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Círculo virtuoso

Base para a compreensão da sociedade brasileira, censos demográficos impulsionam o conhecimento científico ao propiciar diálogo permanente com a academia

Léo Ramos Chaves

Às vésperas dos 150 anos de sua primeira edição, a serem completados em 2022, a realização do próximo Censo Demográfico pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) segue incerta. Indubitável permanece o fato de que fornece subsídios à elaboração de políticas públicas e as 11 edições já realizadas contribuíram para numerosas descobertas científicas, em distintas áreas do conhecimento. Foi por meio da análise de seus dados, por exemplo, que em 2010 se identificou que o Brasil é o segundo país do mundo em sociodiversidade nativa: 305 etnias indígenas vivem no território nacional. Baseadas em informações do Censo, pesquisas também revelaram que, durante décadas, o envio de remessas de dinheiro por brasileiros vivendo no exterior garantiu a sobrevivência econômica de pequenos municípios de Minas Gerais e Rondônia. Além disso, foi possível constatar que ao longo de muitos anos, mesmo depois de obterem o direito ao voto, as mulheres permaneceram excluídas do processo eleitoral. Por outro lado, a escolarização do público feminino experimentou seu ponto de inflexão na década de 1970, de forma que nos anos 2000 elas passaram a ser maioria em acesso e permanência em instituições de nível superior.

Realizado a cada 10 anos, o Censo é o único levantamento que mapeia informações sobre todos os domicílios nos 5.570 municípios brasileiros. Para tanto, utiliza dois questionários. Um básico, dirigido a todos os domicílios nacionais, e outro mais amplo, aplicado por amostragem, em cerca de 10% dos lares do país. “Além de contabilizar e mapear as condições de vida da população brasileira, o Censo atualiza a malha cartográfica e o cadastro nacional de endereços, usado para fins estatísticos. Na última edição, em 2010, o cadastro inovou ao reunir dados georreferenciados de mais de 60 milhões de residências”, explica o demógrafo Paulo de Martino Jannuzzi, da Escola Nacional de Ciências Estatísticas (Ence), do IBGE. Dentre os tópicos contemplados pelo Censo estão idade, sexo, cor e raça da população, condições de moradia, nível de escolaridade e renda, acesso à saúde, processos migratórios, entre outros. Programado para acontecer em 2020, o levantamento precisou ser adiado em decorrência da pandemia de Covid-19. A previsão é de que possa ser realizado no próximo ano, a um custo de R$ 2,3 bilhões – o orçamento inicial, de R$ 3,4 bilhões, sofreu cortes do Ministério da Economia, obrigando a exclusão de alguns tópicos ou tornando menos detalhado o levantamento nos blocos temáticos sobre emigração internacional, rendimento domiciliar, aluguel, entre outros. Pesquisadores de áreas como demografia e antropologia esperam que esses cortes sejam revistos até a consolidação final do questionário.

Partindo de números do último Censo, pesquisadores da Fundação Sistema Estadual de Análise de Dados (Seade) trabalhavam, em 2011, na elaboração de cenários de crescimento populacional para as 645 cidades do estado de São Paulo quando veio a descoberta: em alguns municípios pequenos do interior, a população havia dobrado de tamanho e grande parte do aumento se devia ao maior número de homens. “Foi uma expansão inesperada, que fugiu do padrão de outras cidades”, comenta a demógrafa Bernadette Cunha Waldvogel, da Gerência Demográfica da Seade.

Analisando os números, Waldvogel descobriu que o avanço populacional estava relacionado à instalação de presídios nesses municípios de pequeno porte, como parte do processo de desativação da Casa de Detenção de São Paulo, o Carandiru, nove anos antes. “Sabíamos que presídios estavam sendo criados naqueles locais, mas não conhecíamos o impacto real na dinâmica populacional, algo que foi captado pelo Censo”, conta.

Waldvogel explica que foi também com base em estimativas populacionais, feitas pela Seade a partir de dados do Censo e com informações de nascimentos e óbitos de cartórios de registro civil, que o governo do estado de São Paulo elaborou sua estratégia de vacinação contra Covid-19. “Para assegurar um plano de vacinação com a maior assertividade possível, fizemos projeções por idade simples e estimamos a população desagregada acima de 60 anos”, explica. Segundo ela, o desafio tem sido elaborar projeções com informações desatualizadas, obtidas há mais de uma década. Ao mencionar a importância da realização de uma nova edição do levantamento, Waldvogel aponta que, no caso paulista, entre os dados mais aguardados estão os que envolvem a migração e a fecundidade das mulheres. “O último Censo mostrou que o saldo migratório tinha diminuído bastante e que estávamos com uma taxa de 1,7 filho por mulher, ou seja, abaixo do nível de reposição da população, que seria de duas crianças por mulher. Precisamos de informações atualizadas sobre residentes no estado de São Paulo para entender os efeitos dessas tendências nas estatísticas populacionais”, afirma.

Fotos: Léo Ramos Chaves | Marcos Oliveira/Agência Senado A partir de informações do Censo, pesquisas conseguem identificar contingente de crianças fora da escola, medir avanços na educação e participação feminina em processos eleitoraisFotos: Léo Ramos Chaves | Marcos Oliveira/Agência Senado


Análises da fecundidade feminina permitem mensurar o ritmo de envelhecimento da população e são fundamentais para planejar o sistema educacional. Nesse sentido, a economista e demógrafa Raquel Guimarães, da Universidade Federal do Paraná (UFPR), relata que em 2015 desenvolveu um estudo para o Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas (Inep), do Ministério da Educação (MEC), com o objetivo de estimar a população de até 3 anos de idade que poderia vir a demandar vagas em creches  nos nove anos seguintes. Partindo de dados do Censo, ela constatou uma propensão à queda da fecundidade em todas as cidades brasileiras, a exemplo do que ocorre em São Paulo. “Isso significa que o contingente de crianças tende a diminuir. Porém, como mais mulheres estão entrando no mercado de trabalho, há um aumento na procura por creches. Esses dois componentes precisam ser considerados no planejamento do sistema escolar para os próximos anos”, ressalta, lembrando que somente o Censo do IBGE é capaz de identificar crianças e jovens que estão fora das salas de aula. Isso porque censos elaborados especificamente para o campo educacional, como o Censo da Educação Superior ou o Censo Escolar, baseiam suas análises em alunos que já estão matriculados nas escolas.

Para além dos estudos demográficos, dados do Censo têm propiciado descobertas importantes sobre a condição da mulher na sociedade brasileira. A partir de análises de todas as edições do levantamento e do Censo da Educação Superior de 2017, do Inep, a economista Lucilene Morandi, coordenadora do Núcleo de Pesquisa em Gênero e Economia da Universidade Federal Fluminense (UFF), constatou que as mulheres passaram a melhorar seus indicadores educacionais de nível superior nas últimas três décadas do século XX. “Atualmente elas são maioria na entrada e permanência nas universidades, apesar de não terem superado desigualdades no acesso à política, ao mercado de trabalho e à ascensão em carreiras científicas e tecnológicas”, observa.

Morandi explica que, entre 1871 e 1889, somente 1,6% da população brasileira estava matriculada em escolas de ensino fundamental e médio, a grande maioria homens brancos e de nível socioeconômico alto. O panorama começou a mudar nas primeiras décadas do século XX, quando aumentou a quantidade de mulheres que passaram a trabalhar fora e as demandas do movimento feminista por mais acesso a direitos ganharam visibilidade. “Análises de dados do Censo mostraram que foi apenas na década de 1970 que a proporção de mulheres alfabetizadas superou a de homens”, afirma. Se em 1960 mulheres de até 19 anos apresentavam uma média de 1,7 ano de estudo e os homens de 1,9, em 2010 os valores correspondentes passaram a ser de 5,2 anos e 4,8 anos, respectivamente. “Em relação ao ensino superior, a entrada em vigor da primeira Lei de Diretrizes e Bases [LDB], em 1961, representou um ponto de virada na educação feminina”, analisa Morandi. Ao equiparar o curso normal – capacitação de segundo grau de professores para a educação básica, frequentado principalmente por mulheres – ao curso científico, correspondente ao atual ensino médio, a legislação possibilitou igualdade de condições no acesso ao concurso vestibular. “A partir daí, mais mulheres começaram a se candidatar às vagas universitárias”, explica.

Fotos: Sergio Amaral/ MDS | Léo Ramos Chaves | Fellipe Abreu O mapeamento da população quilombola começou em 2010. A próxima edição do levantamento deve fornecer subsídios para a compreensão de mudanças em padrões migratórios internos e internacionaisFotos: Sergio Amaral/ MDS | Léo Ramos Chaves | Fellipe Abreu

Processo eleitoral
Cruzando bases de dados de censos elaborados desde 1930 com informações do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), o cientista político Fernando Limongi, professor aposentado da Universidade de São Paulo (USP) e docente da Escola de Economia de São Paulo da Fundação Getulio Vargas (Eesp-FGV), conseguiu recuperar os resultados de eleições realizadas em todos os municípios do país para cargos no Executivo e no Legislativo, entre 1932 e 1965, e fez outra descoberta relevante sobre a participação feminina no processo eleitoral. “Constatei que no período analisado o principal grupo de eleitores deixado de fora de votações não foi aquele constituído por pobres e analfabetos, como se pensava, mas o das mulheres”, informa. Em 1927, o Rio Grande do Norte atribuiu o direito de voto às mulheres. Esse direito foi estendido às mulheres de todo o país em 1932 e elas puderam exercê-lo nas eleições para a Assembleia Nacional Constituinte, em 1933. Como a escolha de Getúlio Vargas (1882-1954) para a presidência da República, em 1934, se deu de forma indireta, a participação feminina em eleições presidenciais aconteceu somente em 1945.

“Analisando as inscrições eleitorais municipais e cruzando essas informações com dados dos censos, detectei que mulheres foram excluídas de participar de eleições. Não há indicações de que outros grupos sociais fossem discriminados”, detalha. De acordo com Limongi, entre 1932 e 1964, a média de alistamento feminino sobre o total de eleitores girou em torno de 34%, o que significa que para cada dois homens alistados havia uma mulher em condição de exercer seu direito ao voto. “Essa foi uma das formas encontradas pelos homens para manter a autoridade masculina no interior da família. O Estado absteve-se de questioná-la.”

Ao apontar as séries históricas do IBGE como ponto de partida das pesquisas envolvendo imigração, o demógrafo Duval Magalhães Fernandes, da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC-MG), lembra que desde a primeira edição do Censo, em 1872, as pessoas são questionadas sobre o local de nascimento. “A ideia de mapear estrangeiros sempre esteve presente, mas o uso dessas informações foi mudando. A partir de 1938, durante o governo Vargas, por exemplo, os dados sobre imigrantes embasaram a formulação de uma política de cotas que procurava limitar a chegada de estrangeiros ao país”, relata.

A contratação, em 1940, do demógrafo e estatístico italiano Giorgio Mortara (1885-1967) pelo IBGE resultou na modernização do questionário, com a inclusão de perguntas para mapear migrações intermunicipais e estaduais. E em 2010, o Censo passou a buscar informações sobre brasileiros que migraram para o exterior. “Havia um quesito em que o responsável pelo domicílio respondia se alguém daquela casa tinha ido embora, em que país estava, além de características como sexo e idade. Foi a primeira vez que pudemos conectar a origem municipal e o destino internacional de brasileiros”, relata. Até então desconhecidos, os dados, observa Fernandes, abriram caminho para que pesquisadores pudessem investigar dinâmicas de redes migratórias no Brasil e no exterior. Desde então, ele tem utilizado esses dados para identificar aspectos do processo de emigração de brasileiros.

“O país de destino e o sexo do emigrante variam conforme a região do Brasil. Mulheres que vão à Espanha, por exemplo, saem mais dos estados de Tocantins e Goiás, enquanto viajantes que seguem para os Estados Unidos e Portugal tendem a ser do leste de Minas Gerais”, revela. Em relação a essa região mineira, Fernandes observa que, atraídos pela pujança da agropecuária, antes de deixar o país muitos brasileiros que lá vivem passam por Rondônia. “Em 2011, começamos a investigar esse percurso para entender por que na região próxima do município de Ji-Paraná, em Rondônia, indivíduos saídos do leste de Minas Gerais não regressavam aos seus locais de origem”, conta, lembrando que em áreas próximas o mesmo fenômeno não acontecia. Ao mapear a ida de brasileiros para o exterior, o Censo de 2010, observa o demógrafo, permitiu constatar que boa parte dos mineiros que deixava o leste do estado em direção a Rondônia posteriormente se dirigia aos Estados Unidos, onde começavam a trabalhar, enviando remessas de dinheiro aos familiares que ficaram no Brasil. “Há pequenas cidades em Rondônia e no leste de Minas que sobrevivem graças às remessas enviadas por parentes que vivem fora.”

A constatação do fenômeno migratório possibilitou a compreensão das dificuldades econômicas enfrentadas por alguns municípios da região como reflexo da crise norte-americana de 2010. “Comércios de cidades como Poté, em Minas Gerais, funcionavam com base em remessas provenientes dos Estados Unidos. Quando elas diminuíram ou cessaram, muitos faliram e o desemprego aumentou”, relata, lembrando que há mais de 4 milhões de brasileiros vivendo fora do país, e cerca de 1,5 milhão de estrangeiros morando no Brasil.

Léo Ramos Chaves Dados censitários sobre o envelhecimento da população e a mobilidade urbana são fontes para estudos em distintas áreas do conhecimentoLéo Ramos Chaves

Migrações internacionais
O século XXI abriu um novo capítulo na história das migrações internacionais. “No Brasil, por exemplo, só o Censo permitirá mensurar o impacto, na última década, da chegada de haitianos em cidades pequenas”, estima a demógrafa Roberta Guimarães Peres, da Universidade Federal do ABC (UFABC). Como resultado de pesquisa financiada pela FAPESP, que utilizou dados dos censos, Peres constatou que até meados do século XX as migrações internas seguiam de cidades do Nordeste para outras do Sudeste, especialmente São Paulo, Rio de Janeiro e Belo Horizonte. “Na edição de 2000 do levantamento, constatamos uma mudança importante nessa distribuição. As migrações começaram a envolver trajetos mais curtos e cidades menores, e não apenas capitais do Sudeste, e passaram a receber maiores volumes de migrantes internos. Já o Censo de 2010 apontava a presença de migração internacional, inclusive em cidades médias, indicando novos polos de retenção populacional para além de regiões metropolitanas”, conta. Ela enfatiza que a realização do próximo censo poderá indicar tendências recentes de migrações internacionais, que experimentaram, na segunda década do século XXI, mudanças importantes no Brasil.

As transformações dos centros urbanos têm sido sucessivamente captadas pelos censos. Há mais de uma década pesquisando o tema, o demógrafo Roberto Luiz do Carmo, diretor-associado do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Estadual de Campinas (IFCH-Unicamp), conta que o avanço de áreas cultivadas em regiões de fronteira do Centro-Oeste resultou no crescimento populacional de zonas urbanas da região. Segundo Carmo, comparando os panoramas evidenciados pelos cinco censos realizados entre 1970 e 2010 foi possível identificar que, com a concentração fundiária resultante da expansão da cultura da soja, houve um deslocamento de quem vivia e trabalhava em pequenas propriedades rurais para núcleos urbanos. “Os dados mostram uma associação entre a expansão do agronegócio e a consolidação de cidades em regiões de fronteira”, observa Carmo, que preside a Associação Brasileira de Estudos Populacionais (Abep). “Passamos por uma grande transformação no Brasil recente, sobretudo depois da redemocratização. O Censo e suas séries históricas são a base para compreensão dessas mudanças”, diz Limongi, da Eesp-FGV.

Quesito do Censo que mais sofreu transformações nas últimas décadas, o item destinado a raça e cor permitiu incluir os povos indígenas nas estatísticas oficiais somente em 1991. Antes disso, eles eram classificados como pardos e só eram recenseados se estivessem residindo em missões religiosas ou aldeamentos da Fundação Nacional do Índio (Funai). “A categoria indígena foi incluída pelo IBGE na pergunta sobre cor e raça há 30 anos. Na época, os recenseadores não chegavam até todas as aldeias, mas começamos a ter uma ideia de quantos eram esses habitantes”, explica a demógrafa e antropóloga Marta Maria do Amaral Azevedo, do Núcleo de Estudos de População (Nepo), da Unicamp.

Há duas décadas Azevedo desenvolve trabalhos com o IBGE para buscar formas de melhorar a metodologia de captação de informações sobre povos indígenas. Como parte desse processo, em 2010 a malha cartográfica de terras indígenas, elaborada pela Funai, passou a ser utilizada pelo instituto na definição dos setores a serem percorridos pelos recenseadores para a pesquisa com os povos indígenas. “No último Censo, se a pessoa se autodeclarava indígena, o questionário abria uma nova pergunta sobre sua etnia e quais línguas falava”, observa. Só então foi possível identificar a existência de 305 povos indígenas vivendo no país – estimativas preliminares sugeriam que eram 200. “Passamos a ser considerados o segundo país do mundo com a maior sociodiversidade nativa, ficando atrás apenas da Indonésia”, relata Azevedo, ex-presidente da Funai. A descoberta levou à abertura de novas frentes de pesquisa sobre a temática indígena em instituições de ensino superior de diferentes regiões do país.

Azevedo recorda dos resultados de sua tese de doutorado, defendida em 2003 na Unicamp, quando analisou a fecundidade de algumas etnias a partir de dados coletados em 1992 pela Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro, região onde existiam cerca de 400 aldeias. “Colaborei com o desenvolvimento desse levantamento e, ao analisá-lo, identifiquei que os povos indígenas daquela região apresentavam uma taxa de fecundidade mais alta, de 5,4 filhos por mulher em 1992, se comparada à média nacional, que era de 2,8. O achado permitiu constatar que aqueles povos estavam recompondo a população perdida no decorrer do século XX”, afirma. Dados do Censo de 2010 levaram outros pesquisadores a fazer constatação semelhante em relação a outros povos originários, em diferentes regiões do país.

A partir dos resultados do Censo, a saúde da população indígena se tornou área fundamental de pesquisa para instituições como a Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), observa o antropólogo Ricardo Ventura Santos, da Escola Nacional de Saúde Pública (Ensp-Fiocruz) e do Museu Nacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). “As estatísticas oficiais mostraram que a mortalidade indígena é a mais elevada do país, aprofundando a discussão sobre iniquidade e justiça social”, pontua. Segundo ele, o grupo de pesquisa sobre saúde dos povos indígenas da Fiocruz tem buscado inserir esse debate em circuitos internacionais, comparando a situação de populações originárias do Brasil com a de países como Austrália, Canadá, Nova Zelândia, entre outros. “As desigualdades que afetam indígenas são registradas em diversas regiões do mundo. Dados censitários são a base para que essas comparações internacionais possam ser feitas e o cenário de iniquidades revertido através de políticas públicas.”

Com 20 anos de acompanhamento, o estudo “Saúde, bem-estar e envelhecimento (Sabe)”, pesquisa longitudinal de múltiplas coortes sobre as condições de vida e saúde de idosos residentes no município de São Paulo, utiliza dados do Censo para criar amostras representativas dos habitantes a partir dos 60 anos, estimados em 1,8 milhão na capital paulista. Coordenadora da iniciativa, financiada pela FAPESP, a enfermeira Yeda Aparecida de Oliveira Duarte, da Faculdade de Saúde Pública (FSP) da USP, explica que a pesquisa toma como base os setores censitários definidos pelo IBGE. Essas regiões, que congregam entre 200 e 300 domicílios, são agrupadas de acordo com características socioeconômicas e distribuídas entre recenseadores, durante o período de aplicação dos questionários. “A partir dos setores censitários, escolhemos amostras populacionais que entrarão em nosso escopo de trabalho conforme sexo, idade, condições socioeconômicas e de moradia”, detalha.

Concluídos em 2019, os resultados da pesquisa revelaram que, em São Paulo, os idosos estavam progressivamente aumentando a busca por serviços privados de saúde e utilizando menos o Sistema Único de Saúde (SUS). Isso aconteceu, segundo ela, porque a cidade tem menos programas de saúde da família, o atendimento costuma ser lento na rede pública e a iniciativa privada oferece convênios específicos para essa faixa etária, constituindo realidade bastante diferente da observada em outros municípios brasileiros, nos quais prevalece o atendimento pelo SUS.

Os setores censitários também foram a base de dois estudos liderados pela matemática Celia Landmann Szwarcwald, do Laboratório de Informação e Saúde do Instituto de Comunicação e Informação Científica e Tecnológica em Saúde (LIS/Icict) da Fiocruz. Em 2013, ela coordenou a Pesquisa Nacional de Saúde (PNS). Atualmente, desenvolve um inquérito sobre tracoma, doença infecciosa que causa cegueira e está relacionada à desigualdade social, como parte de projeto financiado pela Organização Mundial da Saúde (OMS) e a Organização Pan-americana da Saúde (Opas). “Para os dois trabalhos elaboramos amostras populacionais baseadas na estratificação dos setores censitários. Sem esses dados, os estudos não teriam sido viáveis”, informa. “A pesquisa sobre tracoma já nos trouxe uma boa notícia: a doença foi erradicada em regiões rurais e pobres do Norte e Nordeste do Brasil.”

A economista Wasmália Socorro Barata Bivar, ex-presidente do IBGE e diretora de pesquisas da instituição entre 2004 e 2011, explica que algumas estatísticas só podem ser geradas a partir de interações com a academia. “Antes de enumerar a população indígena, por exemplo, são realizados estudos antropológicos que permitem identificar essas comunidades e delimitar as áreas onde se localizam”, comenta Bivar, lembrando que o IBGE é um dos poucos institutos do mundo que congrega os dois campos, de geografia e estatística. Ela, que também é professora da PUC-RJ, informa que cada edição do Censo é apoiada por comissões consultivas integradas por especialistas de diversas áreas do conhecimento. “O IBGE não vive sem a academia e a academia não vive sem o IBGE. Precisamos da ciência no processo de definição de que dados levantar e como levantar. Depois as informações voltam para os pesquisadores, subsidiando suas pesquisas em um círculo virtuoso.”

Projetos
1. Estudo Sabe: Estudo longitudinal de múltiplas coortes sobre as condições de vida e saúde dos idosos do município de São Paulo – coorte 2015 (nº 14/50649-6); Modalidade Projeto Temático; Pesquisadora responsável Yeda Aparecida de Oliveira Duarte; Investimento R$ 1.900.033,05.
2. Observatório das migrações em São Paulo: Fases e faces do fenômeno migratório no estado de São Paulo (nº 11/01182-0); Modalidade Bolsa de Pós-doutorado; Pesquisador responsável Claudio Salvadori Dedecca (Unicamp); Beneficiária Roberta Guimaraes Peres; Investimento R$ 148.917,21.
3. A população indígena no Brasil: Análise dos dados do Censo 2010 (nº 14/50758-0); Modalidade Auxílio à Pesquisa – Regular; Pesquisadora responsável Marta Maria do Amaral Azevedo (Unicamp); Investimento 127.320,00.

Artigos científicos
LIMONGI, F. et al. Sufrágio universal, mas… Só para homens. O voto feminino no Brasil. Revista de Sociologia e Política. v. 27, n. 70. 2019.
MORANDI, L. e MELO, H. P. Mujeres y educación en Brasil: Una mirada de género. In: La educación de las mujeres en Iberoamérica: Análisis histórico, p. 719-58. Tirant Humanidades. Espanha: Valencia, 2019.

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