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Humanidades

Bem maior do que pensavam os aduladores

O que houve com Gomes após o sucesso de A Noite do Castelo? Bem, são proezas dignas das andanças dos manuscritos. Bem-sucedido com Joana de Flandres, conseguiu que o imperador lhe concedesse uma bolsa de estudos na Europa. Wagneriano, Pedro II o queria na Alemanha, mas, sábia, a imperatriz, Tereza Cristina, insistiu para que fosse à Itália. O rapaz vibrou, pois sua música vinha das árias de Verdi, Rossini e Donizetti e não das brumas dos nibelungos. Em 1864, chegou a Milão, mas, sem a idade necessária para entrar no célebre Conservatório, foi estudar com Lauro Rossi. Mais que preso pelos poucos anos, Gomes percebeu que o sucesso em casa não era páreo para a concorrência milanesa, que não perdoava as lacunas em sua formação e suas origens estrangeiras e, mais do que isso, exóticas.

Uniu-se, por Natureza, aos scapigliati (descabelados), jovens rebeldes que desejavam renovar a cultura italiana, entre eles Arrigo Boito, o futuro libretista de Verdi. Para fugir do frio local, que o aterrorizava, dispôs-se a escrever melodias para pequenas operetas em dialeto, como Se Sa Minga, tarefa fácil para o melodista de veia intensa que já criara, no Brasil, a encantadora miniatura Quem Sabe?, modinha deliciosa que ainda derrete corações. O livro de José de Alencar foi o mote para sua nova ópera, O Guarani, beneficiada pela nova onda de entusiasmo pelo exótico, levantada com a monstruosa Grand Opera de Meyerbeer. O Teatro alla Scala, o templo inatingível para qualquer operista, aceitou-a como opera de obbligo, ou seja, para cumprir a obrigação de incluir uma nova criação em cada temporada.

Mais uma vez, desta vez em terras européias, o sucesso, em 19 de março de 1870, quando os selvagens tomaram o palco do Scala e o coração dos italianos. No Brasil, Carlos Gomes é convertido em herói e ícone do império, orgulho da pátria, pecha terrível que o destruirá em vida, e agora, na posteridade. Seguiram-se Fosca (que será alvo de críticas, já que colocada no fogo cruzado entre verdianos e wagnerianos: muitos acreditaram encontrar na ópera de Gomes, a sua obra-prima, aliás, ecos dos leitmotivs do autor de Lohengrin, algo que os italianos, em guerra cultural, não podiam perdoar, ainda mais de um estrangeiro), Salvador Rosa (grande triunfo), Lo Schiavo (em que, para evitar censuras, troca negros por índios, a fim de não desagradar o patrono escravagista e imperial), Condor e o oratório Colombo.

Era um apaixonado pela boa vida e pelas mulheres, gastando o que tinha e pedindo empréstimo para gastar o que não tinha em noitadas e numa vila esplendorosa, em Lecco, a que chamou, saudoso, de Villa Brasilis. No fim, vivendo entre o Brasil e a Itália, contam os biógrafos que saía pela porta dos fundos de sua casa assim que batiam na porta da frente. Temia os credores, vorazes. Vítima do sucesso, obrigado a repetir o triunfo do exotismo de O Guarani, Gomes parece ter dedicado a vida a vencer em sua carreira, como a justificar as esperanças depositadas, o crédito excessivo da pátria. Envolvido em arrancar aplausos que os europeus nem sempre estavam dispostos a lhe dar, não teve o precioso tempo da pausa, do descanso para a reflexão e para o estudo que lhe permitiriam desenvolver melhor seu idioma musical particular. Dessa forma, foi prisioneiro dos guaranis da fama, amarrado na rotina estafante dos contratos e das estréias a toque de caixa.

Mas o grande compositor transborda por entre as muitas concessões que a época e os lugares lhe impuseram. Ainda assim, vegeta, hoje, nas mãos dos conservadores que só querem a veneração vazia, acrítica, continuando a deixá-lo preso no limbo da glória oficialesca. A maioria dos que o defendem mal o conhecem. Daí o valor da coleção de CDs da Master Class, com a integral operística, que nos permitiu, pela primeira vez, vislumbrar suas grandezas e as suas muitas tacanhices, mediocridades e clichês.

Ainda assim, no todo, Carlos Gomes é maior do que tudo isso e bem maior do que os velhinhos que o cultuam como um medalhão machadiano, algo que os verdadeiros artistas, como ele foi, dispensam. Mas isso ele já pôde experimentar em vida. Doente, com um câncer na língua, sem dinheiro, aceitou o convite para dirigir o Conservatório de Belém do Pará. Ei-lo de volta à selva que o fez célebre. Em Portugal, pouco antes de embarcar para o Brasil, encontrou-se com Antonio Feliciano de Castilho, o autor do poema que serviu como base para o libreto de A Noite do Castelo. Fechou-se um ciclo que seria encerrado com sua morte, só, em Belém, um peso desagradável para a nascente República, que não o desejou no Rio de Janeiro. Assumiu em junho e faleceu em setembro.

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