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Financiamento

Convocação extraordinária

Pesquisadores paulistas se mobilizam contra a pandemia, e a FAPESP já financia 210 projetos sobre a Covid-19

Foto: Léo Ramos Chaves

O cientista da computação Marcelo Finger, do Instituto de Matemática e Estatística da Universidade de São Paulo (IME-USP), imaginou que sua experiência com linguística computacional poderia ter utilidade na identificação de pacientes com insuficiência respiratória, uma das principais manifestações de casos graves da Covid-19. “As técnicas que usamos para processar textos podem ser utilizadas para processar a voz. Basta transformar as palavras e os sons em números. Presumi que a análise da voz talvez pudesse identificar quem está com falta de ar”, explica. Um de seus alunos comentou a ideia com a médica Ester Sabino, do Instituto de Medicina Tropical da Faculdade de Medicina da USP, que ficou entusiasmada e passou a colaborar com Finger. “Ela viu a possibilidade de usar esse tipo de recurso na triagem de pacientes.” Em um projeto recém-aprovado pela FAPESP, o pesquisador propôs coletar centenas de amostras de registros de voz de pessoas com Covid-19 e de indivíduos saudáveis para explorar diferenças associadas à saturação de oxigênio e à frequência respiratória capazes de distinguir os dois grupos. O objetivo é criar uma ferramenta de classificação automática baseada em inteligência artificial, processamento de sinais e aprendizado de máquina. Estudantes de medicina estão captando registros sonoros de pacientes, enquanto os de pessoas saudáveis vêm sendo coletados pela internet. Também será necessário desenvolver um software para integrar a triagem de serviços de saúde. “A ideia é oferecer um serviço por telefone. O paciente liga, grava sua voz e a ferramenta avalia se há sinais de insuficiência respiratória. Um profissional da saúde decide que intervenção é necessária.” Finger estima que uma primeira versão do sistema poderá estar disponível em um ano.

Essa iniciativa é um dos 210 projetos de pesquisa sobre a Covid-19 que a FAPESP está financiando (ver seção Dados). Desse total, 144 já existiam e passaram a incluir a doença como alvo. No início da pandemia, a Fundação convidou pesquisadores com iniciativas aprovadas em modalidades como Projeto Temático, Jovens Pesquisadores e Centros de Pesquisa, Inovação e Difusão (Cepid) a participar do esforço para enfrentar a pandemia e uma boa quantidade deles apresentou propostas. Os outros 66 foram contemplados em chamadas especiais sobre a Covid-19, entre auxílios regulares ou vinculados ao programa Pesquisa Inovativa em Pequena Empresa (Pipe), em parceria com a Financiadora de Inovação e Pesquisa (Finep). Nas propostas que envolvem empresas, a meta principal é desenvolver equipamentos, como ventiladores de baixo custo e um tomógrafo por impedância elétrica para pacientes que respiram com a ajuda de aparelhos.

As áreas da saúde e biologia são as mais presentes. O infectologista Reinaldo Salomão, da Escola Paulista de Medicina da Universidade Federal de São Paulo (EPM-Unifesp), coordena um projeto que vai acompanhar 100 pacientes de Covid-19 tratados no Hospital São Paulo. A meta principal é identificar biomarcadores capazes de predizer a evolução da doença. Salomão observa que a enfermidade tem uma progressão longa. “Muitos pacientes vão logo para casa, mas, com outros, a necessidade de entrar em oxigenioterapia surge uma semana após a internação. E às vezes leva mais alguns dias para ele ser transferido para uma UTI (Unidade de Terapia Intensiva). Muitas vezes esse tempo de progressão da doença é semelhante entre os pacientes que sobrevivem e os que não sobrevivem. O foco do estudo é tentar descobrir se há um padrão de resposta dos pacientes que se correlaciona com os diferentes desfechos”, diz. Os pesquisadores vão coletar amostras de sangue periférico dos pacientes durante a internação, no momento da alta e 30 dias depois, para compreender a evolução da doença. Um dos focos de interesse são as populações de linfócitos. “Uma das marcas dos pacientes que evoluíram mal é o comprometimento dessas células de defesa”, explica Salomão. Outro são os mediadores inflamatórios produzidos pelo sistema imune, que provocam reações exacerbadas semelhantes às observadas em quadros de sepse. A iniciativa é um desdobramento de um Temático coordenado por Salomão que estuda a gênese da sepse e as estratégias de intervenção contra a doença, que tem mortalidade alta. “Conseguimos montar essa proposta rapidamente porque já estávamos estudando a resposta do hospedeiro a infecções nos quadros de sepse”, afirma.

Entrevista: Reinaldo Salomão
     

Três projetos sobre a Covid-19 foram apresentados por pesquisadores vinculados a um mesmo Temático, coordenado por Paulo Roberto Bueno, do Instituto de Química de Araraquara da Universidade Estadual Paulista (Unesp), que busca criar biossensores de doenças. Um deles, liderado por Bueno, pretende desenvolver uma plataforma eletroquímica para detectar a presença do vírus Sars-CoV-2 sem a necessidade de reagentes. A tecnologia já existe para o diagnóstico de outras doenças infecciosas e até de certos tipos de câncer, em parceria com a Universidade de Oxford, no Reino Unido. O método mede a presença de anticorpos, proteínas ou outros biomarcadores em uma amostra de sangue por meio de eletrodos microscópicos – a mudança do sinal elétrico da superfície dos eletrodos determina a presença do antígeno. “Já temos uma prova de conceito para a dengue. Vamos mudar a molécula receptora na superfície do sensor para detectar a infecção pelo Sars-CoV-2”, diz Bueno. Esperam-se resultados entre 8 e 12 meses. O segundo projeto é coordenado por Eduardo Maffud Cilli, atual diretor do Instituto de Química, e investiga, em parceria com pesquisadores da Unesp em São José do Rio Preto, o uso de peptídeos com potencial para inativar o novo coronavírus. O trabalho é fruto de uma linha de pesquisa que identificou a eficiência de certos peptídeos na neutralização dos vírus da hepatite C e da zika, impedindo sua replicação nas células. “Já começamos a fazer testes in vitro para o Sars-CoV-2 com peptídeos que já demonstraram ação virucida”, afirma Cilli. A terceira proposta ligada ao Temático é coordenada pelo químico Ronaldo Censi Faria, da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), cuja meta é gerar um dispositivo descartável, simples e de baixo custo para detectar sequências de RNA do Sars-CoV-2.

Entrevista: Paulo Roberto Bueno
     

A geneticista Maria Rita Passos-Bueno, do Instituto de Biociências (IB) da USP, estava na Itália, em fevereiro, quando surgiu a epidemia no norte do país. “Quis fazer um teste logo que cheguei, mas descobri que não havia exames disponíveis”, lembra. Assim surgiu o interesse em obter um teste de custo mais baixo e com tecnologia alternativa ao exame mais recomendado, que é o RT-qPCR. “No Brasil, a dependência da importação de insumos tem sido um dos principais limitantes para a realização de testes para Covid-19”, diz Passos-Bueno. O caminho foi apostar em uma metodologia chamada RT-Lamp, que não depende de equipamentos sofisticados e pode ser realizado em locais com pouca infraestrutura em amostras de saliva. As enzimas necessárias para o teste foram obtidas graças a uma colaboração com Shaker Farah, do Instituto de Química da USP. Espera-se que o teste esteja validado nas próximas semanas. Segundo a pesquisadora, a tecnologia pode ter aplicação no diagnóstico de outras doenças infecciosas, inclusive para uso veterinário e em plantas. O projeto está sendo realizado no Centro de Pesquisa sobre o Genoma Humano e Células-Tronco, um dos Cepid apoiados pela FAPESP, sob coordenação da geneticista Mayana Zatz.

144 projetos financiados pela FAPESP passaram a incluir a Covid-19 como tema das pesquisas

Diversos projetos buscam fármacos capazes de combater a doença. O farmacêutico Nícolas Hoch, do Instituto de Química da USP, desde 2019 é apoiado pela FAPESP na modalidade Jovem Pesquisador em um projeto que investiga proteínas envolvidas na sinalização de danos ao DNA. Uma modificação de proteínas que ele estuda, chamada ADP-ribosilação, tem um papel na resposta imune. “Quando células são infectadas pelo Sars-CoV-2, diversas proteínas do hospedeiro humano e do vírus são modificadas com ADP-ribose e isso ajuda a impedir a replicação viral. No entanto, o vírus codifica uma enzima que bloqueia essa sinalização. Essa função é essencial para o vírus. Daí surgiu a ideia de procurar um inibidor dessa enzima”, afirma. Ele apresentou um projeto para identificar compostos, de preferência já aprovados para outros usos, que possam ser usados contra a Covid-19. De uma lista de 6 mil moléculas, identificou, por métodos computacionais, 79 compostos a serem testados em ensaios bioquímicos e celulares. O objetivo é reduzir essa lista para cinco compostos que possam ser testados em células infectadas com o vírus. Ele conta com a colaboração de colegas do IQ-USP, como Deborah Shechtman, Flávia Meotti e Alexandre Bruni Cardoso, e estabeleceu parcerias com grupos dos Estados Unidos e da Europa para desenvolver esse projeto.

O parasitologista Fabio Trindade Maranhão Costa, do Instituto de Biologia da Universidade Estadual de Campinas (IB-Unicamp), procura drogas promissoras contra a Covid-19 utilizando a expertise obtida em um Temático sob sua coordenação, que busca identificar alvos moleculares para terapias contra a malária. Seu grupo está fazendo uma triagem virtual de mais de 1 milhão de fármacos e compostos químicos para avaliar o potencial de inibir interações entre proteínas que viabilizam a entrada do vírus na célula hospedeira. Costa faz testes de bancada com os fármacos e abastece de informações a colega Carolina Horta Andrade, da Faculdade de Farmácia da Universidade Federal de Goiás (UFG), que utiliza ferramentas de inteligência artificial para encontrar moléculas úteis contra a Covid-19. “O processo é dinâmico. Os resultados fenotípicos ajudam a aprimorar mais o algoritmo de predição de atividade de fármacos que a doutora Andrade vem desenvolvendo”, explica. Embora o foco atual seja compostos já aprovados, o pesquisador também está interessado em moléculas não testadas, que possam resultar em fármacos em longo prazo. “De imediato, não creio que será encontrada uma bala mágica contra a Covid-19. O mais provável é que se chegue a uma combinação de medicamentos que tenham algum efeito para deter o avanço do vírus em pacientes em diferentes estágios da doença.” O projeto também conta com a colaboração dos virologistas José Modena, do IB-Unicamp, e Rafael Elias, do Laboratório Nacional de Biociências (LNBio).

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