (COC-Fiocruz) e autor do livro Febre amarela: A doença e a vacina, uma história inacabada (Editora Fiocruz, 2001). O médico inglês Joseph Lister (1827-1912) visitou Pasteur em 1876 em Paris e, com base nas ideias do colega francês, decidiu desinfectar os instrumentos de cirurgia e a área do corpo a ser operada, assim reduzindo as infecções.
Pasteur rompeu a separação entre ciência básica e aplicada ao afirmar que não havia ciência aplicada, mas sim aplicações da ciência. No livro O quadrante de Pasteur — A ciência básica e a inovação tecnológica (Editora Unicamp, 2005), o cientista político norte-americano Donald Stokes (1927-1997) usou dois eixos para classificar as atividades de pesquisa – o vertical, representado a capacidade de gerar conhecimento básico, e o horizontal, refletindo as aplicações.
Emergem daí quatro quadrantes: embaixo, o mais próximo do encontro dos eixos permanece vazio; ao lado, à direita, está o de Thomas Edison (1847-1931), em alusão ao inventor norte-americano que criou a lâmpada incandescente, de alta relevância para as aplicações e pouca para o conhecimento; acima, à esquerda, encontra-se o de Niels Bohr (1885-1962), em referência ao físico dinamarquês, que permitiu grandes avanços sobre a estrutura do átomo; e acima, à direita, o de Pasteur, que concilia os avanços tanto no conhecimento quanto nas aplicações.
Stokes argumentou que o químico francês tinha dois compromissos: “entender os processos microbiológicos que ele descobriu” e, ao mesmo tempo, “o controle dos efeitos de tais processos em vários produtos e em animais e seres humanos”. Desse modo, o autor mostra que a ciência chamada básica ou fundamental poderia gerar ganhos econômicos ou sociais. Essa ideia se contrapôs à separação entre ciência pura e ciência aplicada, fortalecida após a Segunda Guerra Mundial, que influenciou a política científica e tecnológica nas décadas seguintes (ver Pesquisa FAPESP nº 110).
Vacinas
Com sua equipe, foi um dos primeiros a produzir em laboratório, com bases científicas, vacinas de uso veterinário e humano contra doenças infecciosas. A primeira foi para uma doença de ovelhas, o carbúnculo ou antraz, causada pela bactéria Bacillus anthracis, identificada por Koch em 1877. Confiante em suas experiências com animais em laboratório, Pasteur promoveu um espetáculo público, em junho de 1881 na vila de Pouilly-le-Fort, no sudeste de Paris, diante de veterinários, fazendeiros, políticos locais e repórteres: com seu auxiliar, o químico Charles Chamberland (1851-1908), aplicou uma vacina que tinha elaborado, com uma versão atenuada da bactéria causadora da doença, em 25 ovelhas, deixou outras 25 sem vacinar e em seguida injetou em todas uma solução com a bactéria. Vinte e quatro ovelhas vacinadas sobreviveram, as outras morreram.
Em 1857, depois de ensinar química por três anos na Universidade de Lille, ele começou a lecionar na Escola Normal Superior em Paris. Em 1889, resolveu se dedicar às vacinas de uso humano. Começou com a raiva, doença de origem viral transmitida principalmente pela saliva de animais infectados.
Em julho de 1885, ele atendeu um menino de 9 anos, Joseph Meister (1876-1940), que havia sido mordido nos braços e nas pernas por um cão raivoso. Ele próprio relatou: “A morte da criança parecia inevitável. Decidi, não sem profunda angústia e ansiedade, como se pode imaginar, aplicar em Joseph Meister o método que eu havia experimentado com sucesso consistente nos cães”. Funcionou, e o menino se recuperou após 13 injeções.
Após examinar os cadernos de laboratório de Pasteur, o historiador norte-americano Gerald Geison (1943-2001) argumenta no livro A ciência particular de Louis Pasteur (Editora Fiocruz/Contraponto, 2002) que Joseph Meister não foi o primeiro a receber a vacina antirrábica. Secretamente, Pasteur já a tinha usado em um homem de 61 anos chamado Girard, que sobreviveu, e em uma menina de 11, que morreu. As anotações “revelam que se injetou em Girard um preparado que Pasteur não descrevera por escrito – a saber, uma emulsão da medula espinhal de um coelho morto por hidrofobia experimental, que ficara secando em um frasco hermeticamente fechado por cerca de duas semanas”, relata Geison.
Segundo ele, o químico francês ainda não havia tentado curar a raiva em animais antes de tratar de Girard. “Os cadernos não fornecem nenhuma prova de que Pasteur houvesse concluído os experimentos com animais a que recorreu para justificar sua decisão de tratar Meister”, acrescenta o historiador. Quando atendeu o menino, ele havia apenas iniciado um experimento com 40 cães, com diferentes formulações, e os resultados ainda não eram comparáveis. Mesmo assim, Pasteur prosseguiu porque se comoveu com a situação do menino, que trabalharia no Instituto Pasteur até a entrada em Paris do Exército nazista em 1940, quando pôs fim à própria vida.
Em uma conferência na Academia de Ciências de Paris em março de 1886, o químico propôs a criação de um instituto para produzir e aplicar a vacina contra a raiva, com base em seus resultados. Com apoio da Academia, vieram doações de todo lado, incluindo do imperador do Brasil dom Pedro II (1825-1891).
“Dom Pedro II já era muito interessado por ciências quando conheceu Pasteur”, conta o químico e historiador da ciência Carlos Alberto Lombardi Filgueiras, da Universidade Federal de Minas Gerais e autor do livro As origens da química no Brasil (Editora da Unicamp, 2015). “Ele ficou fascinado com o que se chamava na época bacteriologia, hoje microbiologia, e fez questão de contribuir com dinheiro de seu próprio bolso para a construção do Instituto Pasteur de Paris.”
Filgueiras encontrou no arquivo do Museu Imperial de Petrópolis, Rio de Janeiro, uma carta em que Pasteur respondia a um convite do imperador para vir ao Rio de Janeiro e pesquisar a febre amarela, então a causa de uma epidemia no Brasil. Ele se desculpava por já estar com 62 anos e temer os efeitos de um clima tropical, argumentava que tinha de se dedicar à vacina contra a raiva e recomendava o médico carioca Domingos José Freire (1843-1899), que havia formulado e aplicava uma vacina experimental contra a febre amarela (ver Pesquisa FAPESP no 265).
O imperador apoiou também o Instituto Pasteur do Rio de Janeiro, vinculado à Santa Casa da Misericórdia e inaugurado em fevereiro de 1888, nove meses antes do de Paris. “Nossa elite médica era extremamente bem informada e bem formada lá fora”, explica o historiador Luiz Antonio Teixeira, também da COC-Fiocruz, ao explicar a rapidez da incorporação das técnicas de produção do soro contra a raiva. No Recife (PE), foi fundado no ano seguinte um instituto antirrábico, também com o nome do químico francês; na cidade de São Paulo, em 1903; em Juiz de Fora (MG), em 1908; em Porto Alegre (RS), em 1910; e em Florianópolis (SC), dois anos depois.
“De modo geral, os institutos no Brasil e em outros países foram criados para serem apenas reprodutores da técnica de produção de vacinas contra a raiva”, diz Teixeira, autor do livro Ciência e saúde na terra dos bandeirantes: A trajetória do Instituto Pasteur de São Paulo no período de 1903-1916 (Editora Fiocruz, 1995). “O de São Paulo foi o único que se dedicou também à pesquisa científica porque já tinha começado uma rede de institutos de saúde, como o bacteriológico e o vacinogênico” (ver Pesquisa FAPESP no 300). Criado como instituição privada por um grupo de médicos, o instituto paulista, em razão de dificuldades financeiras, foi doado ao governo do estado em 1916. Os de outros estados foram incorporados por órgãos de saúde ou fechados após os surtos de raiva desaparecerem e hoje a doença é bastante rara e transmitida principalmente por morcegos hematófagos.
“Muitos médicos do Rio de Janeiro [então capital do Brasil] abraçaram rapidamente a teoria do germe proposta por Pasteur, mas também houve muita controvérsia, porque as novas ideias contrariavam crenças estabelecidas, como a de que as doenças resultavam tão-somente de ambientes insalubres”, diz Benchimol. “A bacteriologia nasceu cercada de suspeitas e dúvidas.” Entre 1878 e 1886, a Gazeta Médica da Bahia publicou traduções de artigos de Pasteur sobre as aplicações da teoria dos germes à medicina, permitindo cirurgias mais amplas e seguras, com menor risco de infecção, e sobre os testes com a vacina contra a raiva, mas também deu espaço a contestações.
“A bacteriologia teve um impacto imenso na saúde coletiva, porque permitiu a prevenção de doenças infecciosas, por meio do isolamento de doentes, da vacinação e da melhoria das condições de vida da população para evitar a transmissão dos patógenos”, comenta Teixeira. Foi com base nas ideias de Pasteur que o médico Oswaldo Cruz (1872-1917) debelou a epidemia de febre amarela no início do século XX.
Segundo Teixeira, um dos limites da bacteriologia é o que ele chama de unicausalidade – a causa única para o surgimento de uma doença ou epidemia, o que ofusca a existência de outros fatores, como as condições de vida, que favorecem a evolução de enfermidades, como a tuberculose: “Durante décadas, a visão unicausal das doenças limitou as ações da saúde pública”. A situação começou a mudar no Brasil a partir dos anos 1920, principalmente com o farmacêutico e médico Geraldo Paula Souza (1889-1951).
Professor da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP) e fundador do Instituto de Higiene, que se tornaria a Faculdade de Saúde Pública da USP, Paula Souza via os problemas de saúde de uma forma ampla, não puramente biológica, e criou uma rede de postos de saúde que unia à prevenção a educação em saúde, com base no que havia visto nos Estados Unidos. Em 1945, participou da Conferência de São Francisco, nos Estados Unidos, que levou à criação da Organização das Nações Unidas (ONU), e apoiou a constituição da Organização Mundial da Saúde (OMS), três anos depois.
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