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Epidemiologia

O desafio de calcular o R

Informações falhas dificultam a determinação do número efetivo de reprodução da infecção e impactam o combate à Covid-19

Russell Tate

Conhecer a taxa de propagação de um vírus em meio a uma população ao longo do tempo é essencial para lidar com epidemias. Isso é possível por meio do acompanhamento de um indicador, conhecido como número efetivo de reprodução da infecção (Re ou Rt). O Re é o número médio de indivíduos contagiados por cada infectado nas condições existentes em um momento determinado.

Esse indicador permite que se projete a demanda hospitalar futura, o uso de medicamentos e equipamentos e até o espaço nos cemitérios para receber mortos. É importante também para planejar períodos de quarentena e sua flexibilização, aponta o epidemiologista Hélio Neves, da Faculdade de Ciências Médicas da Santa Casa de São Paulo (FCM-SCSP). Um Re equivalente a 1 significa que cada pessoa infectada transmite a doença para mais uma pessoa. Um indicador acima desse patamar indica a necessidade de manutenção das medidas de isolamento. Para se adotar qualquer tipo de flexibilização, o Re deve ser inferior a 1. “O ideal é só relaxar com um Re de 0,7 ou 0,8”, pondera Neves. Assim, segundo ele, há espaço para absorver o aumento de casos, fato esperado, por exemplo, com o início da flexibilização em São Paulo. Com a intensificação dos contatos sociais, o vírus encontra uma situação propícia para se disseminar.

A epidemiologista Maria Amélia Veras, do Departamento de Saúde Coletiva da FCM-SCSP e integrante do Observatório Covid-19 BR, iniciativa independente de pesquisadores para divulgar informações e fazer análises sobre a pandemia, explica que uma variação aparentemente pequena no Re pode significar grande perturbação no futuro. Por exemplo, usando dados da capital paulista, em um cenário de crescimento exponencial da Covid-19, uma taxa de reprodução viral efetiva de 0,95 representaria 250 mil novos casos acumulados em um mês. Com um Re de 1,05, o número subiria para 364 mil. “É uma diferença de mais de 100 mil casos em um mês. Por isso temos que estimar e acompanhar o indicador com cuidado”, diz Veras. “O Re demanda informações precisas e uma atualização constante para ser um instrumento adequado de acompanhamento da evolução da doença.”

O Observatório Covid-19 BR é um dos poucos grupos a calcular e disponibilizar informações sobre o número de reprodução efetiva da doença no Brasil. No entanto, a base de dados que utiliza para realizar o cálculo não é a ideal, mas a possível. É o que reconhece Renato Coutinho, do Centro de Matemática, Computação e Cognição da Universidade Federal do ABC (CMCC-UFABC) e um dos responsáveis pelos números apresentados pelo observatório. A projeção do Re é feita levando em conta o acompanhamento hospitalar de pacientes com Síndrome Respiratória Aguda Grave (SRAG) notificados no Sistema de Informação da Vigilância Epidemiológica da Gripe (Sivep-Gripe), mantido pelo Ministério da Saúde.

É uma base limitada, já que entre 80% e 90% dos casos não geram internação. Outro problema é que a plataforma Sivep-Gripe é divulgada sem regularidade. Desde março, vem sendo atualizada apenas uma ou duas vezes por mês. Os dados registrados, contudo, não refletem necessariamente a informação da internação, alta médica ou óbito do dia de sua ocorrência, mas do dia da notificação.

“A defasagem média entre fato e notificação é de sete dias”, conta Coutinho. O observatório corrige essa diferença em seu cálculo. No final de junho, 25 cidades eram acompanhadas pelo sistema. 

Existem várias formas de calcular o Re e quanto melhor for a qualidade da base de dados, mais preciso será o resultado. O primeiro passo é estabelecer o número básico de reprodução da infecção, conhecido como R0 (erre zero), que mede a infectividade de um patógeno em um ambiente no qual ninguém adquiriu imunidade a ele. O R0 do vírus Sars-CoV-2, causador da Covid-19, está entre 2,5 e 3 – o que significa que um infectado contamina, em média, duas ou três pessoas.

O epidemiologista Guilherme Werneck, vice-presidente da Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco) e professor do Instituto de Estudos em Saúde Coletiva da Universidade Federal do Rio de Janeiro (Iesc-UFRJ), explica que o R0 é calculado com base em três informações: o número de contatos que uma pessoa infectada faz com indivíduos suscetíveis, o risco de transmissão em cada contato realizado e o tempo médio em que o infectado transmite a doença. Na Covid-19, a transmissão começa cerca de dois dias antes de o doente apresentar sintomas e se prorroga por mais sete. 

“O número efetivo de reprodução, o Re, é o R0 exposto às condições reais de evolução da doença. Portanto, muda constantemente refletindo a interação da sociedade com o agente infecioso”, detalha Werneck. Pessoas que entram em contato com o agente, no caso o patógeno Sars-CoV-2, e desenvolvem imunidade, passam a não mais fazer parte do cálculo de possíveis novos casos. No futuro, o surgimento de uma vacina e sua aplicação em massa aumentará o total de imunes e, provavelmente, irá encolher o Re para um número abaixo de 1.

Em boa parte da Europa e da Ásia e em diversos estados norte-americanos, o Re é calculado olhando a situação presente. Testes regulares detectam a quantidade de pessoas que já foram expostas ao novo coronavírus e se tornaram imunes, quantas desenvolveram Covid-19 e quantas são assintomáticas. Dessa forma, o indicador reflete melhor a realidade.

O atraso nas notificações e a ausência de testagem em massa, como verificados no Brasil, obrigam os especialistas a recorrerem a algo que denominam nowcasting, a projeção do presente. Para isso, resgatam dados do passado para tentar entender o que está ocorrendo. É o que faz o Observatório Covid-19 BR, com os números do Sivep-Gripe. Outra instituição que acompanha o Re da Covid-19 no Brasil é o Imperial College, de Londres. Em seu relatório do fim de junho, o indicador calculado para o Brasil era de 1,06, o que significava que cada 100 pessoas infectadas pelo novo coronavírus transmitiam o patógeno para outras 106.

O virologista Fernando Spilki, presidente da Sociedade Brasileira de Virologia e pesquisador do Laboratório de Microbiologia Molecular da Universidade Feevale, em Novo Hamburgo (RS), defende que o enfrentamento de uma pandemia como a Covid-19 exige capacidade de atualizar estratégias a todo momento, principalmente quando se pretende conciliar esse objetivo com a manutenção da atividade econômica. “Combater uma epidemia é mirar alvo em movimento”, sustenta Spilki. “No Brasil, infelizmente, atiramos a esmo. Não temos dados atualizados e confiáveis.” 

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