Em quase 360 anos de história no Brasil – a serem completados em 25 de janeiro de 2023 –, os Correios já passaram por muitas transformações. Provavelmente a mais profunda e definidora aconteceu no século XIX, quando coube à instituição um papel fundamental na construção do país recém-independente de Portugal. Essa é uma das principais conclusões de “Em torno do trono: A economia política das comunicações postais no Brasil do século XIX (1829-1865)”, tese de doutorado da historiadora mineira Pérola Goldfeder, desenvolvida, com apoio da FAPESP, na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (FFLCH-USP). Defendida no ano passado, o trabalho ganhou o Prêmio Arquivo Nacional de Pesquisa 2021.
O objetivo de Goldfeder era compreender a logística da distribuição da informação em um país rural, como era o Brasil de então, quando cerca de 90% da população de quase 10 milhões de habitantes vivia fora das cidades, segundo o primeiro censo demográfico, realizado em 1872. “Quando comecei essa pesquisa, não havia respostas na historiografia consagrada. Caio Prado Júnior [1907-1990], por exemplo, falava que no século XIX as vias terrestres eram péssimas e que não havia integração nacional. Por outro lado, Capistrano de Abreu [1853-1927] e Sérgio Buarque de Holanda [1902-1982] diziam que um tema bom para a pesquisa eram os caminhos e as pessoas que foram demarcando esse território a pé”, relembra Goldfeder.
“Não se fala muito dos Correios como elemento de adensamento nos territórios. No Brasil, a capilaridade que essa instituição promoveu no século XIX é muito maior do que as ferrovias, por exemplo, principalmente porque a malha do serviço postal era percorrida principalmente a pé, isto é, cobrindo um território muito maior do que a limitada malha ferroviária. Era o caminheiro que levava informação e o Estado para mais lugares”, explica a historiadora. Para se ter uma ideia do crescimento da malha, Goldfeder cita que entre 1854 e 1860 o número de agências existentes no país saltou de 365 para 521, um aumento de 43%. Atualmente, a Empresa Brasileira de Correios e Telégrafos tem 6,5 mil agências próprias, 4,3 mil comunitárias, mil franqueadas e 127 permissionárias.
Alexandre Saes, professor da Faculdade de Economia e Administração (FEA-USP) e orientador de Goldfeder durante a pesquisa, contextualiza: “Um país que tinha acabado de conquistar a Independência, com um vasto território marcado por realidades diversas, precisava construir um sistema de comunicação que pudesse alcançar esses distantes espaços”. Segundo ele, a existência de agências dos Correios nos mais longínquos rincões “simbolicamente dava o caráter de pertencimento desses espaços dentro do país”.
Esse complexo sistema de comunicação ganhou um forte impulso quando, em 1829, foi criada a Diretoria Geral dos Correios, que funcionou até 1865 com esse nome. “Pode-se dizer que todas as capitais da província, as principais localidades de todas as regiões ‒principalmente o Sudeste brasileiro ‒, já contavam com serviços de comunicação até o final do Império”, acrescenta Romulo Valle Salvino, ex-diretor do Museu dos Correios, doutor em história pela Universidade de Brasília (UnB) e autor do livro Guerras de papel: Comunicação escrita, política e comércio na monarquia ultramarina portuguesa (Paco Editorial, 2021).
Mesmo com uma malha postal cada vez maior, Goldfeder pensava que o conteúdo que por ela circulava era limitado. “Comecei a pesquisa esperando que os Correios fossem apenas um vetor de comunicação administrativa, de ofícios, autos, algo do Estado para o Estado”, relata. Para a pesquisadora, a rede de jornais e cartas era algo limitado e muito informal. “Ocorre que os dados estatísticos nos registros da época mostraram que os ofícios são, de fato, uma documentação relevante, a segunda mais importante, mas a principal são as cartas. Isso foi uma surpresa, especialmente se consideramos tratar-se de uma sociedade escravocrata e com altos índices de analfabetismo como a brasileira do século XIX.”
O mergulho em arquivos estaduais e federais trouxe à tona atos administrativos, dados estatísticos e financeiros, debates parlamentares, comparativos de cartas, ofícios e jornais recebidos e remetidos por algumas províncias. Muita coisa se perdeu; outro tanto não foi preservado. “Procurei vestígios das atividades da Diretoria Geral dos Correios, mas é uma história muito fragmentada. Resolvi então fazer o caminho inverso. Fui procurar as documentações das províncias, as correspondências das administrações regionais com a diretoria. Em arquivos estaduais consegui achar alguma coisa”, informa.
Refazendo movimentos e caminhos de quase dois séculos atrás, a historiadora comprovou que o principal fluxo de cartas, jornais e ofícios tinha origem na Corte no Rio de Janeiro – o grande centro irradiador e receptor de informações – e destinava-se majoritariamente para Minas Gerais, São Paulo, Rio Grande do Sul, Pernambuco, Bahia e Maranhão.
Também encontrou preciosidades como “um requerimento de um funcionário, um caminheiro dos Correios, para o seu administrador em São Paulo pedindo para mudar o horário que ele saía de Cubatão, porque tinha medo de pegar a serra à noite”. Ou então duas folhinhas de papel, dos anos 1840, encontradas no Arquivo Público do Estado de São Paulo: “Elas eram entregues pelo administrador para os caminheiros e a cada parada o agente postal do lugar marcava o horário da passagem. Era um controle do tempo. Encontrei duas dessas, dobradinhas, bem vincadas. Dá para perceber que aquilo esteve guardado no bolso de alguém. É um papel que tem uns 200 anos”, estima Goldfeder, ao tratar da rotina do que depois viriam a se tornar os carteiros.
Documentos, números, cartas, jornais, requerimentos, autos, mapas, tudo ajudou a traçar um panorama maior dos Correios e da sociedade que o alimentava no século XIX. “No início da pesquisa, eu estava preocupada com a formação do sistema postal, mas sobretudo com a formação desse serviço como uma dimensão do Estado nacional. E de que forma o Estado tomou posse desse serviço, afirmando seu monopólio e fincando raízes no país. Acho que uma das contribuições da tese é a de abrir uma agenda coletiva de pesquisa em história econômica”, arremata Goldfeder.
Saes concorda. “Até agora são poucos os estudos dedicados à história dos Correios no Brasil, especialmente relativos ao período imperial”, diz. “Esse trabalho, para além de uma detalhada descrição da constituição dos Correios nas primeiras décadas do século XIX, demonstra a centralidade da instituição na formação do Estado brasileiro.”