Em julho, o promotor Luiz Gustavo da Luz Quadros deverá assumir a coordenação de uma unidade da Promotoria de Justiça Agrária do Ministério Público (MP) do Pará que está sendo criada no município de Castanhal, próximo à capital do estado, para intermediar a resolução de conflitos de terra com o apoio de novos recursos tecnológicos. “Queremos evitar que os problemas sejam resolvidos com violência, à bala, e ganhem repercussão nacional e internacional”, diz. Em 2017, o Pará registrou 71 assassinatos de trabalhadores rurais em conflitos de terra e em 2018 24. Até março de 2019 outros seis assassinatos foram associados a disputas por terra. Quadros pretende reconhecer os legítimos proprietários e regularizar a situação fundiária do estado sempre que possível por meio de acordos amigáveis, sem processos judiciais, usando o Sistema Geográfico de Informação Fundiário (SIG Fundiário), plataforma computacional elaborada por equipe multidisciplinar da Universidade Federal do Pará (UFPA) em colaboração com o MP e o Tribunal de Justiça (TJ) do Estado do Pará.
O SIG Fundiário fez algo inédito, ao integrar bases de dados de órgãos públicos e cartórios e está delineando a real situação fundiária do estado. Os resultados preliminares revelaram 22,7 milhões de hectares (ha) de terras privadas e 18,5 milhões de ha de terras públicas que não existem de fato, porque a soma das áreas registradas em cartórios excede a área total dos municípios. A chamada matrícula, documento que permite a venda ou a doação de imóveis, gera novo registro toda vez que muda o proprietário. O SIG Fundiário identificou até 10 registros simultâneos, como se houvesse 10 donos ou conjuntos de donos, com áreas sobrepostas.
Criado há cinco anos, com financiamento de cerca de US$ 1,6 milhão da Fundação Ford e da organização não governamental Climate and Land Use Alliance (Clua), o SIG Fundiário reuniu 83.676 documentos de três regiões – Tomé-Açu, Jari e Itaituba, que somam 19,5 milhões de ha, o equivalente a 15% do Pará. A equipe do Laboratório de Integração de Informações Agrárias, Econômicas e Ambientais para Análise Dinâmica da Amazônia (Integradata), órgão da reitoria da UFPA que cuida do SIG Fundiário, coletou informações diretamente das matrículas e registros de 14 dos 104 cartórios do estado. Em fevereiro, começou o trabalho de digitalização de documentos do cartório de Santarém. No Integradata, os documentos são conferidos, os dados históricos são indexados e as coordenadas geográficas de localização dos imóveis são inseridas em um sistema de informações geográficas. Programas de acesso livre permitem o registro das informações, a integração de documentos e a produção automática de mapas. Em 2018, a pedido do governo do estado do Maranhão, a equipe do Integradata utilizou esse método para cadastrar 23.616 documentos do Instituto de Colonização e Terras do Maranhão (Iterma) e de dois cartórios do estado.
Sobreposições
As áreas registradas nos documentos dos cartórios dos 10 municípios paraenses examinados somaram 32,2 milhões de ha. Como a área estudada tem 9,5 milhões de ha, 22,7 milhões de ha não existem de fato. “São terras de papel”, diz o agrônomo Sebastião Aluizio Solyno Sobrinho, coordenador técnico do SIG Fundiário. Em outro estudo, a equipe do Integradata reuniu os mapas de unidades de conservação, terras indígenas e quilombolas sob responsabilidade de órgãos públicos federais no Pará e encontrou 792 sobreposições, que equivalem a 1,5 milhão de ha. De acordo com os documentos oficiais, a área das terras indígenas e unidades de conservação é 8,4 milhões de ha maior que a identificada pelo SIG Fundiário. Nas terras públicas, 18,5 milhões de ha de fato não existem. “Nos últimos anos, os mapas foram corrigidos nos sites das instituições dos órgãos do governo federal, mas a informação continua errada nos documentos oficiais”, comenta Solyno.
Segundo ele, as sobreposições detectadas no SIG Fundiário podem resultar tanto de imprecisões técnicas quanto de posse ilegal de terras: “Temos de analisar cada caso com cautela, identificar as situações mais graves e construir uma metodologia adequada de trabalho”. O Ministério do Meio Ambiente estima que a área total de terras obtidas por intermédio de escrituras falsas no Pará, registradas em cartórios de imóveis, atinja 30 milhões de ha, quase 25% da superfície do estado.
As sobreposições dificilmente apareciam com as dimensões agora detectadas pelo SIG Fundiário porque as bases públicas de dados raramente são integradas e as equipes dos órgãos públicos priorizam problemas mais urgentes. O geógrafo Danny Silvério Ferreira Sousa, técnico do Instituto de Terras do Pará (Iterpa), órgão público responsável pela gestão fundiária no estado, observa que 6.126 processos de regularização de terras corriam na Gerência de Cartografia e Geoprocessamento do instituto até novembro de 2018 – uma média de 875 processos para cada um dos sete funcionários do setor.
O Cadastro Ambiental Rural (CAR), criado pelo governo federal em 2012 para facilitar a regularização das áreas obrigatórias de preservação ambiental em todo o Brasil, registrou um excesso de terras em propriedades privadas no Pará de 12,1 milhões de ha, dos quais 1,1 milhão de ha sobrepostos a terras indígenas. Por ser alimentado com informações fornecidas diretamente pelos proprietários rurais, o CAR deixa espaço para imprecisões e fraudes. Em 2016, a Receita Federal prendeu uma quadrilha chefiada por um empresário paulista, que desmatava e grilava terras públicas no estado. O registro no CAR em nome de empresas de fachada permitia que as terras fossem exploradas, arrendadas e vendidas. De acordo com reportagem da Agência Pública, essa organização movimentou R$ 1,9 bilhão e desmatou cerca de 300 quilômetros quadrados de florestas entre 2012 e 2015. O Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), responsável pela gestão de terras federais, adota um programa similar ao CAR, o Sistema de Gestão Fundiária (Sigef), certificando a posse de terra somente quando não aparece nenhuma sobreposição.
“Os cartórios têm parcela de responsabilidade por essa situação, ao abrir novas matrículas sem verificar os documentos anteriores”, observa José Antonio Cavalcante, juiz auxiliar da corregedoria da Região Metropolitana de Belém do TJ. Segundo ele, “por desconhecimento do dever de ofício ou má-fé”, os cartórios mantiveram abertos os registros iniciais, permitindo a venda de terrenos mesmo quando a área estava sob a responsabilidade de outro cartório. “Quando detectamos irregularidades”, diz Cavalcante, “mandamos os cartórios bloquearem os registros para evitar que a terra seja repassada a terceiros, até os proprietários apresentarem os documentos e resolvermos o problema”.
Incertezas
Em 2009, uma comissão de combate à grilagem instituída pelo TJ do Pará verificou que as 9.124 áreas documentadas somavam cerca de 490 milhões de ha, uma área quase quatro vezes maior que o estado do Pará. Em Moju, no nordeste paraense, a irregularidade equivalia a 8 vezes a área do município. A comissão pediu o bloqueio de cerca de 5,5 mil títulos de imóveis com mais de 2,5 mil ha, já que a alienação ou concessão de terras públicas acima desse limite depende de aprovação prévia do Congresso Nacional.
“Reconhecer a confusão é o primeiro passo para buscar as formas legais adequadas de fazer o ordenamento territorial do estado”, diz o advogado Girolamo Domenico Treccani, que coordenou o levantamento da comissão, então como assessor-chefe do Iterpa. Atualmente coordenador de análises institucionais do SIG Fundiário e professor do Instituto de Ciências Jurídicas da UFPA, ele observa que um dos prejuízos causados pela grilagem de terras é a expulsão de comunidades tradicionais, como indígenas e quilombolas. “A obscuridade é a base do poder, da corrupção e da venda ilegal de terras”, afirma o economista Francisco de Assis Costa, do Núcleo de Altos Estudos Amazônicos (Naea) da UFPA e coordenador-geral do SIG Fundiário (ver Pesquisa FAPESP no 277). “Incertezas fundiárias resultam em insegurança social e em redução de oportunidades econômicas”, escreveu no livro Questões agrárias, agrícolas e rurais (Editora E-Papers, 2017).
As situações nem sempre são fáceis de resolver. Um dos casos levantados pelo SIG Fundiário começou em 1960, com solicitação feita por um fazendeiro interessado em adquirir, do governo do estado, uma área de cerca de 3 mil ha, ocupada por um castanhal, em Marabá. Por se tratar de uma área destinada ao extrativismo, o pedido foi negado. Pouco tempo depois, no entanto, valendo-se de um instrumento jurídico, o aforamento, o estado transferiu a terra para o fazendeiro. Nos 40 anos seguintes a área foi comprada e revendida várias vezes, sem título definitivo de posse. Um dos compradores registrou-a em 2004, em Itupiranga, município desmembrado de Marabá. Seis anos depois, o Iterpa concedeu ao atual proprietário, morador de Minas Gerais, o título definitivo, cancelado em 2014 porque a área ultrapassava o limite de 2,5 mil ha.
Na disputa pela posse legal das propriedades rurais resta uma certeza: “Alguém vai sair perdendo”, prevê Patrícia Moreira, juíza auxiliar das corregedorias das comarcas do interior do TJ do Pará. Em novembro de 2018, por exemplo, a Justiça determinou o bloqueio de posse de duas fazendas em Acará, nordeste paraense, sob a alegação de que as áreas, públicas, teriam sido indevidamente ocupadas e a empresa que reivindicava sua posse, apresentado documentos falsos ao registrá-las em cartório. “Haverá protestos com o trabalho de regularização que está sendo feito”, comenta a juíza, “mas também maior segurança jurídica, porque a terra legalizada terá mais valor”. No início de abril, ela ouviu com interesse a equipe da UPFA apresentar o SIG Fundiário, reconhecendo seu potencial para amenizar os conflitos de terras no Pará.
Programa indica possíveis áreas de compensação florestal no estado de São Paulo
Em fevereiro de 2019, na Sociedade Rural Brasileira, em São Paulo, o agrônomo Gerd Sparovek, professor da Escola de Agricultura Luiz de Queiroz da Universidade de São Paulo (Esalq-USP)
e presidente da Fundação Florestal de São Paulo, apresentou para um grupo de 100 produtores rurais, advogados e representantes de órgãos de governos e de organizações não governamentais
a versão mais recente de um programa de computador que indica possíveis áreas de compensação de reservas legais no estado de São Paulo. De acordo com o novo Código Florestal, em vigor
desde 2012, toda propriedade rural no estado deve manter 20% de sua área com vegetação nativa;
esse valor corresponde à reserva legal somada com as áreas de preservação permanente – quem tiver menos do que 20% pode restaurar vegetação nativa ou fazer a compensação em outra área. Aberto a qualquer interessado, por ora o programa (bit.ly/compRL_SP) contém somente dados de São Paulo. No estado, 30.417 propriedades rurais acumulam um déficit de reserva legal de 865.391 hectares.
“Assim que o Supremo Tribunal Federal publicar o acórdão do julgamento do Código Florestal, que ocorreu em 28 de fevereiro de 2018, o programa permitirá avaliar objetivamente as possibilidades de definição de similaridade ecológica da compensação de reserva legal ”, diz Sparovek. Para se adequar à nova legislação, os proprietários rurais com déficit de reserva legal têm quatro opções: restaurar suas próprias matas; arrendar uma área em outra propriedade; comprar uma área
dentro de unidades de conservação de proteção integral e doá-la ao estado; ou adquirir áreas excedentes de vegetação nativa, as chamadas cotas de reserva ambiental, dentro do mesmo estado e do mesmo bioma.
Sparovek expôs um conjunto de mapas sobre possíveis cenários de compensação de reserva legal de acordo com o artigo 68 do Código Florestal, que permite a adequação das áreas de preservação a leis anteriores.“Caso o proprietário tenha menos de 20% de vegetação nativa em sua propriedade, o artigo 68 o isenta de recompor a porcentagem da lei atual se ele estiver de acordo com a legislação ambiental da época em que foi feita a conversão da vegetação nativa em outros usos”, explica o
biólogo Paulo André Tavares, pesquisador do grupo da Esalq. O marco legal de 1934 estabeleceu a obrigatoriedade de manter 25% da vegetação nativa da propriedade rural, mas como o seguinte, de 1965, não especificava o tipo de vegetação a ser preservada. “Queremos oferecer ferramentas técnicas para o gestor público trabalhar com segurança e inibir condutas administrativas indevidas ou errôneas”, afirma Sparovek.
“Oferecemos vários cenários possíveis de compensação de reserva legal para embasar a tomada de decisões pelos proprietários rurais ou representantes dos órgãos do governo”, acrescenta a bióloga Alice Brites, pesquisadora em estágio de pós-doutorado na Esalq que coordenou as seis reuniões realizadas desde 2017 com proprietários rurais, representantes do governo, advogados, procuradores e outros especialistas em questões agrícolas. O projeto é resultado de debates iniciados em 2015 sobre a implantação do Programa de Regularização Ambiental (PRA) com os pesquisadores do Programa Pesquisa em Biodiversidade (Biota-FAPESP).
Livro
COSTA, F. de A. Dinâmica fundiária na Amazônia: Concorrência de trajetórias, incertezas e mercado de terras. In: MALUF, R. S. e FLEXOR, G. (orgs.) Questões agrárias, agrícolas e rurais: Conjunturas e políticas públicas. Rio de Janeiro: E-Papers, 2017.