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Ficção

Coçar-se

Ainda está para ser escrita a história definitiva dessa importante atividade humana

Um ditado do tempo do Onça dizia que, quando não tem nada para fazer, a pessoa procura sarna para se coçar. Isso podia ser fácil no tempo do capitão-geral Luiz Vahia Monteiro, o Onça, que governou o Rio de 1725 a 1732, quando a sarna grassava na cidade e ninguém precisava estar desocupado para se coçar. Ao contrário, havia casos em que a vontade de se coçar atingia o cidadão nas situações mais melindrosas ou justamente quando ele estava ocupado. Como na vez em que o próprio Onça, ao convocar os jesuítas ao palácio para pô-los na linha por algum motivo (vivia fazendo isto), começou a sentir pruridos estranhos por debaixo do gibão. Era uma vontade infernal de se coçar. A comichão aumentou à medida que ele tentava enquadrar os padres da poderosa Ordem e, para não ferir o decoro, não podia meter a mão por dentro da farda para se aliviar. Nem adiantaria porque, sob as calças, ainda havia as ceroulas, formando uma barreira intransponível entre suas unhas e sua pele. Onça acabou dispensando os jesuítas antes da hora e, assim que a última batina desapareceu no corredor, livrou-se do gibão, arriou as calças, desabotoou as ceroulas e só então pôde dedicar-se à sarna com a ênfase que ela merecia. E não teve dúvida de que os ácaros lhe foram passados de propósito por um dos jesuítas, sabendo-se que abundavam nos conventos e que os padres prometiam aprontar-lhe alguma para ele parar de persegui-los.

Outro ditado, este do tempo do rei – D. João VI -, dizia que comer e coçar era só começar. A data é importante porque, injustamente, a posteridade reduziu D. João a um monarca que, sem a menor compostura, tirava frangos assados dos bolsos da casaca de abas largas e os devorava na rua ou onde quer que estivesse. Primeiro, não é verdade que ele fosse esse lambão. Segundo, isto só contribuiu para minimizar suas magníficas realizações no Rio, como construir teatros, bibliotecas, museus, arquivos e escolas, patrocinar músicos brasileiros, trazer artistas franceses e cientistas austríacos e fundar toda espécie de serviço público, para não falar da maior de todas, que foi abrir o Brasil ao mercado internacional. Mas é verdade – não dá para negar – que D. João gostava de se coçar.

Ou, pelo menos, era levado a isso pelos fungos que insistiam em se imiscuir sob as calçolas reais. O problema não era só dele, mas de toda a aristocracia de 1808, e não apenas em terras tropicais. Em pleno navio que as trazia ao Rio, por exemplo, as mulheres da Corte portuguesa foram atacadas por um tremendo surto de piolhos, sem dúvida transmitidos pelos marinheiros. O fato é que, antes de arrancar o couro cabeludo de tanto coçar, as madames tiveram de raspar a cabeça em massa no convés, e foi assim que desembarcaram aqui, carequinhas sob as perucas. (É bom notar que o desaire aconteceu em alto-mar, fora das águas brasileiras – para evitar mais um mal-entendido histórico que manche o bom nome do Brasil.)

D. João foi poupado pelos piolhos do navio, mas, pouco depois de chegar, foi mordido por um carrapato carioca, o que lhe provocou coceiras a ponto de atrasar por alguns dias a fundação da Casa da Moeda. Em compensação, foi esse providencial carrapato o responsável por outra das grandes contribuições de D. João à cultura brasileira: o banho de mar. Para se livrar da coceira, ele adentrou o mar na praia do Caju, a bordo de uma banheira de madeira, cheia de furos, e, de roupa e tudo, deixou-se banhar generosamente pelas ondas, soltando gemidos de prazer. O iodo e o sal fizeram a mágica, e D. João, mitigado de seu desconforto, pôde concentrar-se na tarefa de governar o novo centro do Império.

Ainda está para se escrever uma história definitiva do hábito (ou necessidade) de o ser humano se coçar. E, no entanto, esta é uma atividade que o homem já sofisticou o quanto pôde. Uma prova disso é a invenção do coça-costas – a melhor forma de se chegar a certas partes do corpo que o braço não alcança. Pois o inventor desse instrumento tão humilde e indispensável permanece anônimo: quem terá sido? Já em seu filme Ombro, armas, de 1918, Charles Chaplin mostra Carlitos chegando à sua casamata no front francês da Primeira Guerra e, à falta de coça-costas, instala um ralador de queijo na parede para cumprir aquela importante função. E há quem não se contente em coçar a si próprio, mas ainda exige o concurso alheio, mesmo que em forma de cafuné. A querida estrela Leila Diniz era uma. É dela a imortal frase “Cafuné, eu aceito até de macaco”. Não que faltasse gente a fim de coçá-la – porque, a pedidos, eu mesmo iria para o sacrifício.

Um dos problemas de se deixar coçar por outra pessoa, inclusive macacos, é que nunca sabemos o que nos espera. Cócegas fora do lugar e hora, à traição ou em certos pontos do corpo (cada um tem o seu) podem provocar ataques descontrolados de riso, nem sempre bem aceitos em sociedade. Ao mesmo tempo, ninguém consegue rir ao fazer cócegas em si mesmo – já reparou?

Há cerca de três anos, os cientistas do Instituto de Neurologia de Londres, comandados pelo professor Chris Frith, também chegaram a essa surpreendente constatação. Daí resolveram investigar por quê. Uma turma de 16 voluntários monitorados por eles dedicou-se a se coçar no laboratório durante cinco horas – cada qual coçando a si próprio – e a única coisa que isso provocou em alguns foi uma irritação nas axilas. Nem uma risota, nem um achaque, muito menos uma gargalhada. Numa segunda etapa, os voluntários foram ligados a um robô programado para fazer-lhes cócegas diferentes das anunciadas. Exemplo: o voluntário era informado de que o robô iria coçar-lhe as costelas. Mas o robô, sem aviso prévio, ia-lhe traiçoeiramente ao umbigo. Isso provocava um riso histérico no voluntário, mesmo que, até então, ele fosse insensível ao próprio umbigo. A experiência fazia rir também os outros voluntários que assistiam à cena, o que contagiava os cientistas, os pesquisadores de outras especialidades, os que passavam à toa pelo corredor e, de repente, o laboratório inteiro era uma pândega.

Recompostos e de volta à seriedade, os neurocientistas ingleses concluíram que ninguém consegue rir ao fazer cócegas em si mesmo porque algo dentro do cérebro prediz o que vai acontecer. Já uma sensação tátil de origem inesperada faz com que a pele emita um sinal de perigo para o cérebro. Quando se dá sem querer uma topada com a canela na quina da mesinha, esse sinal faz o cérebro reconhecer a dor e o sujeito geme. No caso das cócegas, que são inofensivas, o sinal faz o cérebro achar graça – daí o riso.

Será? Respeito a opinião dos cientistas, mas acredito que deva haver exceções. Uma pessoa que dá uma topada com a canela na quina da mesinha e sai pulando num pé só, fazendo “Cain! Cain!”, também é capaz de provocar o riso. Pelo menos na outra pessoa.

Ruy Castro é escritor, autor de, entre outros, Amestrando orgasmos – Bípedes, quadrúpedes e outras fixações animais (Objetiva, 2004).

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