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Astrofísica

De todos os tamanhos

Ondas gravitacionais reforçam a existência de buracos negros intermediários, entre 100 e 100 mil massas solares

Representação artística de seis galáxias (pontos luminosos) em nuvem de gás em torno do buraco negro supermassivo de um quasar

ESO / L. Calçada

No início de setembro, os observatórios Ligo, nos Estados Unidos, e Virgo, na Itália, anunciaram a mais intensa detecção de ondas gravitacionais desde que esse tipo de emissão foi flagrada pela primeira vez, em setembro de 2015. A fonte do novo e potente sinal, registrado em 21 de maio de 2019, foi a fusão de dois buracos negros, um de 85 e outro de 66 massas solares. Ocorrida quando o Universo tinha cerca de metade de sua idade total de 13,8 bilhões de anos, a união desses dois objetos extremamente densos e compactos gerou um buraco negro ainda maior, de 142 massas solares. Nesse evento, a energia liberada na forma de ondas gravitacionais, perturbações na curvatura do espaço-tempo previstas por Albert Einstein (1879-1955), foi da ordem de 8 massas solares. Dotado de um descomunal campo gravitacional, um buraco negro não deixa nada escapar de seu interior, nem a luz, particularidade que dificulta seu registro.

O sinal sonoro da fusão de buracos negros, denominado GW190521, foi captado pelos dois detectores em solo norte-americano e seu congênere europeu, instalado na Toscana. “Ao contrário das fusões de buracos negros que geralmente detectamos, que reverberam como um chiado cada vez mais agudo, o GW190521 durou apenas um décimo de segundo e era mais semelhante a um baque”, disse, em material de divulgação, o astrofísico norte-americano Nelson Christensen, chefe do laboratório Artemis do Observatório da Côte d’Azur, em Nice, na França, e um dos coordenadores da equipe que redigiu dois artigos científicos sobre a descoberta. “Então percebemos que estávamos lidando com uma fonte [de ondas gravitacionais] excepcionalmente massiva.”

De acordo com o tipo de vibração gerada pelas ondas gravitacionais, os pesquisadores inferem características do evento que as produziu. “Em fusões de buracos negros, conseguimos estimar a massa dos objetos que se uniram e também do que resultou”, diz o astrofísico Odylio Aguiar, do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), que coordena a participação de brasileiros no consórcio Ligo. O sinal GW190521 é o indício mais sólido de que buracos negros de tamanho intermediário, com massa entre 100 e 100 mil sóis, existem. Antes eram conhecidos somente buracos negros muito pequenos ou demasiadamente grandes.

Ainda não se sabe se há pontos específicos do Universo que tendem a abrigar buracos negros de tamanho intermediário ou se eles estariam espalhados por diversas regiões de forma aleatória. “Eles poderiam se formar na periferia das galáxias ou talvez estar no centro de galáxias anãs”, comenta o astrofísico holandês Roderik Overzier, do Observatório Nacional (ON), do Rio de Janeiro. “Ou ainda em aglomerados globulares [concentrações de formato esférico de até 1 milhão de estrelas muito antigas, surgidas há mais de 10 bilhões de anos].” Desde os anos 2000, os astrofísicos suspeitam que esse tipo de buraco negro poderia se formar no Cosmo, sem, no entanto, ter provas irrefutáveis de sua existência.

Os buracos negros supermassivos, no centro de galáxias, têm entre 100 mil e bilhões de massas solares

Até os registros do Ligo-Virgo havia evidências da presença no Universo de buracos negros em duas escalas de grandeza: os estelares, com até 65 massas solares, resquícios da morte de certas estrelas, e os supermassivos, entre 100 mil e bilhões de massas solares, presentes no centro da maioria das galáxias do Universo, senão de todas. “O processo que levaria à formação de buracos negros intermediários ainda é uma incógnita”, comenta o astrofísico Rodrigo Nemmen, do Instituto de Astronomia, Geofísica e Ciências Atmosféricas da Universidade de São Paulo (IAG-USP). “Sabemos bem apenas como se originam os buracos estelares.”

Entrevista: Rodrigo Nemmen
00:00 / 15:32

Algumas estrelas chegam ao final de sua vida por meio de uma violenta explosão, denominada supernova. Esse evento libera enormes quantidades de matéria e radiação.  Se os resquícios da supernova apresentam massa colapsada entre 1,4 e 2 massas solares, surge uma estrela de nêutrons, um corpo muito denso e compacto. Quando o núcleo remanescente da estrela que explodiu é superior a 3 massas solares, a matéria continua a colapsar (a se acumular em uma pequena área), gerando um objeto ainda mais denso e compacto: um buraco negro. É comum os buracos negros de menor dimensão apresentarem uma estrela companheira de cuja matéria se alimentam. Esse processo de contração gravitacional de uma única estrela, segundo os cálculos dos físicos, pode gerar buracos negros de até 65 massas solares. Para explicar buracos negros acima desse limite, há várias hipóteses: eles poderiam se formar pela captura progressiva de gás e de poeira do espaço; pela união de buracos negros menores; ou ainda serem o produto da fusão de duas ou mais estrelas muito massivas que colapsaram.

Mark Myers / OzGrav Representação artística dos dois buracos negros com dezenas de massas solares cuja fusão gerou ondas gravitacionais captadas em 2019 pelos detectores Ligo-VirgoMark Myers / OzGrav

Apesar da enorme diferença de massa entre os buracos negros estelares e os supermassivos, esses objetos, independentemente de seu talhe, apresentam as mesmas características. São descritos pelos astrofísicos como regiões do espaço em que uma quantidade de matéria descomunal se encontra comprimida em uma área minúscula. Essa particularidade gera um campo gravitacional tão forte que toda a matéria é sugada para o seu interior ao cruzar um certo limite de proximidade em torno do buraco negro, o chamado horizonte de eventos. A matéria capturada se concentra em um ponto central dessa região, a singularidade, de densidade infinita, onde as leis da física conhecidas não valem.

Por sua própria natureza, buracos negros não emitem nenhuma forma de radiação, a não ser, talvez, a chamada radiação de Hawking, fenômeno hipotético proposto pelo famoso físico britânico falecido. A única forma segura de detectá-los é por meios indiretos, pela observação de perturbações que sua presença e enorme campo gravitacional causam em seu entorno. Algumas anomalias podem indicar a existência desses gigantescos sugadores de matéria. Umas delas são fortes emissões de alguns tipos de radiação, como raios X e ondas de rádio, em regiões do espaço onde aparentemente não existe nada. Essa produção de energia deriva do contato da borda do chamado disco de acreção de matéria com o horizonte de eventos, a fronteira que delimita a área da qual a matéria não escapa do campo gravitacional do buraco negro. No ano passado, o projeto Telescópio Horizonte de Eventos (EHT), que  usa dados coletados por oito observatórios de radioastronomia, obteve as imagens mais significativas do que seriam os arredores de um buraco negro supermassivo, com 6,5 bilhões de massas solares: um círculo colorido ligeiramente desfocado, ao redor de uma região enegrecida no centro da galáxia M87. Não se trata de um flagra do buraco negro em si, mas do seu entorno ou sombra.

ESO / M. Kornmesser Ilustração reconstrói a trajetória da estrelaS2 em torno do buraco negro no centro da Via LácteaESO / M. Kornmesser

Outra pista da presença de buracos negros é o registro de órbitas anômalas e extremamente aceleradas de uma estrela ou de um conjunto de estrelas em torno de um ponto supostamente vazio. A observação contínua desse segundo fenômeno em estrelas situadas em torno do centro da Via Láctea, como a S2, provou que existe ali um buraco negro supermassivo, com cerca de 4 milhões de massas solares, denominado Sagittarius A*. O feito rendeu o Nobel de Física de 2020 para o alemão Reinhard Genzel, do Instituto Max Planck de Física Extraterrestre, e a norte-americana Andrea Ghez, da Universidade da Califórnia em Los Angeles (Ucla). O terceiro agraciado com o prêmio deste ano foi o teórico britânico Roger Penrose, da Universidade de Oxford, no Reino Unido, por seus estudos que mostram a compatibilidade da existência de buracos negros com a teoria da relatividade geral de Einstein (ver Notas). Também no interior dos quasares, objetos extremamente luminosos, com núcleos ativos, há evidências de buracos negros supermassivos.

Desde 2015, quando os detectores do Ligo entraram em operação, o registro de ondas gravitacionais, como as emitidas pela fonte GW190521, tornou-se mais uma forma indireta de coletar evidências de buracos negros. Até agora, 15 emissões de ondas gravitacionais foram flagradas pela cooperação Ligo-Virgo: 12 envolveram a fusão de um par de buracos negros, 2 foram produzidas pela junção de estrelas de nêutrons e 1 se deu pela união de um buraco negro com um objeto compacto ainda não determinado. Algumas fusões chamam a atenção pela diferença significativa de massa dos corpos envolvidos (em geral, os objetos que participam desses eventos têm tamanhos similares), como as de “O Gordo e o Magro”, apelido dado à união de dois buracos negros bastante assimétricos, um de 8 e outro de 30 massas solares, registrada no ano passado pelos detectores de ondas gravitacionais. Evento ainda mais misterioso foi a fusão de um buraco negro de 23 massas solares com um objeto denso e compacto, de cerca de 2,6 massas solares, que os astrônomos não sabem precisar se se trata de um pequeno buraco negro ou de uma estrela de nêutron.

NASA / ESA / D. Coe, J. Anderson/R. van der Marel (STScI) Simulação computacional mostra como a gravidade de buraco negro supermassivo distorce o espaço ao seu redor como um espelho de um parque de diversõesNASA / ESA / D. Coe, J. Anderson/R. van der Marel (STScI)

A descoberta de mais buracos negros supermassivos e de tamanho intermediário reforça uma questão cosmológica nos moldes do ovo e a galinha: as galáxias surgiram antes desses grandes sugadores de matéria, como a maioria das observações indica, ou é possível que tenham surgido juntos ou depois? A galáxia mais antiga conhecida, a GN-z11, teria surgido entre 300 e 400 milhões de anos depois do Big Bang, a explosão inicial que teria dado origem ao Universo. Até agora, o mais antigo buraco negro identificado teria se formado 690 milhões de anos depois do Big Bang. Ele se encontra no centro do quasar Ulas J134208.10 e sua massa equivale à de 800 milhões de sóis. “Os quasares e as galáxias surgiram quase juntos no início do Universo”, comenta a astrofísica Thaisa Storchi Bergmann, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), estudiosa de buracos negros supermassivos. “Talvez os buracos negros intermediários sejam a semente dos supermassivos. Mas isso é apenas uma hipótese.”

As novidades nessa área devem ser cada vez mais frequentes. No próximo ciclo de observação de ondas gravitacionais, previsto para ter início em meados de 2022, a cooperação Ligo-Virgo vai incorporar a participação do detector japonês Kagra, que passou a funcionar no início deste ano. “Com o Kagra, devemos observar por semana três eventos candidatos a serem emissões de ondas gravitacionais”, compara Aguiar. “Em nosso último período de funcionamento, observamos em média um evento por semana.” No início da próxima década, está previsto o lançamento de um observatório espacial de interferometria, o projeto Lisa, da Agência Espacial Europeia (ESA), que terá capacidade de registrar as ondas gravitacionais provenientes da fusão de buracos negros intermediários de maior porte e também de supermassivos, eventos ainda mais intensos que os detectores Ligo, Virgo e Kagra conseguem observar da Terra.

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