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Batalha de papel

Jornais e panfletos políticos disseminaram questionamentos, ideias e controvérsias em torno da Independência do Brasil

Em meio à efervescência política da época, os panfletos costumavam trazer réplicas ou tréplicas, caso do folheto à direita, impresso em 1824, no Rio de Janeiro

Oliveira Lima Library / The Catholic University of America

Vinte e um panfletos políticos que circularam nas províncias do Rio de Janeiro, Maranhão, Pernambuco, Bahia e Grão-Pará estão reunidos no livro Vozes do Brasil: A linguagem política na Independência (1820-1824). Lançada no final do ano passado pelo Senado Federal, a publicação foi organizada pelas historiadoras Heloísa Maria Murgel Starling e Marcela Telles Elian de Lima, da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). A versão digital pode ser acessada gratuitamente na livraria do Senado. Os panfletos integram a coleção de 135 folhetos relativos à Independência do Brasil reunidos pelo diplomata e historiador pernambucano Manuel de Oliveira Lima (1867-1928) em sua biblioteca particular.

Em 1916 o intelectual doou o acervo com cerca de 40 mil títulos, que incluem livros, documentos, mapas e obras de arte, à Universidade Católica da América, localizada em Washington, nos Estados Unidos, onde permanece desde então (ver Pesquisa FAPESP n° 266). “Oliveira Lima costumava comprar panfletos em casas de leilões e sebos na Europa e no Brasil. No livro Vozes do Brasil, eles não foram transcritos, mas sim reproduzidos na íntegra para que o leitor possa ver como eram esses impressos”, explica a socióloga e cientista política brasileira Nathalia Henrich, diretora da Biblioteca Oliveira Lima  e autora do livro O antiamericano que não foi: Os Estados Unidos na obra de Oliveira Lima (EdiPUCRS, 2021), fruto de sua tese de doutorado na Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC).

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O lançamento se junta a publicações como Guerra literária: Panfletos políticos da Independência – 1820-1823, organizada pelos historiadores José Murilo de Carvalho, Lucia Maria Bastos Pereira das Neves e Marcello Basile (Editora da UFMG, 2014). O compêndio em quatro volumes, cuja edição impressa estava esgotada, acaba de ser digitalizado e está disponível para consulta no site da Biblioteca Nacional. Trata-se de 362 folhetos que circularam sobretudo no Rio de Janeiro, mas também nas províncias da Bahia, de Pernambuco e do Maranhão, além de Portugal. “Esses panfletos, que podiam ser manuscritos ou impressos, discutiam os acontecimentos políticos da época. Eram efêmeros, sem periodicidade, com linguagem virulenta e apaixonada, a começar pelos títulos chamativos”, explica Bastos, do Departamento de História da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj).

Cerca de 80% do material que compõe a coletânea saiu da Biblioteca Nacional, no Rio de Janeiro, e foi recolhido ao longo de quase duas décadas de pesquisa pelos organizadores. “Selecionamos aqueles que não foram escritos pelo poder oficial. Esses panfletos, em sua maioria anônimos, são fundamentais para entender o processo de Independência do Brasil porque não representam o pensamento oficial, que por vezes mascara a realidade”, diz Bastos. Segundo a especialista, os panfletos têm formatos diversos: podem ser encontrados em folhas avulsas ou em compilações de até 50 páginas. “Eram mais ágeis e baratos do que os jornais e atingiam um público amplo”, completa.

Oliveira Lima Library / The Catholic University of AmericaEstima-se que foram impressos, entre 1821 e 1823, mais de 500 panfletos políticos em Portugal e no Brasil. O folheto do centro saiu pela Typografia Nacional do Maranhão, em 1822Oliveira Lima Library / The Catholic University of America

De acordo com a historiadora Cecília Helena de Salles Oliveira, do Museu Paulista da Universidade de São Paulo (MP-USP), no caso do Brasil isso era possível, mesmo em uma população majoritariamente analfabeta, graças às leituras compartilhadas. “Não apenas os panfletos políticos como também os jornais eram lidos em voz alta em lugares de grande aglomeração como tabernas, praças públicas e chafarizes”, conta a especialista que estuda a temática desde a década de 1980.

A utilização dessa forma de escrita não era exatamente uma surpresa na paisagem política luso-brasileira, escreve Starling, no livro Vozes do Brasil. “Ao tempo da América portuguesa, panfletos circularam, de maneira pontual, em muitas das revoltas que eclodiram com impressionante regularidade entre o século XVII e a primeira metade do século XVIII. […] Panfletos difamatórios, pornográficos ou satíricos, por sua vez, transitavam provocadoramente pelo território da Colônia e começaram a ser documentados por obra do Tribunal do Santo Ofício entre 1587 e 1591. Em 1789, o ano da Conjuração Mineira, o caldo político engrossou e manuscritos inflamados, com autoria atribuída a negros quilombolas, se materializaram na cidade de Mariana, apanhando de surpresa população e autoridades: ‘Tudo o que for homem do reino há de morrer. E só ficarão algum velho e clérigos’, ameaçavam”, anota a pesquisadora. Da mesma época é o panfleto Cartas chilenas, atribuído ao poeta Tomás Antônio Gonzaga (1744-1810) e escrito possivelmente entre 1786 e 1789 com a provável colaboração do também poeta Cláudio Manuel da Costa (1729-1789) – ambas figuras de destaque da Inconfidência Mineira (1789-1792).

Voz às diferenças
A impressão de folhetos políticos e jornais viveu seu apogeu no início da década de 1820 tanto no Brasil quanto em Portugal. De acordo com o historiador Marcelo Cheche Galves, da Universidade Estadual do Maranhão (Uema), isso se deveu à Revolução Liberal de 1820, iniciada na cidade do Porto. “Por exigência do movimento, foi elaborada no ano seguinte à primeira Constituição no Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves. O documento determinou o fim da censura prévia, instituindo assim a liberdade de imprensa”, relata o pesquisador, autor do livro Ao público sincero e imparcial: Imprensa e Independência na província do Maranhão (1821-1826), lançado em 2015, pela Editora Uema e Café&Lápis.  “Estima-se que foram impressos entre 1821 e 1823 mais de 80 periódicos e mais de 500 folhetos políticos nos dois lados do Atlântico. A liberdade de imprimir criou espaços públicos de representação política, que deu voz às diferenças, ainda que restritas ao mundo dos proprietários”, prossegue Galves.

Já era possível produzir impressos no Brasil desde 1808, com a chegada da Corte portuguesa ao Rio de Janeiro. “Entretanto, entre 1808 e 1821 panfletos e periódicos passavam pelo escrutínio da Imprensa Régia”, diz Oliveira.  Era o caso da Gazeta do Rio de Janeiro, que começou a circular naquele ano e encerrou suas atividades em 1822. “Supostamente impresso por particulares, era o jornal da Corte e só divulgava notícias que interessavam ao governo monárquico português”, relata a cientista política e historiadora brasileira Isabel Lustosa, pesquisadora vinculada ao Centro de Humanidades da Universidade Nova de Lisboa. Naquele período também circularam sob permissão da Coroa os jornais O Patriota (1813-1814), do Rio de Janeiro, e A Idade d´Ouro no Brasil, da Bahia, que surgiu em 1811 com aval do então governador da província Marcos de Noronha e Brito (1771-1828), o conde dos Arcos.

Oliveira Lima Library / The Catholic University of AmericaOs panfletos apostavam em títulos chamativos, como As amêndoas dadas aos corcundas, por hum liberal inimigo de golfinhos (no alto, à esquerda), impresso em 1821, em LisboaOliveira Lima Library / The Catholic University of America

A exceção era o Correio Braziliense, também chamado de Armazém Literário, publicação em português destinada ao leitor no Brasil que surgiu na Inglaterra em 1808. “Era editado por Hipólito da Costa [1774-1823], brasileiro que estudou na Universidade de Coimbra, mas em decorrência de suas ligações maçônicas foi obrigado a fugir de Portugal para se estabelecer em Londres por volta de 1806”, conta Lustosa, autora do livro O jornalista que imaginou o Brasil – Tempo, vida e pensamento de Hipólito da Costa (1774-1823), lançado em 2019, pela Editora da Unicamp. “O jornal, com periodicidade mensal, levava cerca de três meses para chegar ao Brasil, a depender das condições marítimas. Sem autorização da Coroa, circulava de forma clandestina nas províncias.”

De acordo com a especialista, Hipólito da Costa era adepto do chamado reformismo ilustrado. “Como monarquista, ele defendia que as instituições fossem reformadas, mas sem alterar o poder soberano do rei. Ao saber da partida da Corte portuguesa para o Rio de Janeiro, viu ali a oportunidade para defender seu projeto de império luso-brasileiro sediado no Brasil e criou o jornal naquele mesmo ano”, explica Lustosa. “Os artigos criticavam os governadores das províncias e os ministros da Corte, mas nunca dom João VI (1767-1826). Por sinal, eram críticas que o próprio príncipe regente, que se tornaria rei em 1816, gostaria de fazer. Havia momentos de repressão, com apreensão dos exemplares, mas em geral a Corte fazia vista grossa para a circulação ilegal desse impresso.”

Por causa disso, o jornal obteve subsídio secreto da Coroa em 1812, segundo Lustosa. Até então era mantido por assinaturas e o patrocínio de um grupo de negociantes portugueses radicados na Inglaterra e com interesses comerciais no Brasil. Com tiragem de 500 exemplares, o periódico buscava difundir no país o pensamento liberal ao reivindicar, por exemplo, o fim do monopólio comercial e maior acesso da população à educação. “Um dos grandes méritos do jornal foi ter contribuído para criar uma cultura política entre as elites do Brasil. Os artigos fizeram com que muitos leitores começassem a questionar a ordem política aqui vigente”, defende Lustosa. Outra grande contribuição do periódico, a seu ver, foi forjar a ideia de nação, inexistente no Brasil da época. “Por meio de uma rede de correspondentes, o jornal trazia notícias de várias províncias, como a inauguração de uma agência de correios no Ceará ou uma biblioteca no Rio Grande do Sul”, observa a pesquisadora.

Projeção social
Com a liberdade de imprensa as tipografias se disseminaram Brasil afora. “Quando havia o controle régio, existiam apenas duas delas no Brasil: uma no Rio de Janeiro, outra na Bahia. A partir de 1821, dezenas de tipografias, públicas ou particulares, foram abertas. Apenas no Rio de Janeiro surgiram outras três, mas elas também apareceram em províncias como Pernambuco, Maranhão e Grão-Pará”, diz Oliveira. “Quem tinha dinheiro, inclusive gente envolvida com o tráfico de escravizados, se voltou para esse tipo de empreendimento, que passou a acumular com outros negócios.”

Na dissertação de mestrado “Origens da imprensa no Brasil: Estudo prosopográfico dos redatores de periódicos editados entre 1808 e 1831”, desenvolvida na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP, com apoio da FAPESP, o historiador Luís Otávio Vieira levantou 29 nomes para traçar o perfil de editores e redatores de jornais que circularam no início de século XIX. Para tanto, a pesquisa lançou mão da prosopografia, ou sistematização e cotejamento de dados biográficos coletivos. O Rio de Janeiro concentra o maior número de autores analisados (sete), mas a pesquisa também traz exemplos em outras províncias como Minas Gerais, São Paulo, Paraíba e Goiás.  Nessa última, a primeira tipografia só chegou em 1830 e imprimia o jornal Matutino Meiapontense, editado pelo padre Fleury (1793-1846).

Oliveira Lima Library / The Catholic University of AmericaAo centro, folheto publicado em Coimbra analisa o projeto político para o estabelecimento do Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves, designação do império português na Constituição de 1822Oliveira Lima Library / The Catholic University of America

O levantamento constatou que os editores e redatores, todos do sexo masculino, vinham, em geral, de famílias abastadas. “Quatorze deles eram filhos de comerciantes ou proprietários de terra”, diz Vieira. Caso de Joaquim Gonçalves Ledo (1781-1847) e do cônego Januário da Cunha Barbosa (1780-1846), dupla à frente do jornal oposicionista Revérbero Constitucional Fluminense, que circulou entre 1821 e 1822, cujos pais fizeram grande fortuna no Rio de Janeiro. Ou então de Felipe Patroni (1798-1866), um dos redatores do Paraense (1822) e descendente de Pedro Manuel Parente, capitão-mor da capitania do Pará e comendador da Ordem de São Bento de Avis. “Nas primeiras décadas do século XIX, a produção de periódicos não era acessível a indivíduos pertencentes às camadas sociais menos prestigiadas, identificadas com o vulgo”, afirma Vieira. “Ao mesmo tempo, boa parte desses redatores e editores de periódicos tinha dinheiro, mas não pertenciam à nobreza mais próxima da Corte e viam na imprensa uma forma de ampliar a projeção social e o poder político.”

A estratégia não estava livre de percalços. Ledo e Barbosa, por exemplo, chegaram a ser exilados por conta de suas posições políticas contrárias ao governo e vocalizadas pelo jornal. Já o religioso e político Frei Caneca (1779-1825), que comandou o jornal Thypis Pernambucano (1823-1824), foi executado em 1825. “Em 1824, ele foi um dos nomes mais ativos da Confederação do Equador, que, entre outras coisas, buscava maior autonomia da província de Pernambuco”, diz Vieira. “Havia muita briga. O clima era tenso. Por vezes, as discussões extrapolavam as páginas desses impressos e os redatores acabavam, no mínimo, apanhando na rua”, diz Galves.

Até antes de 1822 jornais e panfletos pouco tratavam da possibilidade de o Brasil tornar-se independente. “Discutia-se muito a respeito da autonomia que o Brasil deveria ter em relação a Portugal. As enquetes investigavam a opinião do público sobre questões polêmicas como se o então príncipe regente Pedro [1798-1834] deveria voltar para Portugal ou ficar no Brasil”, prossegue Galves. “As discussões sobre a Independência esquentaram de fato em 1822.” E não havia consenso. “Em geral, os impressos do Rio de Janeiro defendiam a permanência de dom Pedro no Brasil, pois a província havia se beneficiado muito com a presença da Corte, concentrando poder político e recursos públicos”, observa Lustosa. De acordo com Galves, a situação era diferente nas províncias do Norte, como Maranhão e Pernambuco. “Os benefícios trazidos pelo comércio direto com a Inglaterra, aliada de Portugal, não compensavam os custos para a manutenção da Corte no Rio de Janeiro. Quando se instituiu a liberdade de imprensa, essas divergências de interesses explodiram”, diz o pesquisador.

Segundo Bastos, da Uerj, havia um intenso diálogo entre periódicos e panfletos. “Ambos eram campos de batalha em meio à efervescência da época. A seção de cartas dos jornais, que não se sabe se eram de fato enviadas por leitores, repercutia o tom virulento de um folheto, por exemplo”, relata Bastos. “Os folhetos avulsos costumavam sair encartados em jornais. E não raro quem editava os periódicos também escrevia panfletos. Sem contar que os jornais traziam anúncios de livreiros no Brasil informando a chegada de folhetos vindos de Portugal.” Segundo constata Oliveira, do Museu Paulista, imprensa e panfletos nos convidam a rever hoje alguns pressupostos da Independência. “Esses impressos colocam por terra a crença de que os embates estavam circunscritos a um suposto confronto entre colônia e metrópole. No caso dos panfletos, mostram que o processo contou, entre outros atores, com libertos, pequenos proprietários e mulheres, que inclusive chegaram a escrever alguns textos políticos”, conclui.

Projeto
Origens da Imprensa no Brasil: Estudo prosopográfico dos redatores de periódicos editados entre 1808 e 1831 (nº 16/12566-7); Modalidade Bolsa de Mestrado;  Pesquisador responsável João Paulo Garrido Pimenta (USP); Beneficiário Luís Otávio Vieira; Investimento R$ 50.077,83.

Livro
BASILE, M. et al. Guerra literária: Panfletos políticos da Independência – 1820-1823. Belo Horizonte: Editora da UFMG, 2014. v. 1 a 4.

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