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BOAS PRÁTICAS

Austrália veta seis projetos da área de humanidades

Proibição suscita debate sobre interferência política na ciência

SSPL / Getty Images

Uma investigação parlamentar aberta para apurar possível interferência política no investimento público em ciência mobilizou os cientistas da Austrália. Pelo menos 85 pesquisadores e representantes de sociedades científicas prestaram depoimento no Senado no início de março e a grande maioria deles pediu a revogação de uma prerrogativa que permite ao ministro da Educação rejeitar decisões de financiamento a projetos de pesquisa tomadas por comitês de especialistas.

Em dezembro, o ministro interino, Stuart Robert, havia utilizado esse poder de veto para proibir a concessão de recursos a seis propostas recomendadas por painéis de experts do Conselho de Pesquisa da Austrália (ARC). Os projetos eram todos da área de humanidades e envolviam tópicos como a China moderna, o ativismo climático estudantil e a amizade como tema na literatura inglesa. “Ao tomar a decisão de recusar seis dos 593 projetos, o ministro acredita que os rejeitados não valorizam o dinheiro dos contribuintes nem contribuem para o interesse nacional”, informou um porta-voz do ministério à revista Nature.

Nos 21 anos de atividades do ARC, o ministério rejeitou projetos em apenas quatro ocasiões – três delas nos últimos cinco anos. A Austrália é governada há quatro anos pelo premiê Scott Morrison, do Partido Liberal, de centro-direita. Em 2018, 11 projetos de humanidades já haviam sido vetados pelo ministério. As pesquisas rejeitadas receberiam cada uma entre 200 mil e 500 mil dólares australianos (R$ 740 mil e R$ 1,84 milhão).

Em resposta ao veto de dezembro, mais de 140 membros do comitê de especialistas do ARC assinaram uma carta defendendo o rigor e a integridade do processo de avaliação. “A qualidade das propostas de subvenções submetidas ao ARC é extremamente alta”, afirma o texto. Cada projeto é avaliado por especialistas do país e de fora e, em seguida, discutido e votado individualmente nas reuniões do painel do Comitê Consultivo de Seleção. Dezenove por cento das propostas apresentadas foram recomendadas. “Cada uma delas foi chancelada com base não apenas na qualidade, inovação e viabilidade, mas também no benefício e no valor que gerariam. A decisão ministerial de anular recomendações da ARC para financiamento prejudica todo esse processo”, escreveram os signatários da carta.

Dois membros do comitê de especialistas renunciaram em protesto. “O veto ministerial soa como um capricho”, disse à Nature Andrew Francis, matemático da Universidade do Oeste de Sydney, em Penrith, um dos que abandonaram o cargo. Segundo Francis, a possibilidade de haver veto político já está fazendo com que pesquisadores do campo das mudanças climáticas mudem o escopo de suas propostas para tentar escapar da interferência na avaliação.

Na investigação aberta no Senado, o astrofísico norte-americano radicado na Austrália Brian Schmidt, ganhador do Nobel de Física de 2011 e vice-chanceler da Universidade Nacional Australiana, em Canberra, foi uma das vozes que defenderam o fim do poder de veto do ministro. “Isso já está afetando a capacidade de atrair talentos para a Austrália”, disse, de acordo com o jornal The Sydney Morning Herald. James McCluskey, vice-reitor de pesquisa da Universidade de Melbourne, afirmou que o poder de veto é um “desvio significativo das melhores práticas do mundo”. Ele observou que os conselhos de pesquisa nos Estados Unidos e no Reino Unido são autônomos e não estão sujeitos à intervenção de ministros.

Deborah Sweeney, vice-chanceler da Universidade do Oeste de Sydney, instituição que teve dois projetos vetados pelo ministério, disse que a intervenção teve “um efeito assustador, devastador e desmoralizante” sobre os pesquisadores proponentes. Representantes da Universities Australia (UA), que reúne 39 instituições de ensino superior do país, sustentaram que o poder de veto mina as bases do sistema de ciência e tecnologia. “Os pesquisadores que apresentam propostas competitivas a agências de financiamento precisam saber que podem confiar na força e na qualidade de suas ideias. Sem essa confiança, a pesquisa australiana perde competitividade”, informou em comunicado.

Poucas manifestações foram favoráveis à manutenção da legislação, entre as quais a do próprio ARC, para o qual a revogação “minaria a responsabilidade do ministro” e enfraqueceria a capacidade do Parlamento de supervisionar o financiamento da ciência no país. Um dos pesquisadores a defender o veto foi o físico Peter Ridd, da Universidade John Cook, representante do Instituto de Relações Públicas, uma organização que produz estudos sobre livre mercado. Em sua opinião, o poder discricionário do ministro seria importante para garantir que os resultados de pesquisa sejam fidedignos e possam ser reproduzidos em outros experimentos. De acordo com a revista Times Higher Education, Ridd disse que a chamada “crise de reprodutibilidade” da ciência, que faz com que muitos achados aparentemente promissores não se confirmem em estudos subsequentes, seria um efeito da incapacidade dos pesquisadores de regular suas atividades. “Eu preferiria que um político tivesse a palavra final”, propôs.

Além do ARC e de Ridd, houve outras vozes divergentes. Dirigentes da Universidade Católica da Austrália e da Universidade de Tecnologia de Queensland (QUT) argumentaram que o veto não pode ser totalmente descartado, embora deva ser uma prática excepcional. Para eles, seria suficiente ampliar a transparência no processo de decisão, com a exigência de que o ministério forneça explicações claras ao Parlamento sobre as razões pelas quais o projeto foi rejeitado. “Remover o poder de veto não seria politicamente realista ou desejável democraticamente”, afirma John Byron, conselheiro da QUT. Segundo ele, a supervisão dos ministros sobre o financiamento é um dos princípios de um governo responsável.

Apesar da mobilização, o relatório aprovado no final de março pelo comitê parlamentar de investigação optou por preservar o poder de veto do ministro. Mas recomendou a criação de um painel independente para reavaliar a legislação que regula as atividades do ARC de modo a evitar o enfraquecimento do órgão. “O comitê aceita o argumento de que uma ampla revisão do ARC é necessária, com vistas a maximizar o impacto do investimento público em pesquisa e impulsionar um forte sistema nacional de pesquisa e desenvolvimento.”

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