No final de março, em uma de suas inspeções semanais, a designer e historiadora Fernanda Deminicis de Albuquerque encontrou um detalhe inesperado em um dos mapas expostos no Museu Naval, no Rio de Janeiro, que já havia visto muitas vezes: o desenho de um indígena vendado, com menos de 1 centímetro (cm) de altura, sentado em um globo terrestre, atirando uma flecha. O homenzinho estava no alto de uma das 11 rosas dos ventos que ilustram a Carta náutica do Atlântico, feita em pergaminho em 1776 pelo engenheiro militar português Simão Antonio da Rosa Pinheiro, com 88 cm de comprimento e 76 cm de altura.
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O mapa representa as rotas náuticas, paralelos e meridianos entre a América do Sul e parte da África, da Europa e da América do Norte. “A cartografia náutica foi importante para consolidar o comércio negreiro com os portos na África, que atingiu o ápice justamente na época da Independência do Brasil”, observa a historiadora Íris Kantor, da Universidade de São Paulo (USP), uma das curadoras da exposição O Atlântico Sul na construção do Brasil independente, ao lado da também historiadora Heloisa Meireles Gesteira, do Museu de Astronomia e Ciências Afins (Mast), e da bibliotecária Maria Dulce de Faria, da Biblioteca Nacional.
Ao prepararem a mostra, inaugurada no Museu Naval em novembro, que atraiu cerca de 10 mil visitantes até seu encerramento, em junho, elas já tinham visto outra ousadia de Pinheiro. No canto superior direito do mapa, havia uma cegonha conversando com uma raposa, em referência a uma fábula do grego Esopo (620 a.C.-564 a.C.), cuja moral sugere não fazer aos outros o que não quer que façam para você. Alegorias com mensagens críticas como essa eram bastante raras.
A exposição reuniu 23 mapas e sete atlas impressos no Reino Unido, França e Espanha, selecionados entre os cerca de mil trazidos ao Brasil pela Corte portuguesa em 1808 e guardados na Biblioteca dos Guardas-Marinha. Outra obra conservada por dois séculos foi a Carta geográfica da América portuguesa, do engenheiro militar Tomaz de Souza, retratando o Planalto Central e suas conexões com as bacias dos rios Amazonas e Paraguai.
“O acervo nunca tinha sido tratado em conjunto”, diz Albuquerque, responsável pelo planejamento e montagem da mostra. “A precisão e o detalhamento dos mapas são impressionantes”, diz ela. “Quatro cartas tratam da navegação de rios encachoeirados na região Norte, como o Oiapoque, com marcações das cachoeiras e os pontos em que deveriam descer a carga e os passageiros, e mesmo os caminhos em terra para levar os barcos, com a ajuda dos indígenas, até o próximo trecho navegável.”
As curadoras reconstituíram a circulação dos mapas manuscritos, cuja impressão era proibida na América portuguesa por conterem informações estratégicas. Um deles é a reprodução de um mapa impresso clandestinamente no Rio de Janeiro que foi copiado e reproduzido por cartógrafos estrangeiros entre 1792 e 1794. O original encontra-se na Biblioteca Pública Municipal da Cidade do Porto.
“Os documentos e objetos da exposição indicam que os cartógrafos de Portugal participavam intensamente dos debates sobre qual seria o método mais preciso de medir a longitude no mar, um problema então intensamente debatido, a partir dos testes realizados com cronômetros”, observa Gesteira. Entre os instrumentos náuticos do acervo do Museu Naval – cronômetros, compassos, binóculos, globos e outros –, chamou-lhe a atenção uma bússola portuguesa ricamente ornamentada, com brasão de Portugal de 1876. O aparelho tem uma fresta lateral onde se poderia encaixar outro instrumento, como um sextante, capaz de indicar a declinação do sol, informação relevante para os navegadores se localizarem.
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