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botânica

Colonização pela água

Grupo de plantas carnívoras reconhecido por espécies aquáticas teve origem no Brasil, indica estudo filogenético

Equipe do Laboratório de Sistemática Vegetal / Unesp Conectadas a filamentos, as armadilhas de Utricularia foliosa são vesículas que sugam as presas subaquáticasEquipe do Laboratório de Sistemática Vegetal / Unesp

Com sua beleza delicada, as plantas carnívoras do gênero Utricularia surpreendem pela diversidade de cores, formas, tamanhos (de centímetros a metros) e hábitats. Enquanto algumas vivem no solo úmido de áreas ensolaradas, outras crescem em rios e lagos. Podem fixar-se em pedras às margens de cachoeiras ou viver dentro de bromélias. Em comum, as 240 espécies desse gênero, hoje espalhadas pelo mundo, têm o local de origem. Um estudo de pesquisadores da Universidade Estadual Paulista (Unesp), publicado na edição deste mês da revista Molecular Phylogenetics and Evolution, indica que o berço ancestral dessas plantas é o Brasil.

O artigo é parte do mestrado da bióloga Saura Rodrigues da Silva, feito sob a orientação do biólogo Vitor Miranda, da Unesp de Jaboticabal. O trabalho contou com a colaboração de especialistas de outros países e é o maior estudo filogenético sobre as utriculárias. “A partir da análise de sequências de DNA pudemos identificar marcadores específicos pelos quais determinamos as linhagens ancestrais e inferimos a história evolutiva do gênero”, detalha a bióloga.

Uma regra geral da evolução é que as espécies mais aparentadas apresentam menos diferenças genéticas entre si. Com base nessa premissa, foi possível estimar o tempo de divergência entre as espécies atuais e seus ancestrais com a ajuda de dois pontos de referência. “Partimos de um grão de pólen identificado no hemisfério Norte, já registrado na literatura e datado de 11 milhões de anos. Outro calibrador da árvore filogenética foi a Ilha da Juventude, pertencente a Cuba. Estudos geológicos indicam que essa ilha surgiu entre 5 milhões e 2 milhões de anos atrás e que esse evento estaria associado ao aparecimento de uma subespécie de carnívora do gênero Pinguicula”, explica Miranda, que usou essas informações para montar o quebra-cabeça de como as utriculárias colonizaram o mundo.

Equipe do Laboratório de Sistemática Vegetal / Unesp U. foliosa tem flores que atraem polinizadores, mas não os capturamEquipe do Laboratório de Sistemática Vegetal / Unesp

O estudo transformou uma antiga hipótese em um cenário amplamente aceito a respeito da evolução das utriculárias: o gênero teria surgido na América do Sul por volta de 39 milhões de anos atrás. No continente, o local de origem mais provável seria o Brasil, país que detém o maior número de espécies: cerca de 70 das 95 encontradas na América do Sul, sendo 20 endêmicas. “As pesquisas em biogeografia apontam que o local de origem pode coincidir com aquele que tem maior diversidade”, destaca Saura. A partir dali, teria se espalhado para todo o mundo (ver mapa). Hoje, esse gênero é um dos mais amplamente distribuídos e representa cerca de 35% de todas as plantas carnívoras existentes.

Para Miranda, a dispersão por longas distâncias teria sido feita por aves migratórias que chapinhavam nas lagoas habitadas pelas plantas carnívoras. “Em distâncias mais curtas, a dispersão por vento e por água da chuva é facilitada pela morfologia das sementes, pequenas como grãos de poeira, algumas das quais medindo 2 décimos de milímetro”, diz o pesquisador.

Especialistas em adaptação
Os resultados sugerem, ainda, que a forma de vida ancestral das utriculárias seria terrestre. “De acordo com nossas hipóteses filogenéticas, as mudanças evolutivas podem ter ocorrido mais de uma vez dentro do gênero, afirma Miranda. A colonização aquática seria uma adaptação a locais mais pobres em nutrientes. Em situações de escassez, a capacidade de capturar presas na água pode ser um grande diferencial para a subsistência.

O biólogo explica que as carnívoras realizam fotossíntese pelas folhas, como a maior parte das plantas, mas complementam a nutrição com nitrogênio e fósforo que obtêm de suas presas – geralmente pequenos insetos, larvas, protozoários e microcrustáceos, no caso das utriculárias, enquanto carnívoras maiores podem incluir artrópodes e até mesmo pequenos vertebrados.

A adaptação a ambientes desfavoráveis deu origem a um arsenal variado de armadilhas ao longo da evolução dessas plantas. Enquanto as utriculárias têm pequenas bolsas (os utrículos) por meio das quais sugam as presas, outros gêneros da mesma família – a das Lentibulariaceae – desenvolveram folhas com glândulas que secretam uma solução viscosa, na qual as presas ficam coladas, ou ainda folhas espiraladas que formam um tubo que conduz a presa até o local onde é feita a digestão.

“Drosófila dos botânicos”
O estudo filogenético do gênero Utricularia teve como ponto de partida os avanços feitos pelos pesquisadores da Unesp de Jaboticabal no campo da genômica. Vitor Miranda desenvolveu uma colaboração extensa com o bioinformata Alessandro de Mello Varani,da mesma instituição. Em julho de 2017 eles publicaram na revista PLOS ONE o primeiro genoma mitocondrial de uma planta brasileira, justamente uma carnívora, de hábitat terrestre, nativa e endêmica do país: Utricularia reniformis.

Equipe do Laboratório de Sistemática Vegetal / Unesp U. simulans é comum em campos com solos arenososEquipe do Laboratório de Sistemática Vegetal / Unesp

“Resolvemos começar pelas etapas menores; o núcleo é maior e tem mais DNA”, explica Varani. Antes da mitocôndria eles já tinham sequenciado e publicado na PLOS ONE, em 2016, o genoma do cloroplasto, a organela responsável pela fotossíntese. O genoma completo da planta engloba esses dois compartimentos e mais o núcleo, cujo sequenciamento já foi feito e está em fase de finalização.

Os pesquisadores defendem que o sequenciamento completo da brasileira Utricularia reniformis pode transformá-la em mais uma opção para estudos de genética, somando-se à Arabidopsis thaliana, planta herbácea da família Brassicaceae (que inclui a mostarda e a couve). Com genoma pequeno, a Arabidopsis foi a primeira planta a ter o DNA mapeado, tornando-se um modelo na botânica, a exemplo do que ocorre com a mosca-das-frutas (Drosophila melanogaster) na zoologia.

“O genoma das Utricularias varia muito de tamanho e pode ser quatro vezes menor ou maior do que o da Arabidopsis”, destaca Miranda. “Agora estamos investigando as causas dessa contração e expansão genômica.” Uma possibilidade para a contração é a alta produção de espécies reativas de oxigênio, ou radicais livres, derivadas do metabolismo mitocondrial nas carnívoras desse gênero. “As espécies reativas podem causar quebras de DNA, o que talvez explique as altas taxas de mutação – e, consequentemente, a grande diversidade de formas – encontradas nas utriculárias”, explica Saura. Já uma das hipóteses para a expansão pode estar relacionada com a duplicação de pedaços de DNA.

Equipe do Laboratório de Sistemática Vegetal / Unesp U. reniformis vive em áreas abertas e encostas com musgosEquipe do Laboratório de Sistemática Vegetal / Unesp

O sequenciamento do cloroplasto e da mitocôndria também trouxe surpresas. Em U. reniformis vários genes relacionados à fotossíntese não foram encontrados nos cloroplastos, a organela responsável por fabricar açúcares a partir da luz solar e do gás carbônico presente no ar. Inativados, esses genes haviam sido transferidos para as mitocôndrias da planta. “O motivo, ainda a ser elucidado, pode ter relação com a adaptação da planta à carnivoria”, supõe Varani.

“Estamos ainda no campo da ciência básica, buscando entender a evolução dessa espécie”, destaca o bioinformata. “Queremos saber o que determinou tal versatilidade, permitindo que espécies do mesmo gênero tenham hábitos terrestres ou aquáticos.” No futuro, imagina o pesquisador, o mapeamento genético dessas plantas, além do já reconhecido interesse científico, pode ter, também, aplicação biotecnológica para outros tipos de plantas. “Talvez seja possível, por exemplo, conferir maior resistência à água a espécies com valor comercial.”

Descoberta no Facebook

Os especialistas em plantas carnívoras já descobriram muitas maneiras pelas quais essas espécies atraem suas presas: umas pela cor das flores, outras pelo odor, forma, ou mesmo pela luz refletida em gotículas viscosas secretadas pelas folhas. Falta descobrir como elas atraem os próprios pesquisadores, um grupo apaixonado e fiel ao objeto de seus estudos.

Já no século XIX, o naturalista inglês Charles Darwin (1809-1882) encantou-se por essas plantas, sobretudo pelas do gênero Dionaea (papa-moscas-de-vênus), que considerava uma das “mais maravilhosas do mundo”. Ela foi destaque de seu livro Insectivorous plants, publicado em 1875. Até hoje a imagem das folhas se fechando sobre o inseto, numa armadilha rápida e mortal, é a imagem que predomina quando se fala em planta carnívora.

Miranda é um dos herdeiros desse encantamento. Tinha 14 anos quando começou a colecionar plantas carnívoras e a se corresponder (ainda por carta, em tempos pré-internet) com o ecólogo vegetal Lubomír Adamec, do Instituto de Botânica da Academia de Ciências da República Tcheca, uma das referências mundiais em plantas carnívoras. Adamec acabou se tornando colega do brasileiro e um dos coautores do artigo publicado na Molecular Phylogenetics and Evolution.

Na internet, vários grupos de admiradores dessas plantas publicam fotos de seus achados nas redes sociais. Foi assim que, em 2012, os biólogos Paulo Gonella e Fernando Rivadavia identificaram uma nova espécie de carnívora: vendo fotos publicadas no Facebook de um amigo orquidófilo que fazia caminhadas por montanhas de Governador Valadares, em Minas Gerais. Na ocasião, Gonella fazia doutorado no Instituto de Biociências da Universidade de São Paulo, pesquisando o gênero Drosera.

Uma expedição ao local confirmou a descoberta, descrita em 2015 no periódico especializado Phytotaxa. A nova espécie foi batizada como Drosera magnifica pelos biólogos por causa de sua “magnitude”. Alcançando mais de 1,5 metro de comprimento, é a maior de seu gênero nas Américas. “Além disso, chamativa e bonita, é realmente magnífica”, afirma Gonella.

Na região é conhecida como orvalhinha, por causa das gotículas reluzentes e pegajosas que cobrem as folhas longas e finas, de um vermelho vivo. O visual atrai as presas, pequenos insetos voadores, que ficam presos na substância viscosa e são digeridos por enzimas secretadas pela planta.

Drosera magnifica figura com destaque no primeiro capítulo da tese de doutorado de Gonella, mas corre o risco de desaparecer das montanhas de Minas Gerais. O único local onde foi encontrada – a serra do Padre Ângelo – é uma montanha cercada de fazendas e já bastante desmatada. Segundo o pesquisador, a planta está na lista das espécies criticamente ameaçadas, mas existem iniciativas no sentido de transformar o lugar em uma unidade de conservação ambiental.

Projetos
1. Genômica e transcriptoma de Utricularia reniformis (Lentibulariaceae): Uma abordagem funcional e evolutiva (nº 13/25164-6); Modalidade Auxílio à Pesquisa – Regular; Pesquisador responsável Alessandro de Mello Varani (Unesp); Investimento R$ 172.933,90.
2. Identificação e expressão de genes relacionados à pigmentação floral em Utricularia (Lentibulariaceae) com abordagem evolutiva (nº 13/05144-0); Modalidade Auxílio à Pesquisa – Regular; Pesquisador responsável Vitor Fernandes Oliveira de Miranda (Unesp); Investimento R$ 163.054,45.

Artigos científicos
SILVA, S. R. et al. Molecular phylogeny of bladderworts: A wide approach of Utricularia (Lentibulariaceae) species relationships based on six plastidial and nuclear DNA sequences. Molecular Phylogenetics and Evolution. v. 118, p. 244-64. jan. 2018.
SILVA, S. R. et al. The mitochondrial genome of the terrestrial carnivorous plant Utricularia reniformis (Lentibulariaceae): Structure, comparative analysis and evolutionary landmarks. PLOS ONE. v. 12, n. 7, e0180484. 19 jul. 2017.
SILVA, S. R. et al. The chloroplast genome of Utricularia reniformis sheds light on the evolution of the ndh gene complex of terrestrial carnivorous plants from the Lentibulariaceae family. PLOS ONE. v. 11, n. 10, e0165176. 20 out. 2016.

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