Fragmentos de cerâmica do século XVII, encontrados em Pinheiros, zona oeste de São Paulo, indicam que no local funcionou uma olaria – a mais antiga já encontrada na cidade. No total, foram coletadas 50 mil peças arqueológicas, entre elas restos de oito fornos e objetos de cerâmica utilizados na forma de utensílios domésticos, como uma provável forma de bolo de mais de 200 anos. Parte desse material está sendo apresentado ao público em uma exposição itinerante, que entre os dias 06 e 12 de outubro estará no Largo da Batata, em Pinheiros.
Além dos vestígios originais, a exposição “Mãos no barro da cidade: uma olaria no coração de Pinheiros” terá réplicas feitas com resina, para que possam ser manipuladas pelo público, e também recursos tecnológicos de realidade aumentada, que combina elementos virtuais com o ambiente real. Utilizando um tablet ou smartphone, é possível baixar um aplicativo que permite o visitante visualizar imagens de peças arqueológicas em 3D. Leia as instruções de como baixar o aplicativo no site da Zanettini Arqueologia.
A antiga olaria foi identificada num quarteirão entre as ruas Amaro Cavalheiro, Butantã e Paes Leme em 2010, por arqueólogos contratados por uma incorporadora imobiliária. O local está próximo das margens do rio Pinheiros, uma fonte abundante de barro e também importante via de transporte na época. Tais fatores contribuíam para que Pinheiros, um dos primeiros aldeamentos fundados pelos jesuítas ao redor da Vila de Piratininga, se tornasse um polo da fabricação de objetos de cerâmica utilizados em outras regiões da capitania.
“Cerca de 80% do material encontrado eram pedaços de potes, travessas e bules de barro, usados no cotidiano das comunidades locais”, diz Paulo Zanettini, arqueólogo responsável pelas escavações. “Ter acesso a esses utensílios nos permite recuperar a história de São Paulo levando em consideração personagens esquecidos. Podemos, assim, compor um quadro complexo em torno da dinâmica econômica e social da cidade no passado”, diz ele.
Segundo Zanettini, embora algumas peças apresentem formato europeu, por conta da presença dos colonizadores portugueses, a decoração dos potes recebeu influência indígena e africana, por conta da mão de obra utilizada nas olarias. “A cerâmica utilizada não era a mesma dos indígenas, o que mostra que havia uma diversificação de técnicas devido à mistura de conhecimentos envolvidos na fabricação dos objetos”, diz Zanettini. Para Paulo DeBlasis, pesquisador do Museu de Arqueologia e Etnologia da Universidade de São Paulo (MAE-USP), a descoberta da antiga olaria pode ajudar a refinar pesquisas sobre a exploração de mão de obra indígena e africana em São Paulo entre os séculos XVII e XIX. “A região de Pinheiros tinha muitos aldeamentos indígenas, onde tradicionalmente a confecção de artigos domésticos era feita pelas mulheres. Provavelmente, a presença feminina foi também aproveitada nas olarias”, explica DeBlasis.
O pesquisador da USP ainda chama atenção para outro fato. Segundo ele, descobertas desse tipo, em grandes centros urbanos como São Paulo, só são possíveis graças à contratação de empresas que realizam escavações arqueológicas em áreas de empreendimentos, a chamada arqueologia empresarial. “Oportunidades de intervir no subsolo numa região de tráfego intenso e grande especulação imobiliária como Pinheiros por uma motivação essencialmente acadêmica não aconteceriam”, diz ele. Isso porque uma resolução do Conselho Nacional de Meio Ambiente (Conama) de 1986 determinou que a arqueologia fizesse parte dos estudos de impacto ambiental (ver Pesquisa FAPESP nº 206). Até então, ela era restrita à pesquisa acadêmica. Com a medida, empreendimentos imobiliários e grandes construções, como a de linhas de metrô, são obrigadas a contratar empresas de arqueologia antes do início das obras.
Identidade escondida
A influência indígena e africana na fabricação de cerâmicas no Brasil pode revelar muito mais do que traços de uma miscigenação imposta. Ao menos na decoração de potes feitos por escravos trazidos da África entre o século XVIII e XIX, é possível identificar o esforço de manter viva a identidade cultural combatida pelos colonizadores. É o que mostra uma outra exposição arqueológica, aberta ao público no Sesc São José dos Campos até o dia 14 de dezembro.
Fruto de um trabalho liderado pelo arqueólogo Wagner Bornal, a exposição apresenta materiais que foram coletados no sítio São Francisco, em São Sebastião, litoral de São Paulo, ao longo de 20 anos. O local foi território para uma fazenda de cana-de-açúcar e, posteriormente, de café – e por lá passaram centenas de escravos africanos e senhores de engenho.
“Entre os utensílios trazidos da Europa, encontramos artigos de cerâmica produzidos por africanos que trabalhavam na fazenda”, conta Bornal. Nessas peças, os elementos decorativos retratam as escarificações corporais, isto é, as marcas de diversas tribos africanas. “Cada etnia na África faz uma marca no corpo. Quando os africanos eram trazidos para cá, eles tinham que abolir essas marcas. Uma forma de resistir às imposições da escravidão foi decorar as cerâmicas com os mesmos símbolos tribais”, explica Bornal.
O pesquisador conta que o objetivo da exposição é introduzir um novo olhar sobre o negro na sociedade brasileira. Por isso, a mostra tem um apelo artístico e científico. “Mesmo na condição de escravo, o negro tinha uma identidade, uma cultura que era mantida viva de forma dissimulada”, diz Bornal. O trabalho, que já possibilitou a elaboração de várias teses de doutorado, reuniu mais de 150 mil peças de uma área de cerca de 1,2 milhão de metros quadrados.
Serviço
– Exposição Mãos no barro da cidade: uma olaria no coração de Pinheiros.
De 6 a 12 de outubro, no Largo da Batata, em Pinheiros, São Paulo.
O horário de funcionamento da mostra é sempre das 10h às 17h. A entrada é gratuita.
– Exposição Signos da identidade negra: uma conexão entre o mundo visível e o invisível
De 4 de outubro a 14 de dezembro, no Sesc São José dos Campos (SP). Grátis.
Para obter mais informações sobre a mostra pode ser obtidas pela página eletrônica do Sesc de São José dos Campos.