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história

Caminhos da liberdade

No marco de seus 130 anos, pesquisas mostram o papel de diferentes protagonistas no processo de abolição da escravidão no Brasil

Coleção do artista/Foto: Rômulo Fialdini Amnésia, de Flávio Cerqueira, 2015. A exposição Histórias afro-atlânticas será aberta ao público a partir de junho no Masp e no Instituto Tomie Ohtake, em São PauloColeção do artista/Foto: Rômulo Fialdini

Último país do Ocidente a abolir a escravidão mercantil, o Brasil foi a nação que mais recebeu africanos expatriados. Foram 4,7 milhões de pessoas entre 1550 e 1860, cerca de 40% de toda diáspora africana. Passados 130 anos da assinatura da Lei Áurea, ocorrida em 13 de maio de 1888, o conhecimento científico acumulado permite entender novos aspectos desse regime que conseguiu se perpetuar sobretudo graças ao uso disseminado da violência. Um exemplo é o Dicionário da escravidão e liberdade – 50 textos críticos (Companhia das Letras), lançado este mês e que reúne um conjunto de estudos de especialistas nacionais e estrangeiros no assunto. Eles mostram, por exemplo, como os escravos passaram a ser entendidos como protagonistas de suas próprias histórias, capazes de organizar rebeliões e manter famílias mesmo nas adversas condições das senzalas. No aprofundamento das pesquisas acadêmicas sobre o tema, características específicas da escravidão nos meios rural e urbano, assim como as relações entre escravizados negros e indígenas também vieram à luz. Analisada como um processo que envolveu diferentes protagonistas, de personalidades políticas a associações de trabalhadores e, sobretudo, negras e negros livres ou escravizados, a Abolição também passou a ser vista como uma medida que estabeleceu igualdade jurídica entre a população – mas que não se traduziu em equidade racial.

Flávio dos Santos Gomes, professor do Instituto de História da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e um dos organizadores do livro, ao lado de Lilia Moritz Schwarcz, professora no Departamento de Antropologia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (FFLCH-USP), explica que os últimos 20 anos foram marcados pelo aprofundamento dos estudos sobre aspectos pontuais da história da África, escravidão, Abolição e pós-Abolição. “Esses campos de pesquisa anteriormente eram avaliados de forma mais abrangente e panorâmica, de maneira que ocorriam generalizações em relação à origem dos africanos e às especificidades da escravidão no território brasileiro”, lembra. Outra tendência das pesquisas recentes, segundo ele, é pensar a escravidão da perspectiva atlântica, mostrando como ela permeou as relações sociais, econômicas e políticas entre a África, a Europa e as Américas.

Ao levantar dados em bancos de teses defendidas nos últimos 50 anos, no Brasil e nos Estados Unidos, em censos provinciais armazenados em arquivos públicos e livros paroquiais de igrejas, Herbert S. Klein, professor emérito de história na Universidade Columbia, nos Estados Unidos, identificou que dois terços dos escravos que chegaram ao Brasil, durante os mais de 300 anos de tráfico, eram homens adultos. Setenta por cento dos escravos provinham da África centro-ocidental, 18% do golfo de Benin e 6% de Moçambique, contabiliza. “Cerca de 80% dos escravos de ambos os sexos eram economicamente ativos, o que é uma taxa de participação extraordinariamente alta”, observa. No Brasil, durante a vigência da escravidão, a expectativa de vida dessa população era cinco a 10 anos menor do que a de negros norte-americanos, por exemplo, que viviam, em média, 33 anos.

Além de identificar os perfis da população africana e afrodescendente no Brasil, pesquisas recentes procuram entender as especificidades que a escravidão adquiriu em território nacional. Schwarcz explica que, nesse sentido, ganham evidência as análises sobre a Amazônia, região pouco privilegiada nos estudos sobre o tema, que permitem compreender dinâmicas estabelecidas entre indígenas e africanos no país. O texto “Amazônia escravista”, coautoria entre Schwarcz e Gomes, que integra o dicionário, mostra que a chegada de africanos está relacionada ao estabelecimento de lavouras na região. Eles se tornaram majoritários a partir do século XVIII por causa dos lucros auferidos pelo tráfico, mas também porque os indígenas resistiam ao trabalho compulsório e conseguiam escapar de seus algozes com mais facilidade, devido ao domínio do território. Os africanos, por sua vez, chegavam debilitados e doentes depois de cruzar o Atlântico em porões de navios, em viagens com cerca de três meses de duração, e eram considerados “mais fáceis de domesticar”. Com isso, enquanto um escravo africano custava 20 mil réis, o índio valia 7 mil, entre 1572 e 1574. Crianças também eram vendidas. “Apesar de maioria, os africanos não chegaram a substituir totalmente os índios no trabalho compulsório”, informa Schwarcz. O sistema escravista também utilizou, sempre que pôde, a mão de obra indígena.

Entrevista: Lilia Moritz Schwarcz

 
     

A pesquisadora lembra que até recentemente os estudos historiográficos indicavam um mero processo de substituição: a escravidão indígena teria sido substituída pela africana e, após a Abolição, os postos de trabalho antes destinados aos negros teriam sido ocupados pelos imigrantes europeus. “Estudos recentes comprovam que essas populações conviveram nos mesmos espaços de trabalho”, afirma a pesquisadora. Ela explica que indígenas e africanos trabalharam juntos nas capitanias de Pernambuco e da Bahia, com o desenvolvimento do cultivo da cana-de-açúcar a partir de 1550. “Uma das principais peculiaridades da escravidão no Brasil foi sua disseminação por todo o território nacional, diferentemente do que ocorreu em outras áreas coloniais das Américas, onde ela foi escassa ou inexistente em algumas partes.” Segundo Schwarcz, no século XVIII, as descobertas de minas de ouro levaram a uma corrida à região central do Brasil, enquanto a partir do século XIX a economia exportadora cafeeira mobilizou a criação de senzalas nas fazendas do Sudeste, marcando diferentes formas de distribuição da população escravizada.

Múltiplos protagonistas
Pesquisas recentes sobre a Abolição evidenciam que a extinção oficial do trabalho escravo no Brasil se deu por meio do esforço de vários protagonistas, incluindo lideranças políticas, associações comerciais e dos próprios africanos e afrodescendentes. O início do debate sobre a emancipação dos escravos é antigo, com a pressão pelo fim do tráfico começando já na época da vinda da Corte de dom João em 1807. A partir de 1870, o debate assume maior proporção e grupos e movimentos abolicionistas são criados em diferentes regiões do Brasil. “As ideias abolicionistas circulavam pelos países escravistas por meio de marinheiros e viajantes, e escravizados inflamavam-se com as notícias vindas da independência do Haiti”, exemplifica Schwarcz.

Angela Alonso, professora no Departamento de Sociologia da FFLCH-USP e presidente do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap), explica que as primeiras interpretações sobre o fim da escravidão foram escritas por abolicionistas simpáticos à Coroa imperial, que atribuíam importância excessiva ao papel da princesa Isabel (1846-1921) no processo. Com isso, ela passou a ser vista como a protagonista da iniciativa, quando, na realidade, diferentes setores da sociedade estavam mobilizados em prol da causa desde pelo menos 1868. “A partir desse ano até 1888, identifiquei a existência de mais de 200 associações abolicionistas atuantes no Brasil, revelando o trabalho de diferentes grupos engajados na campanha”, esclarece Angela, que realizou pesquisas em jornais da época.

Ela destaca a trajetória de líderes abolicionistas que atuaram em diferentes frentes: Luís Gama (1830-1882) no Judiciário, José do Patrocínio (1854-1905) no espaço público, Joaquim Nabuco (1849-1910) no Parlamento, e André Rebouças (1838-1898), que atuou em várias áreas. Uma das táticas empregadas, sobretudo a partir de 1883, já havia sido utilizada por lideranças de outros países para libertar escravos. Segundo Angela, nos Estados Unidos grupos de ativistas abolicionistas organizavam roubos de escravos para levá-los a regiões em que não havia escravidão, ou mesmo ao Canadá. “No Brasil, não havia território livre de escravidão, de maneira que eles se esforçaram por criá-los”, conta. Assim, investiram em campanhas de libertação em províncias menores, onde havia poucos escravos e autoridades simpáticas ao abolicionismo e nas quais as forças de repressão do governo imperial tinham dificuldade de chegar. Esse foi o caso do Ceará. A campanha envolvia captação de recursos para a compra da liberdade e o convencimento dos senhores para que alforriassem seus escravos. Depois da libertação de escravos em diferentes municípios, em 1884 o presidente da província, em aliança com os abolicionistas, declarou o fim da escravidão naquele território. O acontecimento levou Patrocínio e Nabuco a organizarem celebrações na França e no Reino Unido, reforçando a pressão internacional para que o governo brasileiro elaborasse um plano de extinção do regime escravagista. Mais tarde, a mesma tática foi adotada para liberar a província do Amazonas.

Na avaliação de Angela, outro fato relevante ocorreu após uma fuga massiva de escravos de Itu para Santos, no litoral de São Paulo, em 1887. Acionado pelo governo imperial, o Exército promoveu um massacre dos fugitivos na travessia da serra do Mar. O acontecimento teve repercussão negativa em todo o Brasil e agravou a crise existente entre governo e Exército – que, na ocasião, reivindicava aumento do salário da tropa. A partir de então, os militares declararam que não iriam mais reprimir rebeliões ou capturar escravos fugitivos, tirando do Império os meios que dispunha para sustentar a escravidão.

Como parte da campanha abolicionista, as lideranças exigiam não apenas a promulgação de uma lei para extinguir o regime de trabalho forçado em todo o país, como também o pagamento de um salário mínimo aos egressos da escravidão e a doação de terras próximas às estradas de ferro, sem que houvesse a necessidade de desapropriação das propriedades dos senhores. Já as classes senhoriais reivindicavam indenização pela perda dos escravos. “Em 1888, a Lei Áurea descartou ambas as possibilidades e o que aconteceu foi um empate político”, analisa Angela, lembrando que o Império não se comprometeu em fiscalizar o cumprimento da lei, tampouco em estabelecer políticas públicas de inserção de ex-escravizados no mercado de trabalho.

Wlamyra Albuquerque, professora de história na Universidade Federal da Bahia (UFBA), por sua vez, constatou em suas pesquisas que revoltas escravas aconteceram desde os primórdios da adoção do regime no Brasil. Rebeliões que se tornaram célebres, como a Revolta dos Malés em 1835, na Bahia, e a Revolta de Manuel Congo em 1838, em Vassouras, Rio de Janeiro, repercutiram em todo o país, evidenciando a possibilidade de insurgência em diferentes regiões. “Essas revoltas ajudaram a criar as bases do movimento abolicionista”, afirma a historiadora. Aos poucos, a causa se expandiu e passou a envolver grupos sociais como sapateiros, padeiros e jornalistas, que criaram sociedades empenhadas em reunir o montante necessário para comprar a liberdade de cativos. A possibilidade de comprar a alforria de escravizados – seja por eles mesmos ou por terceiros – se ampliou após a promulgação da Lei do Ventre Livre, em 1871. “A Abolição foi um movimento gestado não somente nas altas esferas políticas e institucionais. Vários atores participaram do processo”, destaca a pesquisadora.

Cortesia Galeria Pilar/Foto Léo Ramos A família, s/d, de Sidney Amaral (1973-2017). Bronze polido (10 × 20 × 2 cm). Edição 03/03 – Prova do artistaCortesia Galeria Pilar/Foto Léo Ramos

Entre os anos 1960 e 1970, a chamada Escola Sociológica de São Paulo trabalhava com a ideia de que os escravos eram incapazes de interferir em suas trajetórias. Além deles, pensadores ligados à corrente teórica marxista ortodoxa insistiam que o escravo não tinha consciência de classe, algo intrínseco ao trabalhador livre e assalariado. Essa concepção mudou. “Existe hoje uma corrente historiográfica consistente que trabalha com a ideia de que os escravos não sofriam de anomia”, diz Marcelo Mac Cord, professor da Faculdade de Educação da Universidade Federal Fluminense (UFF). Ele explica que essa vertente de estudos teve em teóricos ingleses, como Edward Palmer Thompson (1924-1993), seu ponto de inflexão, na medida em que se começou a enxergar escravos como sujeitos históricos.

Tal visão, na interpretação de Wlamyra, relativiza o olhar de vertente historiográfica que vigorou até meados dos anos 1980 e que atribuía à pressão inglesa papel preponderante no processo de extinção da escravidão. Como resultado da Abolição em diferentes regiões das Américas, no decorrer do século XIX a pressão internacional cresceu para que o Brasil fizesse o mesmo. Depois de firmar, com o Reino Unido, tratados que davam base legal para a repressão ao tráfico e para a emancipação de africanos encontrados a bordo de navios negreiros, o país promulgou, em 1831, uma lei proibindo o tráfico atlântico. Beatriz Gallotti Mamigonian, professora do Departamento de História da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), conta que a aplicação da lei de 1831 foi desigual e não resistiu aos interesses de traficantes e fazendeiros. “Assim, mesmo tendo direito ao estatuto de africanos livres e, portanto, à liberdade, cerca de 800 mil pessoas foram importadas entre 1830 e 1856 e mantidas como escravas”, afirma. De acordo com ela, os 11 mil capturados e emancipados ficaram sob tutela do governo imperial, atuando em fábricas, obras públicas e hospitais. “Eles trabalhavam sem salário, em troca de comida e roupa, como os escravos”, explica Beatriz.

“Pesquisadores buscam compreender por que a Abolição não se traduziu em equidade racial”

O dia seguinte
Apesar de reconhecer que a Lei Áurea estabeleceu a igualdade jurídica entre negros e brancos, Wlamyra, da UFBA, afirma que a legislação não envolveu a defesa da igualdade racial. “Muitos abolicionistas brancos queriam se livrar da presença dos negros  na sociedade brasileira e, nesse sentido, alguns projetos parlamentares previam a deportação de ex-escravizados para formação de colônias na África. Hoje, um dos principais desafios da historiografia é entender por que a igualdade jurídica não se traduziu em igualdade racial”, destaca a pesquisadora. Após a extinção oficial da escravidão, enraizou-se ainda mais a hierarquização racial. “Na virada do século XIX para o XX, as ideias eugenistas ganharam espaço nas faculdades de direito e medicina. Os negros eram vistos como incapazes, biologicamente, de atingir um patamar de desenvolvimento intelectual”, conta.

Para Gomes, da UFRJ, o determinismo racial teria motivado as autoridades brasileiras a investir em projetos de branqueamento da população. Para isso, o país criou políticas estimulando a chegada de trabalhadores europeus, estratégia que difere daquela observada em regiões do Caribe, como Cuba, por exemplo. Lá a prioridade era atrair imigração asiática apta a atuar na produção de açúcar. “Na narrativa histórica, justificou-se que a vinda de europeus para as lavouras e fábricas brasileiras, entre o final do século XIX e o começo do XX, se deu porque eles eram mais qualificados do que os egressos da escravidão”, lembra Gomes. No entanto, muitas famílias de imigrantes chegavam com os mesmos níveis de capacitação dos ex-escravizados, observa. Robério Souza, professor de história da Universidade do Estado da Bahia (Uneb), explica que, apesar das tentativas de substituir a força de trabalho de ex-escravizados por imigrantes europeus, os negros não desapareceram do mercado e disputavam espaço com os recém-chegados tanto nas lavouras quanto nas fábricas. “Mas havia uma hierarquia que levava os imigrantes brancos aos melhores postos”, diz, lembrando que não existia legislação regulamentando a jornada diária de trabalho nem a remuneração, o que só viria a acontecer nos anos 1930, com o governo de Getúlio Vargas (1882-1954).

Uma das possibilidades para egressos do cativeiro foi servir às Forças Armadas, conforme estudos de Álvaro Pereira do Nascimento, professor de história da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ), campus de Nova Iguaçu. Segundo ele, desde meados do século XIX escravos fugidos e libertos se alistavam para atuar no Exército ou na Marinha e isso seguiu como uma possibilidade depois de decretada a Abolição. Nas Forças Armadas eles recebiam um salário, uma farda e tinham onde dormir – mas seguiam sendo vítimas das práticas violentas que caracterizaram todo o regime escravagista no Brasil. “Em 1910, 90% dos marinheiros brasileiros eram negros”, destaca. Ele fez a constatação a partir de pesquisas realizadas em relatórios do Exército e da Marinha, armazenados no Arquivo Nacional, na Biblioteca Nacional e no Arquivo da Marinha.

Área do conhecimento que passou a atrair a atenção de pesquisadores brasileiros com mais intensidade a partir da década de 1980, as pesquisas sobre o pós-Abolição representam um campo fértil que merece ser aprofundado, na avaliação de Nascimento. “Essas análises nos permitirão, por exemplo, compreender melhor os mecanismos pelos quais as desigualdades raciais ainda persistem no Brasil”, afirma.

Livro
SCHWARCZ, L. M. e GOMES, F. dos S. Dicionário da escravidão e liberdade – 50 textos críticos. São Paulo: Companhia das Letras, 2018.

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