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Gênero

Covid-19, uma batalha feminina

Rede de pesquisadoras busca encontrar soluções e influenciar políticas públicas para as dificuldades enfrentadas por mulheres na pandemia

Reprodução Montagem a partir do logotipo da rede, com imagens de participantes da live de lançamentoReprodução

A linha de frente da pandemia é majoritariamente feminina. As mulheres predominam entre enfermeiras e caixas de supermercado. Principalmente nas classes economicamente mais desfavorecidas, são quase sempre elas que lidam com os filhos sem possibilidade de ir à escola, que cuidam dos parentes que adoecem ou perdem os empregos e sofrem com o aumento da violência doméstica. É essa a percepção do grupo de cientistas que, no final de abril, formou a Rede Brasileira de Mulheres Cientistas, com o intuito de olhar para fora da academia. A equipe de pesquisadoras já começou a produzir notas técnicas sobre a desproporcional mortalidade de gestantes no Brasil em consequência da Covid-19, os riscos de vida enfrentados pelas profissionais da saúde e a falta de estratégia de testagem em grande escala no país. Todas informam e interpelam o poder público.

As cientistas políticas Vanessa Elias de Oliveira, da Universidade Federal do ABC (UFABC), e Luciana Tatagiba, da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), estão entre as instigadoras da rede. “Começou com uma conversa entre colegas, em razão do incômodo que sentimos em relação à inação atual”, conta Oliveira. Ela é especialista em judicialização de políticas públicas e Tatagiba em participação popular e movimentos sociais. Nenhuma, portanto, com foco especial em questões femininas – apesar de terem editado, com outras três colegas, o livro Mulheres, poder e ciência política: Debates e trajetórias, publicado em 2020 pela editora Unicamp. Mas quando elas se reuniram por teleconferência com mais 10 pesquisadoras, em uma sexta-feira à noite em meados de abril, para discutir como mobilizar o conhecimento acadêmico para informar políticas públicas em defesa das mais vulneráveis, era claro o que caracterizava o grupo: todas eram mulheres cientistas.

Entrevista: Vanessa Elias de Oliveira
00:00 / 18:80

Depois da primeira reunião, o grupo passou o fim de semana trabalhando na carta que definiria o movimento para lançar na segunda-feira, 19 de abril. Elas estavam prontas para comemorar, como feito significativo, se ao fim de uma semana a carta tivesse uma centena de assinaturas. “Mas no meio da semana já tínhamos 500”, conta a pesquisadora da Unicamp. O seminário on-line de lançamento, transmitido pelo YouTube em 23 de abril, demonstrou a riqueza do movimento ao reunir pesquisadoras de uma diversidade de áreas do conhecimento e de localidades – todas dispostas a contribuir de alguma maneira. Em um exemplo desse trabalho voluntário, a designer gráfica Rafaella Peres, professora na Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, já tinha desenvolvido um logotipo (que integra a ilustração desta reportagem) para a rede, de maneira a ressaltar união, diversidade e integração das grandes áreas do conhecimento. “Parecia que a rede já estava pronta e só faltava acontecer”, disse Tatagiba na ocasião, referindo-se ao entusiasmo das participantes e ao volume de contribuições propostas. O grupo entrou em maio com mais de 3.800 signatárias e segue crescendo.

“É uma ideia brilhante para este momento, por seu caráter multidisciplinar”, avalia a filósofa Yara Frateschi, da Unicamp, signatária da rede. Ela tem experiência, desde 2019, com a Rede Brasileira de Mulheres Filósofas, que busca fazer frente ao desequilíbrio de gênero na disciplina. “Somos apenas 24% da comunidade filosófica.” Para ela, as redes têm a função de pôr projetos em diálogo e dar-lhes visibilidade. A prática traz benefícios pelo lado científico, por permitir o amplo compartilhamento dos resultados de pesquisas, e do ponto de vista político e institucional, “pois encontramos soluções melhores para os problemas de gênero quando diferentes perspectivas são levadas em consideração”.

O desafio que o comitê executivo da nova rede enfrenta, no momento, é encontrar maneiras de gerir o efervescente conjunto de cientistas que vem inundando o grupo de WhatsApp com ideias. “Vamos lidar com propostas semanais, criando subgrupos de trabalho ao longo dos seis eixos que delineamos na carta: saúde, violência, educação, assistência social e segurança alimentar, trabalho e emprego, e moradia e mobilidade”, conta Oliveira. “As integrantes da rede já geram conhecimento, nosso desafio é articular o que existe.” Um objetivo atual é reunir conhecimento produzido pela rede até agora para montar um relatório que possa subsidiar os debates da Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) da Covid-19 em curso no Congresso Nacional. Para isso, o site disponibiliza um formulário a ser preenchido por quem tiver contribuições resultantes de seu trabalho.

Mais adiante, o encontro de ciências humanas, naturais e exatas pode dar origem a novas ideias de pesquisa. “A confluência das três grandes áreas do conhecimento é histórica”, afirma Tatagiba. “A realidade é interdisciplinar”, completa Oliveira. “Criamos disciplinas para possibilitar a pesquisa, mas elas não refletem o mundo.” A pesquisadora da UFABC, uma universidade que nasceu interdisciplinar, tem essa experiência: “Já publiquei artigo sobre políticas públicas com colegas da geologia”.

Vamos lidar com propostas semanais, criando subgrupos de trabalho ao longo dos seis eixos que delineamos na carta: saúde, violência, educação, assistência social e segurança alimentar, trabalho e emprego, e moradia e mobilidade

A união de forças é necessária para o ambicioso objetivo. “É possível, aqui e agora, e com os recursos públicos existentes, implementar políticas públicas que garantam condições de vida, trabalho e segurança para as brasileiras”, diz o manifesto fundador da rede. Oliveira conta que alguns políticos já perceberam o potencial desse conhecimento científico para embasar políticas públicas e as procuraram para conversar. O site do governo paulista também anunciou a formação da rede. Não há nada concreto ainda, mas são indícios promissores.

À medida que a iniciativa for se organizando e crescendo, Oliveira espera que ainda mais pesquisadoras se sensibilizem com os problemas enfrentados pelas mulheres e incluam a perspectiva de gênero em suas áreas de pesquisa, gerando mais diálogo. Elas também buscam maneiras de inspirar estudantes e jovens cientistas para que se engajem nessas questões.

A representatividade feminina ainda é insatisfatória no meio acadêmico, na maior parte das áreas do conhecimento: algumas delas são dominadas por homens e, de maneira geral, mulheres escasseiam nos degraus mais altos da carreira. Além disso, é consenso que as cientistas estão sofrendo mais que os colegas homens durante a pandemia, com uma queda significativa na produtividade em razão dos cuidados com filhos, pais idosos e trabalhos domésticos, nem sempre compartilhados de forma equilibrada com os companheiros. De acordo com Frateschi, alguns campos do saber são vistos como mais adequados às mulheres. “Na Unicamp, as áreas que envolvem números, cálculos, estratégia são dominadas por homens.” As mulheres, por outro lado, são maioria em áreas como enfermagem e educação, associadas ao cuidado. “É muito importante o movimento de mostrar para a sociedade que as mulheres são capazes de produzir ciência de qualidade em todas as áreas, que conhecimento não tem gênero: a Rede Brasileira de Mulheres Cientistas tem potencial para isso”, afirma a filósofa.

Frateschi ressalta, ainda, a importância do equilíbrio de gênero para a evolução das próprias áreas do conhecimento. “Quando mulheres entram na ciência, elas olham para as mulheres.” Um bom exemplo: segundo a filósofa, foi necessário que um corpo significativo de historiadoras se formasse para que viesse à tona “a questão escondida de que as mulheres são sujeito da história”. Até então, a perspectiva masculina era a única. Em sua pesquisa, ela tem se dedicado a fazer o resgate das filósofas, que, a despeito de terem produzido pensamento relevante desde a Antiguidade, não entraram para o cânone – o conjunto dos autores reconhecidos como clássicos, isto é, como os principais responsáveis, no passado, pela produção do corpo do conhecimento na área. “O cânone permanece quase exclusivamente masculino até que as mulheres resolvam reescrevê-lo”, afirma ela. Em sua opinião, o protagonismo feminino na ciência é especialmente importante neste momento, em que tanto as mulheres quanto a própria ciência estão em situação de vulnerabilidade em razão do desmonte de uma série de políticas públicas, do negacionismo e da misoginia. “As mulheres cientistas estão dizendo: estávamos aqui e vamos continuar.”

“É possível criar uma organização transversal, que será mais criativa quanto mais plural”, espera Tatagiba. Uma das preocupações é que o grupo seja representativo do ponto de vista de diversidade étnica, socioeconômica, de orientação sexual e geográfica – já há integrantes de todos os 26 estados brasileiros mais o Distrito Federal. Mais do que simbólica, a ideia é fazer frente à concentração histórica de cursos universitários nas regiões Sul e Sudeste, e estimular a produção e a contribuição das outras regiões.

Não está claro se há uma forma feminina de fazer ciência, mas o modelo colaborativo talvez ajude a descobrir. “Nossa história acadêmica segue uma lógica produtivista, nem sabemos como fazer diferente”, reflete Tatagiba. Há uma preocupação em praticar o cuidado entre as integrantes da rede. “Tentamos respeitar os horários de descanso e não marcar reuniões tarde da noite, e evitamos trabalhar no fim de semana – embora isso sempre acabe acontecendo”, diz Oliveira (a entrevista para esta reportagem aconteceu no dia 1º de maio, sábado e feriado). “São cuidados que deveriam ser replicados na academia, tornado-a um ambiente com mais gentileza e cooperação.”

Íntegra do texto publicado em versão reduzida na edição impressa, representada no pdf.

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