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Pesquisa na quarentena

“Com a nova onda da pandemia, tudo pode mudar a qualquer momento”

A antropóloga Brume Dezembro Iazzetti fez reformulações no mestrado sobre a presença de pessoas trans na universidade e enfrenta restrições em pesquisa na Europa

Arquivo pessoal Em Budapeste, limitações impostas pela pandemiaArquivo pessoal

Neste mês de fevereiro eu já deveria estar em Tóquio, no Japão, como previsto no programa de mestrado em história pública no qual ingressei no segundo semestre de 2021, onde sou bolsista do programa Erasmus Mundus. Não pudemos viajar porque o país segue fechado para a entrada de estudantes estrangeiros devido à nova onda da pandemia. O programa prevê aulas e etapas de pesquisa em universidades conveniadas. Estou há cinco meses em Budapeste, Hungria, onde cursei o primeiro semestre na CEU [Central European University]. Em seguida, está incerta a passagem por Tóquio, Japão, e depois devo ficar um ano em Lisboa, Portugal, na Universidade Nova de Lisboa. Tenho estudado as interações entre Estado, sociedade e ciência na formação da opinião pública sobre uma chamada população “homossexual” no contexto da ditadura militar brasileira. A estada nesses países que também enfrentaram regimes autoritários em períodos recentes permitirá uma comparação com o cenário nacional.

Enquanto não é possível viajar, temos aulas on-line. Devemos perder muito, porque a troca me pareceu mais rica nas aulas presenciais, ainda mais em uma experiência de intercâmbio. Isso é acentuado pela impossibilidade de frequentar os museus, arquivos e monumentos locais, que fazem parte da proposta do curso, muito focado na prática. Passaríamos o semestre inteiro no Japão, mas agora não sabemos quando poderemos embarcar para lá. Faço parte da segunda turma do programa, a primeira que tem conseguido ter algumas aulas presenciais aqui na Europa, intercaladas com aulas on-line.

Vim para Budapeste logo depois que defendi o mestrado em antropologia social na Unicamp [Universidade Estadual de Campinas], onde trabalhei com a presença de pessoas trans no ensino superior público brasileiro, observando as primeiras gerações desses estudantes e docentes na graduação e pós-graduação. Os últimos meses de mestrado foram conturbados. A defesa foi on-line, senti falta de ver de perto as pessoas que acompanharam a minha trajetória, sair para comemorar e fechar o ciclo, mesmo que o digital tenha proporcionado um alcance que não conseguiria com a defesa estritamente presencial.

Pouco tempo depois veio a viagem – minha primeira para fora do país. Na nova pesquisa no exterior, pretendo observar as mobilizações ativistas e também símbolos e figuras históricas da resistência LGBTQIA+, principalmente pessoas trans, no recorte da ditadura militar brasileira e do início da epidemia de HIV/Aids, nos anos 1980. Pretendo observar como os saberes científicos foram mobilizados nessas perseguições e como ativistas estavam engajados na produção de conhecimento, disputando a opinião pública. A partir da pesquisa, desenvolverei um projeto prático em museus. Ainda estou refinando o projeto, então o levantamento de dados não foi prejudicado pela pandemia.

Em um momento no qual a situação pareceu um pouco mais tranquila, consegui fazer a primeira entrevista presencial desde o início da pandemia. Estou realizando um estágio de um mês em um arquivo da cidade, chamado OSA Archivum, onde gravamos um depoimento de um ativista por direitos humanos, hoje com 86 anos, que integrará uma exposição. Vivemos um dilema, por conta da idade dele e dos riscos envolvidos, mas tomamos os cuidados necessários, com todas as pessoas vacinadas e testadas. Como antropóloga, foi revigorante realizar uma entrevista pessoalmente, estar na casa onde ele morou a vida toda e que chegou a ser invadida pela polícia na época da Guerra Fria. Pouco tempo depois, as restrições voltaram e as últimas semanas no arquivo foram novamente on-line.

Arquivo pessoal Com a nova onda da Covid-19, campus da CEU voltou a ter poucas aulas presenciaisArquivo pessoal

Ainda temos muita dificuldade de pensar no longo prazo. A impressão é de que tudo pode mudar a qualquer momento e não é possível planejar com antecedência – ou pelo menos de se apegar a esses planos. Isso se junta a fatores políticos. O governo húngaro, autodeclarado como “democracia iliberal”, começou em 2018 uma série de intervenções nas universidades. Por isso, pouco tempo depois que cheguei, passamos um mês no campus de Viena, na Áustria. Mas assim que chegamos, em novembro, a Áustria entrou em lockdown. No curso, brincamos que parece que estamos sempre perseguindo a última onda de Covid-19.

Foi nesse período, no final de 2021, que senti com mais força as restrições físicas da quarentena. Morávamos em um alojamento pequeno e isolado, ainda por cima longe de nosso país natal.

Sobre minha pesquisa, os efeitos da pandemia foram mais intensos durante o mestrado em antropologia social na Unicamp, entre 2019 e 2021. Muitas universidades não estavam funcionando com regularidade e não tive acesso a alguns dados para o levantamento sobre a presença de pessoas trans nas universidades públicas. Como praticamente não havia dados oficiais sobre estudantes que se autodeclaram trans, fiz a busca a partir do nome social, junto a portais de transparência. Sintetizei essas informações em um guia de boas práticas de políticas afirmativas para as universidades, junto a uma ONG em que trabalhava remotamente (Todxs). Nossos primeiros resultados mostram que ainda há poucas pessoas trans na pós-graduação, mas que a presença na graduação já existe em todas as áreas de formação, o que pode ajudar a fomentar e aprimorar políticas públicas. Tais necessidades foram também mapeadas a partir das entrevistas.

Inicialmente, pretendia fazer trabalho de campo também junto a estudantes de cursinhos preparatórios dedicados a pessoas trans, para observar essa etapa antes do ingresso na universidade. Com a quarentena, muitos movimentos sociais se desarticularam e as aulas presenciais foram naquele momento canceladas. Além disso, a chegada a esses estudantes – muitos, em situação de extrema vulnerabilidade – foi impossibilitada com as dificuldades da pandemia. Com isso, desisti dessa parte da pesquisa e foquei apenas em estudantes trans já no ensino superior. Por sorte, tinha feito várias entrevistas antes da pandemia e depois consegui realizar algumas remotamente.

Durante o mestrado, já de forma on-line, integrei a mobilização pelas primeiras políticas afirmativas para pessoas trans na pós-graduação da Unicamp. Conseguimos garantir uma vaga no mestrado e outra no doutorado no PPGAS [Programa de Pós-graduação em Antropologia Social]. Em 2020, fui também cofundadora do coletivo Leilane Assunção, uma rede de apoio que trabalha pelo acesso e permanência de grupos historicamente marginalizados em universidades públicas, com atuação na Unicamp e também na USP [Universidade de São Paulo]. Nesse sentido, também percebo novas possibilidades e conexões abertas nos espaços on-line.

Passei parte da pandemia em São Paulo, para onde me mudei um pouco antes de tudo eclodir. Em 2021, voltei para a casa de minha família no interior do estado. Passar um tempo ali enquanto me preparava para viajar para o exterior foi extremamente importante. Felizmente, não tive nenhuma perda familiar ou de amigos próximos durante a pandemia e pude vê-los antes de viajar, o que tem me dado força para atravessar o momento.

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