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Arqueologia

Colar de ossos de preguiça-gigante de 25 mil anos é pista de interação com humanos

Artefatos usados como pingentes foram produzidos e modificados por ferramentas antes da fossilização

Visualização de todas as faces permite estudar padrões de degaste e uso

Pierre Gueriau / IPANEMA CNRS

Três ossos, com 1 centímetro (cm) de comprimento cada um, do dorso de uma preguiça-gigante (Glossotherium phoenesis), guardam em suas marcas novas evidências de que seres humanos teriam vivido no que hoje é a região Centro-Oeste do Brasil entre 25 mil e 27 mil anos atrás e interagido de alguma maneira com animais da chamada megafauna. “Uma combinação de análises indicou que humanos perfuraram e poliram esses ossos, talvez usando ferramentas de pedra, possivelmente para serem usados como pingentes, antes que fossem fossilizados”, explica a paleontóloga Mírian Pacheco, da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), líder do estudo que detalha esses resultados, publicado em meados de julho na revista científica Proceedings of the Royal Society B.

Dois dos ossos são atravessados por um furo cada, localizado próximo da extremidade. Um terceiro tem dois furos, um em cada ponta, com as bordas quebradas. Não são descobertas recentes – o casal de arqueólogos franco-brasileiro Águeda Vilhena-Vialou e Denis Vialou, do Museu Nacional de História Natural da França, liderou a escavação que encontrou esses materiais nos anos 1990 no sítio paleoarqueológico de Santa Elina, em Jangada (MT).

Desde então, os Vialou, que são coautores do estudo, publicaram livros e artigos indicando que provavelmente seres humanos já viviam na região e transformaram os ossos em adorno por volta de 27 mil anos. Isso porque, na década de 2010, um dos ossos dessa preguiça – que, estima-se, pesava cerca de 600 quilogramas (kg) e tinha 2 metros de comprimento – foi submetido ao chamado método urânio-tório, que indicou essa datação. Outras análises de lascas de madeira e microcarvões, da mesma camada geológica em que os adornos e demais ossos do animal foram encontrados, indicaram idade parecida.

Santa Elina é um abrigo em meio a dois paredões de calcário encravados na serra das Araras e guarda indícios de ocupação humana em diferentes períodos, sendo o mais recente por volta de 2 mil anos atrás. Por isso, havia uma pergunta no ar. “Não sabíamos se as pessoas usaram os ossos frescos para fazer os pingentes ou se acharam os ossos já fossilizados”, explica Pacheco. Essa megafauna foi extinta há cerca de 10 mil anos.

Thaís Pansani / UFSCar Placa óssea de preguiça-gigante perfurada como pingente sofreu intervenção humana ainda frescaThaís Pansani / UFSCar

Para chegar a uma resposta, o grupo fez novas análises detalhadas dessas placas ósseas localizadas logo abaixo da pele, chamadas osteodermes, combinando técnicas de fotoluminescência (que indica composição química), microscopia eletrônica de varredura e análises com luz síncrotron no European Synchrotron Radiation Facility (ESRF), na França. As pesquisadoras também produziram, para comparação, furos e sulcos similares aos dos adornos em outras osteodermes da mesma preguiça, já fossilizadas, e em ossos frescos de tatus-canastra (Priodontes maximus), que têm osteodermes semelhantes. Eram cerca de 2 mil placas, no caso da preguiça-gigante.

“As marcas nos ossos frescos são muito características e mais parecidas com as dos artefatos, indicando que as osteodermes foram alteradas antes de terem sido mineralizadas pela fossilização”, afirma Pacheco. “Existe também uma uniformidade de elementos químicos no polimento. Nos nossos testes, observamos que pequenos acidentes ou microquebras posteriores têm marcas químicas distintas. Isso causa cores diferentes na fotoluminescência”, complementa.

“Os tipos de orifícios, muito precisos, o grau de polimento e suas estrias internas tudo corrobora a ideia de que as marcas foram produzidas por mãos humanas e não por grãos de areia, pisoteamento, ação de invertebrados ou dente de algum outro tipo de carnívoro”, diz a paleontóloga Thais Pansani, primeira autora do estudo. A pesquisa é fruto de seu doutorado pelo Programa de Ecologia e Recursos Naturais, defendido em março na UFSCar. Ela também ressalta que os furos tinham as faces internas muito bem polidas, o que interpreta como indicação de que foram bastante usados. “É possível observar a ação da gravidade sobre eles, pelas deformações que sofreram. Parece que ficaram suspensos por uma corda ou algo como uma folha enrolada – não é possível dizer. Mas parecia ser algo valioso”, sugere.

De acordo com a arqueóloga Águeda Vialou, a interpretação dessas peças como adorno, que ela fez há 30 anos, foi reforçada no trabalho mais recente. “Os efeitos do polimento e a confecção a partir de um orifício indicam que eles eram o que atualmente consideramos possíveis ornamentos”, comentou, por e-mail. “Um dos ossos está mais polido na parte de trás, o que sugere que ele tenha ficado mais em contato com alguma superfície em um dos lados, como a pele ou alguma vestimenta”, descreve Pansani.

Júlia D'Oliveira Representação artística mostra confecção do artefato diante do animal recém-mortoJúlia D'Oliveira

Convívio controverso
Para Pacheco e Pansani, os achados podem sugerir interação humana com a preguiça-gigante, apesar de não ser possível inferir se ela foi caçada ou se sua carcaça, de onde os ossos foram retirados, foi encontrada pouco tempo depois de sua morte, por exemplo. “Os indícios apontam que seres humanos e megafauna conviveram no final do Pleistoceno, durante a última Era do Gelo”, afirma Pansani. Essa época geológica foi marcada por oscilações glaciais e interglaciais.

Essa possível convivência entre seres humanos e megafauna no país sempre esteve no território da incerteza. Para o biólogo Alex Hubbe, do Instituto de Geociências da Universidade Federal da Bahia (UFBA), que estuda a extinção das espécies da megafauna e não participou do estudo, o estudo é convincente ao indicar que as duas espécies existiram ao mesmo tempo por aqui, mas a cronologia ainda está em aberto.

“A equipe foi muito zelosa ao explorar a questão de as osteodermes terem sido modificadas ainda frescas por seres humanos, combinando várias técnicas, o que dá robustez ao trabalho”, avalia. E complementa: “Precisamos acumular mais evidências para poder afirmar com propriedade sobre a relação entre os seres humanos e a fauna extinta a partir de fósseis”. Segundo Pansani, um dos próximos passos da pesquisa é investigar por que aquela preguiça-gigante morreu – dados preliminares indicam que estaria doente, mas ainda não há detalhes.

O paleontólogo Francisco Buchmann, da Universidade Estadual Paulista (Unesp), campus de São Vicente, que estuda paleotocas de preguiças-gigantes e seus fósseis e não participou da pesquisa, vê os resultados como promissores. “O trabalho traz as primeiras evidências robustas de que pode ter havido contato entre as populações humanas e a megafauna na América do Sul”, avalia. Para ele, as análises lideradas pelo grupo da UFSCar indicam que os ornamentos foram criados antes de os ossos da preguiça-gigante terem sido fossilizados. “Isso pode indicar também que pessoas e esses animais viviam em harmonia por aqui”, arrisca.

Para Pansani, outra polêmica que o estudo abraça é a discussão do período em que os homens ocuparam as Américas. “Concluímos que, há pelo menos 25 mil anos, eles já estavam por aqui, construindo ornamentos”, propõe. A datação de uma variedade de osteodermes e peças arqueológicas, retiradas com a habitual cautela para manter o nexo espacial entre elas, foi feita por três técnicas distintas, com resultados concordantes. Alex Hubbe está, ainda, menos convencido por esta parte dos resultados. “É preciso analisar o material arqueológico em associação aos fósseis para eliminar o potencial de mistura temporal, que é comum, para ter segurança em relação à idade dos artefatos. Eles podem ter por volta de 25 mil anos, mas poderiam ser mais recentes também.”

No Brasil, a região do Parque Nacional Serra da Capivara, em São Raimundo Nonato, no Piauí, apresenta indícios da presença humana tão ou mais antigos do que os de Santa Elina. Desde a década de 1980, a arqueóloga brasileira Niède Guidon sustenta que essa região do Nordeste, onde existem 1.350 sítios arqueológicos conhecidos, teria sido povoada pelo homem algumas dezenas de milhares de anos ou até mesmo 100 mil anos atrás. No sítio chileno de Monte Verde, artefatos de pedra modificados por seres humanos foram datados com 18,5 mil anos. “Embora seja atualmente bem aceito que o povoamento das Américas aconteceu antes da cultura Clóvis [há 13,5 mil anos], ainda há um ceticismo por parte da academia sobre a ocupação humana antes de 16 mil anos”, diz Pansani. Para Buchmann, é questão de tempo. “Com o surgimento de novas evidências, como essas, a tendência é que esse número recue ainda mais”, prevê.

Artigo científico
PANSANI, T. R. et. al. Evidence of artefacts made of giant sloth bones in central Brazil around the last glacial maximum. Proceedings of the Royal Society B. 12 jul. 2023.

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