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Imunologia

Centro paulista testará em 81 pacientes células de defesa modificadas para tratar câncer sanguíneo

Objetivo é combater leucemia ou linfoma refratários à químio e à radioterapia

Bolsa utilizada em uma das etapas do preparo das células CAR-T

Léo Ramos Chaves / Revista Pesquisa FAPESP

De tempos em tempos, a biomédica Renata Nacasaki Silvestre olhava para as bolsas plásticas suspensas no alto de uma coluna – uma com um líquido vermelho-vivo, outra contendo uma solução âmbar e uma terceira preenchida por um fluido incolor. Em seguida, aferia valores no aparelho a sua frente e tomava notas em um prontuário. A seu lado, a farmacêutica Elaine Zayas Marcelino permanecia atenta às condições de pureza do ar da sala. A cada medição, elas seguiam um roteiro estrito de procedimentos que conheciam de cor, mas, mesmo assim, era conferido passo a passo. Passava um pouco das 14h daquela quinta-feira, dia 5 de junho, e a dupla finalizava a tarefa iniciada bem cedo naquela manhã: separar de uma mistura de células sanguíneas um tipo especial de célula de defesa, os linfócitos T, que, depois, seriam modificados para funcionar como um medicamento vivo contra o câncer no maior teste em pacientes em curso no Brasil.

A bolsa vermelha, a mais importante e delicada, havia chegado a Ribeirão Preto na noite anterior. Seus 400 mililitros concentravam células do sangue de um paciente com linfoma, um tipo de câncer hematológico, atendido no hospital BP, a Beneficência Portuguesa de São Paulo. O material coletado na capital viajou 350 quilômetros até o Hemocentro de Ribeirão Preto, ligado à Universidade de São Paulo (USP), por uma razão especial. Ali, funciona há pouco mais de três anos no campus da USP o Núcleo de Terapia Avançada de Ribeirão Preto (Nutera-RP), o maior centro na América Latina especializado na produção de linfócitos T geneticamente modificados para ter como alvo células tumorais – são as células CAR-T (linfócitos T com receptor quimérico de antígeno).

Naquela tarde, em um dos laboratórios da “fábrica”, como o Nutera é chamado, Silvestre e Marcelino concluíam a primeira das quatro fases principais de produção das células CAR-T (ver infográfico abaixo). À medida que fluía da bolsa para o aparelho, o líquido vermelho se misturava com anticorpos contendo uma partícula magnética projetados para aderir aos linfócitos T, uma família variada de células de defesa – algumas atuam diretamente e destroem células doentes ou infectadas por patógenos; outras encaminham a ordem de ataque para as demais células imunológicas; e há as que funcionam como uma memória viva do alvo a ser eliminado.

Alexandre Affonso / Revista Pesquisa FAPESP

Uma vez marcados, os linfócitos atravessavam um campo magnético que os atraía e separava das demais células do sangue. Armazenados em uma bolsa menor, seriam mais tarde levados para outra sala, na qual seriam ativados, antes de serem modificados geneticamente. Na última e mais longa etapa, já transformados em CAR-T, os linfócitos permaneceriam cerca de 10 dias em um meio de cultura rico em nutrientes e com temperatura controlada para que se multiplicassem até atingir a concentração necessária para o tratamento. “Os linfócitos T duplicam a cada 30 horas”, explicou a química Amanda Mizukami, gerente de produção do Nutera. “A concentração usada nos tratamentos varia de centenas de milhares a centenas de milhões a depender da doença e do peso do paciente.”

Depois de prontos e na dose adequada, os linfócitos T modificados ainda passariam por testes para avaliar se estavam saudáveis e sem contaminação e se eram capazes de identificar e eliminar as células-alvo. Só, então, quase 45 dias após serem coletados, os linfócitos T, agora munidos de um radar que os guia até as células tumorais, retornariam para o seu doador em São Paulo.

O paciente da BP que em junho aguardava a manipulação de suas células é o sexto a ser incluído no maior ensaio clínico nacional destinado a avaliar a segurança e a eficácia de células CAR-T desenvolvidas integralmente no país, com apoio da FAPESP: o Carthedrall. Iniciado em 2024, o estudo recebeu R$ 100 milhões do Ministério da Saúde para tratar 81 pessoas com leucemia linfoblástica aguda ou com linfoma não Hodgkin que não responderam a terapias anteriores. Os participantes estão sendo selecionados na BP e em outros quatro hospitais: o Hospital das Clínicas de Ribeirão Preto da USP, coordenador do estudo, o Hospital de Clínicas da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e, na capital, o Sírio-Libanês e o Hospital das Clínicas da USP. Quem entrar no estudo receberá os linfócitos T reprogramados e será acompanhado por ao menos cinco anos. “Até junho estávamos aprimorando os procedimentos e progredindo a uma velocidade menor do que gostaríamos”, conta o hematologista Rodrigo Calado, diretor do Hemocentro de Ribeirão Preto, pró-reitor de Pós-graduação da USP e um dos idealizadores do estudo. “Agora conseguimos decolar.”

Entrevista: Rodrigo Calado
00:00 / 15:24

Os dois tipos de câncer tratados no estudo decorrem da proliferação anormal de linfócitos B, células do sistema imunológico responsáveis pela produção de anticorpos. A diferença entre um câncer e outro está no estágio de maturação das células afetadas. Na leucemia linfoblástica aguda, o câncer mais comum em crianças e adolescentes, alterações genéticas levam as células precursoras dos linfócitos B a se multiplicarem descontroladamente na medula dos ossos, causando dores intensas e destruindo as células sanguíneas saudáveis. Já no linfoma, o que se prolifera são os linfócitos B que se concentram nos gânglios e nos vasos linfáticos distribuídos pelo corpo, que se tornam doloridos e inchados. Nos dois casos, os linfócitos B perdem a capacidade de desempenhar seu papel normal.

Nessa situação, o mesmo tipo de célula CAR-T é usado para tratar a leucemia e o linfoma: linfócitos T reprogramados para exibir em sua superfície uma molécula com atração química pelos linfócitos B. As células reprogramadas no Nutera apresentam um pedaço de anticorpo que se liga à proteína CD19, exclusiva dos linfócitos B. Ao encontrar esses linfócitos, as células CAR-T lançam sobre eles compostos que os matam.

A equipe de Ribeirão Preto foi pioneira na América Latina em oferecer o tratamento com as células CAR-T, inicialmente no chamado modo compassivo, quando se esgotam as alternativas terapêuticas. Em agosto de 2019, depois de cinco anos de trabalho para dominar a tecnologia, o grupo então coordenado pelo hematologista Dimas Tadeu Covas, à época diretor do Instituto Butantan, realizou a infusão de células reprogramadas em Vamberto Luiz de Castro, um funcionário público aposentado com um linfoma resistente aos tratamentos usuais (ver Pesquisa FAPESP nº 286). Em semanas, as células CAR-T eliminaram o câncer e Castro retornou para casa, mas morreu meses mais tarde após cair e bater a cabeça.

Léo Ramos Chaves / Revista Pesquisa FAPESPRenata Silvestre (à esq.) e Elaine Marcelino acompanham a separação dos linfócitos T de um pacienteLéo Ramos Chaves / Revista Pesquisa FAPESP

O trabalho que levou à promissora terapia com as células CAR-T, na realidade, resulta de um esforço iniciado bem antes. Nos anos 2000, o hematologista Marco Antonio Zago e equipe criaram no Hemocentro de Ribeirão Preto o Centro de Terapia Celular (CTC), um dos primeiros Centros de Pesquisa, Inovação e Difusão (Cepid), financiados pela FAPESP. Lá, foram desenvolvidas e testadas, inclusive em pacientes, estratégias de transplante de medula óssea e uso de células-tronco para tratar algumas formas de anemia grave e diabetes tipo 1 (ver Pesquisa FAPESP nº 135). “Foi preciso investir muito tempo e dinheiro para se chegar ao estágio tecnológico atual, que permitiu dominar a produção e o uso das células CAR-T”, lembra Zago, que coordenou o CTC de 2001 a 2015 e é o atual presidente da FAPESP. “É assim que a ciência produz resultados impactantes.”

Antes de partir para o Carthedrall, a equipe de Ribeirão ainda tratou outras 6 pessoas com linfoma e 13 com leucemia de maneira compassiva. Publicado em 2024 na Bone Marrow Transplantation, o resultado desses 20 primeiros tratamentos ajudou a embasar o pedido de autorização para o ensaio clínico encaminhado à Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), responsável pela aprovação da comercialização de medicamentos no país. Dos 13 pacientes com leucemia, 12 haviam apresentado redução da doença um mês depois da infusão. Dois morreram e quatro continuavam livres da leucemia 10 meses mais tarde – fazia poucos meses que os outros seis haviam sido tratados quando o artigo foi publicado. No grupo com linfoma, seis haviam mostrado forte regressão no final do primeiro mês e dois permaneciam bem no sexto mês de acompanhamento. Nesse grupo, quatro morreram.

Setenta e cinco por cento dos 20 participantes apresentaram grau leve ou moderado da síndrome de liberação de citocinas, um efeito colateral da terapia, de certo modo esperado. Citocinas são moléculas que fazem a comunicação entre as células do sistema imunológico. Algumas podem matar diretamente as células tumorais. Outras atraem células de defesa para agir sobre o tumor. Em níveis baixos, são sinal de que o tratamento está surtindo efeito, mas, em grande quantidade, caracterizam a síndrome e podem causar danos graves ao corpo.

A fábrica
O material usado nos 10 primeiros casos foi produzido em um pequeno laboratório, oculto no labirinto de salas no prédio principal do Hemocentro de Ribeirão Preto. Com o avanço do projeto, a elaboração das células ganhou uma sede própria: o Nutera, um edifício de três andares erguido ao custo de R$ 200 milhões, financiados pelo governo estadual e pelo Instituto Butantan.

No Nutera, 16 salas limpas foram preparadas para os diferentes estágios da fabricação das células CAR-T. São laboratórios com nível de biossegurança 2, apropriados para lidar com agentes biológicos de risco moderado para pessoas e ambiente (é usado um vírus inativado para reprogramar as células). O acesso é restrito e só se entra no setor de produção após passar por uma sequência rígida de limpeza e paramentação. Em um primeiro vestiário, lavam-se as mãos e trocam-se as roupas por um par de calças, blusa, sapatos limpos e um primeiro par de luvas. No seguinte, coloca-se um macacão esterilizado, que cobre o corpo da cabeça aos pés, e um novo par de luvas, também esterilizadas. Só então se pode chegar à área em que ficam os laboratórios. A cada avanço, não se volta para trás para evitar contaminação.

“A terapia com células CAR-T não é para todas as pessoas com leucemia ou linfoma”, explica o hematologista Diego Clé, coordenador do Nutera e do Carthedrall. Tratamentos à base de medicação antitumoral (quimioterapia), radiação (radioterapia) ou compostos que estimulam o sistema de defesa (imunoterapia) resolvem de 50% a 70% dos casos das duas doenças. Quando não funcionam, existe ainda a possibilidade de um transplante de medula óssea, tecido fundamental para a produção das células do sistema imunológico. Se nada disso der certo, hoje se indica – no Brasil e em outros países – partir para as CAR-T.

Desde 2010, quando começaram a ser testadas em seres humanos, as células CAR-T já foram usadas em milhares de casos no mundo, com resultados promissores – no Brasil, havia pouco mais de 100 registrados, a maioria com produtos comerciais, até abril deste ano (ver gráficos abaixo). É difícil conhecer com precisão o total de tratamentos, uma vez que o registro não é obrigatório.

Alexandre Affonso / Revista Pesquisa FAPESP

Nos Estados Unidos, o Centro Internacional de Pesquisa em Transplante de Sangue e Medula Óssea (CIBMTR) contabilizou 14.998 infusões de células CAR-T de 2016 a 2022 para diferentes tipos de leucemia, linfoma e mieloma (ver gráficos a seguir). De 6.119 pessoas com linfoma tratadas de 2017 a 2022, 44% estavam vivas três anos após o procedimento, segundo o relatório de 2024 da entidade. No mesmo intervalo, 1.148 com leucemia linfoide aguda receberam CAR-T, e metade ou mais seguiam vivas três anos depois. Um dos casos mais conhecidos e bem-sucedidos no mundo é o da norte-americana Emily Whitehead, a primeira paciente pediátrica a receber esse tipo de terapia, que está há 13 anos livre da leucemia.

Uma busca no site clinicaltrials.gov, dos Estados Unidos, enumera 2,1 mil ensaios clínicos com células CAR-T para diferentes finalidades no mundo. Desses, 190 já foram concluídos e 185 estão em andamento. Em um artigo de revisão publicado em 2023 na revista Nature Reviews Clinical Oncology, pesquisadores do Instituto Nacional do Câncer dos Estados Unidos avaliaram o desempenho de longo prazo registrado em ensaios clínicos com células CAR-T para tratar linfoma e leucemia. No caso dos linfomas, variou de 28% a 68% a taxa de participantes em que a doença se tornou indetectável dois anos após o tratamento. No da leucemia, entre 62% e 86% não tinham sinais da doença um ano após a infusão.

Mais recentemente, a farmacêutica Eloah Suarez, da Universidade Federal do ABC (UFABC), analisou os resultados de 46 estudos, com um total de 3.421 participantes. Usando uma técnica estatística (metanálise) que permite combinar os dados dos diferentes trabalhos, ela verificou que, em média, 56% das pessoas tratadas com células CAR-T com alvo na CD19 ficaram livres da doença por um tempo e quase 60% permaneceram vivas um ano após o tratamento. “Em geral, essas pessoas tinham leucemias e linfomas muito avançados e refratários a terapias anteriores. Nem sempre o tratamento resultou em benefício clínico grande, mas prolongou a sobrevida de muitos pacientes”, conta a pesquisadora, que desenvolve células CAR-T para tratar tumores sólidos, mais comuns que os hematológicos.

“No início, usavam-se estratégias mais básicas para reprogramar os linfócitos. Nos últimos anos, essas técnicas vêm sendo refinadas e os resultados melhoraram”, conta Mizukami. Parte do aprimoramento se deve ao manejo do tratamento. “Os médicos aprenderam a controlar melhor os efeitos indesejados”, explica a pesquisadora, responsável por garantir as células CAR-T aos pacientes do Carthedrall.

Alexandre Affonso / Revista Pesquisa FAPESP

Liderado por Clé e Calado, o Carthedrall é um ensaio clínico de fase 1 e 2. Ele vai avaliar a segurança e a eficácia das células CAR-T concebidas no Nutera e desenvolvidas com o apoio do Instituto Butantan. Ao final do estudo, previsto para terminar em meados de 2026, os dados serão submetidos à Anvisa. Se forem semelhantes aos de tratamentos com células CAR-T comercialmente disponíveis e o produto for aprovado, o passo seguinte será submetê-lo à avaliação da Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no Sistema Único de Saúde (Conitec), do ministério. “Esperamos ofertar nosso tratamento no SUS”, relata Clé.

Atualmente, quatro produtos à base de células CAR-T podem ser comercializados no país. Dois são para leucemia linfoblástica aguda e alguns tipos de linfoma: o Kymriah, da empresa farmacêutica suíça Novartis, e o Tecartus, da biofarmacêutica norte-americana Gilead Sciences. Também da Gilead, há o Yescarta, para linfomas. A quarta medicação, o Carvykti, da belga Janssen, é destinado a combater o mieloma múltiplo, um câncer hematológico que atinge idosos e leva à multiplicação de plasmócitos, células derivadas dos linfócitos B. Assim como as CAR-T do Nutera, são medicamentos de uso único – quando não funcionam, o paciente não se beneficia de uma segunda aplicação – e custo elevado.

Cada tratamento sai por algo entre R$ 2 milhões e R$ 2,7 milhões. Nesses valores, não estão inclusos os gastos com a internação hospitalar, que dura ao menos duas semanas, nem com outros medicamentos. Antes de receber as células CAR-T, o paciente passa por uma quimioterapia para eliminar parte das células de defesa e facilitar o trabalho das células reprogramadas. O Kymriah, o Yescarta e o Tecartus, porém, não estão disponíveis no SUS. Quem precisa só tem acesso a eles por meio de planos privados de saúde ou por via judicial. “No Nutera, trabalhamos para oferecer o tratamento por cerca de R$ 350 mil”, afirma Calado.

Léo Ramos Chaves / Revista Pesquisa FAPESPRecipientes com amostras congeladas do vírus usado para transformar linfócitos em células CARLéo Ramos Chaves / Revista Pesquisa FAPESP

Tornar mais barato e aumentar o acesso a esse tipo de tratamento é justamente a intenção do grupo de Ribeirão Preto e de outras instituições brasileiras que estão desenvolvendo suas próprias versões de células CAR-T como alternativa aos produtos comerciais.

Uma das iniciativas mais avançadas, além da do Nutera, é a coordenada pelo biomédico Martín Bonamino no Instituto Nacional do Câncer (Inca), no Rio de Janeiro, que desenvolveu uma alternativa de produção de células CAR-T que dispensa o uso de vírus. Como é caro produzir os vírus utilizados para introduzir nos linfócitos T o material genético que os leva a perseguir os linfócitos B, Bonamino e equipe optaram por trabalhar com um transposon, trecho de DNA que consegue se inserir no genoma das células. Os pesquisadores acoplam o gene da molécula que identifica a CD19 ao transposon, apelidado de Bela Adormecida. Depois aplicam uma descarga elétrica sutil que abre poros na membrana do linfócito T por meio dos quais penetra a combinação de gene e transposon.

Em um dos experimentos, os pesquisadores deixaram os linfócitos CAR-T modificados por meio dessa estratégia se multiplicarem por oito dias e os usaram para combater células tumorais cultivadas in vitro e as de dois modelos de leucemia humana em camundongos. Publicados em 2020 na revista Gene Therapy, os resultados indicam que a estratégia pode funcionar: as CAR-T mataram tanto as células de leucemia humana cultivadas em laboratório quanto as enxertadas nos roedores, aumentando a proporção de animais que sobreviveram.

Entrevista: Martín Bonamino
00:00 / 08:57

O grupo do Inca deu ainda um passo além. Em vez de aguardar por dias a multiplicação em laboratório dos linfócitos, injetou-os nos camundongos algumas horas depois de serem produzidos. Essa é a chamada expansão in vivo, quando a proliferação ocorre no interior do organismo, e foi testada recentemente em seres humanos na China e nos Estados Unidos. A nova estratégia deu certo e o tratamento foi tão ou mais potente que o anterior, segundo os dados publicados na OncoImmunology. Uma vantagem dessa opção seria reduzir o risco de exaustão das CAR-T, que, depois de se multiplicarem muitas vezes em laboratório, podem perder a capacidade de agir no paciente.

“Até o final do ano, devemos enviar para a Anvisa o pedido de autorização para realizar um ensaio clínico com oito pacientes e demonstrar a viabilidade da primeira estratégia”, afirmou Bonamino no início de julho. “Já escalonamos a produção seguindo as exigências da agência reguladora e conseguimos gerar as doses necessárias.”

Na Itália, células CAR geradas com transposon já alcançaram a fase de testes em pessoas. A equipe do pediatra Andrea Biondi, da Universidade de Milão-Bicocca, usou-as para tratar 4 crianças e 32 adultos com um tipo de leucemia. Segundo os resultados, publicados em abril no Blood Cancer Journal, as células CAR se multiplicaram rapidamente após a infusão e continuaram ativas por até dois anos. Com a terapia, a doença regrediu em 30 dos 36 pacientes (83%) um mês após o tratamento. A leucemia retornou em parte deles, mas 20 continuavam vivos um ano depois da infusão. “Com os transposons, conseguimos modificar as células em um dia. Estamos propondo usá-los como uma plataforma rápida para testar diferentes formulações de células CAR”, conta Bonamino.

Além de pesquisador do Inca, o biomédico participa de uma iniciativa na Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) que busca tratamentos inovadores para a leucemia e deve se beneficiar de um acordo recente com a Caring Cross, organização não governamental sediada nos Estados Unidos que desenvolveu células CAR-T direcionadas contra três alvos. Assinado em março de 2024, o acordo prevê que a Caring Cross transfira para o Instituto de Tecnologia em Imunobiológicos da Fiocruz (Bio-Manguinhos) materiais e tecnologia para a fabricação de células CAR-T usando vírus, com autorização para comercializar no Brasil e em outros países da América Latina. O treinamento da equipe brasileira já começou e a ideia é instalar a produção em laboratórios-contêineres, o que permitiria fabricar as células CAR-T em diferentes regiões. Ao Inca e à Fiocruz caberá a realização dos testes clínicos e a obtenção de aprovação na Anvisa. “Se a produção funcionar, imaginamos que seja possível ter tratamentos por cerca de R$ 200 mil”, conta Bonamino.

Daniela Tupy / INCALivia Sant’Ana prepara células CAR-T em laboratório do IncaDaniela Tupy / INCA

Uma parceria com o Hospital Infantil da Filadélfia (Chop), onde Emily Whitehead foi tratada, também está transferindo para o Inca a tecnologia de produção de células CAR-T usando vírus em um sistema semiautomatizado. O instituto já iniciou a fabricação dos lotes que planeja usar para tratar crianças com leucemia linfoblástica aguda em um ensaio clínico de fase 1, cujo pedido está para ser submetido à Anvisa.

A demanda
Em São Paulo, no Hospital Israelita Albert Einstein (HIAE), os hematologistas Nelson Hamerschlak e Lucila Kerbauy, em parceria com outros grupos, testam em animais vírus e sequências de DNA construídas pela própria equipe para direcionar os linfócitos T contra os B, além de trabalharem na modificação de outro tipo de célula de defesa (ver reportagem).

Enquanto aguardam os resultados, eles iniciaram a avaliação em seres humanos de uma tecnologia de CAR-T desenvolvida pela empresa norte-americana Miltenyi Biomedicine que mira dois alvos na superfície dos linfócitos B: a proteína CD19 e a CD20. Em vez de montar uma estrutura complexa como a de Ribeirão Preto, o grupo do Einstein optou por adquirir um equipamento da Miltenyi que produz essas células modificadas de modo semiautomatizado, em 12 dias. Em 2023, Hamerschlak e Kerbauy iniciaram um ensaio clínico de fase 1 aprovado pela Anvisa e financiado pelo Ministério da Saúde. O objetivo é tratar 30 pacientes com linfoma, leucemia linfoide aguda ou leucemia linfoide crônica para determinar a dose mais adequada a ser usada em cada terapia.

“Trabalhamos de 2019 a 2022 para conseguir atender todos os critérios de segurança exigidos pela Anvisa para fazer as células seguindo o protocolo de boas práticas de fabricação”, conta Hamerschlak. “De 2023 ao início de julho deste ano, tratamos os 13 primeiros pacientes. Só agora estamos a pleno vapor”, explica o hematologista, que planeja usar a plataforma da Miltenyi para testar as CAR-T reprogramadas pelo grupo.

Talvez seja preciso que mais de um desses empreendimentos dê certo para que se torne possível atender a demanda nacional. Dados do Inca estimam que, a cada ano, surjam 12 mil novos casos de linfoma e 11,5 mil de leucemia no país. Descontando os tratáveis pelas terapias convencionais, sobrariam, nas contas dos especialistas, 3,5 mil pessoas que poderiam se beneficiar das células CAR-T. “Imaginamos que o esforço colaborativo dessas instituições ajude as CAR-T a chegar ao SUS”, diz Hamerschlak. “Hoje o Nutera consegue tratar 100 por ano”, diz Clé. “Com ajustes, temos capacidade de chegar a 600.”

A reportagem acima foi publicada com o título “Made in Brazil” na edição impressa nº 354, de agosto de 2025.

Projetos
1.
CTC – Centro de Terapia Celular (nº 13/08135-2); Modalidade Centros de Pesquisa, Inovação e Difusão (Cepid); Pesquisador responsável Dimas Tadeu Covas (FMRP-USP); Investimento R$ 60.743.640,70.
2. Núcleo de Terapia Celular – NuTeC (nº 20/07055-9); Modalidade Núcleos de Pesquisa Orientada a Problemas em São Paulo; Pesquisador responsável Rodrigo do Tocantins Calado de Saloma Rodrigues (FMRP-USP); Investimento R$ 7.180.257, 52.

Artigos científicos
DONADEL, C. D. et al. Safety and ef cacy of a new academic CD19-directed CAR-T cell for refractory/relapsed non-Hodgkin lymphoma and acute lymphoblastic leukemia in Brazil. Bone Marrow Transplantation. 13 abr. 2024.
CAPPELL, K. M. e KOCHENDERFER, J. N. Long-term outcomes following CAR-T cell therapy: What we know so far. Nature Reviews Clinical Oncology. 13 abr. 2023.
MONTAGNA, E. et al. CD19 CAR T cells for B cell malignancies: A systematic review and meta-analysis focused on clinical impacts of CAR structural domains, manufacturing conditions, cellular product, doses, patient’s age, and tumor types. BMC Cancer. 22 ago. 2024.
ABDO, L. et al. Development of CAR-T cell therapy for B-ALL using a point-of-care approach. OncoImmunology. 17 abr. 2020.
CHICAYBAM, L. et al. Transposon-mediated generation of CAR-T cells shows efficient anti B-cell leukemia response after ex-vivo expansion. Gene Therapy. 9 jan. 2020.
LUSSANA, F. et al. Donor-derived CARCIK-CD19 cells engineered with Sleeping Beauty transposon in acute lymphoblastic leukemia relapsed after allogeneic transplantation. Blood Cancer Journal. 3 abr. 2025.

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