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resenha

Do americanismo alemão ao protagonismo dos saberes indígenas

Do Roraima ao Orinoco: Resultados de uma viagem no Norte do Brasil e na Venezuela nos anos de 1911 a 1913 | Theodor Koch-Grünberg (tradução de Cristina Alberts-Franco) | Unesp | 1.085 páginas | R$ 480,00

Finalmente, o público brasileiro tem acesso aos três primeiros volumes de Do Roraima ao Orinoco: Resultados de uma viagem no Norte do Brasil e na Venezuela nos anos de 1911 a 1913. Obra clássica da etnologia alemã, foi publicada originalmente em cinco tomos pelo Instituto Baessler de Berlim, entre 1917 e 1928. Depois de lançar em 2006 o diário da viagem, a editora da Universidade Estadual Paulista (Unesp) publica agora os três volumes, com ilustrações do artista Macuxi Jaider Esbell (1979-2021).

Desde o seu lançamento, o livro tem sido o ponto de partida para os etnógrafos que trabalham com povos indígenas na região. Muito mais do que observações de viagem, como sugere o subtítulo, as descrições são ricas e minuciosas, abordando diversos aspectos de seus modos de vida como a cultura material, a organização social, a mitologia, o xamanismo, o uso de plantas sagradas, os cantos, a música instrumental, dentre outros.

Durante um período de dois anos, o etnólogo alemão Theodor Koch-Grünberg (1872-1924) realizou sua pesquisa partindo do Brasil em direção à nascente do rio Orinoco, na Venezuela. Visitou aldeias e fez coletas e registros etnográficos, fílmicos, fotográficos e fonográficos.

O etnólogo percorreu o rio Negro até o rio Branco, depois seguiu os cursos dos rios Uraricoera e Tacutu, até chegar à fazenda São Marcos, em Roraima, base a partir da qual realizou a primeira parte de sua pesquisa na região de savanas e serras, junto aos povos Macuxi, Taurepang e Wapixana. Seguiu então para o monte Roraima, onde visitou aldeias e realizou um filme mudo sobre a vida dos Taurepang na Guiana.

Iniciou a segunda parte da viagem no rio Uraricoera e adentrou a floresta a oeste de Roraima. Nessa etapa, Koch-Grünberg manteve contatos com grupos Waika, Schiriana, Guinau e Ye’kwana. A expedição seguiu por um afluente do rio Uraricoera até o rio Merewari, na Venezuela. Depois navegou pelo rio Ventuari até o rio Orinoco, subindo até o canal do rio Casiquiare, de onde seguiu pelo rio Negro até chegar novamente ao território brasileiro. No estabelecimento São Felipe, no rio Içana, ele concluiu sua viagem, em 1913.

O primeiro volume da obra compreende o diário de campo do etnólogo, com um relato vívido e detalhado sobre as condições de viagem e pesquisa, bem como sobre as culturas dos povos indígenas da região. O segundo volume é uma coleção de mitos dos povos Taurepang e Arekuna. Lá estão as façanhas de Makunaíma, herói mítico dos povos da região, que serviu de inspiração para a obra de Mário de Andrade (1893-1945). No terceiro tomo são detalhadas descrições etnográficas das culturas dos Taurepang e seus vizinhos, dos Schiriana e dos Waika, dos Ye’kwana e dos Guinau. A parte final desse volume foi escrita por Erich von Hornbostel (1877-1935), pioneiro da musicologia comparada alemã. A partir dos materiais resultantes da viagem, Hornbostel analisou a música vocal e os instrumentos musicais dos Macuxi, dos Taurepang e dos Ye’kwana.

A relevância da publicação de Do Roraima ao Orinoco deve ser analisada sob dois pontos de vista. Primeiro, o da importância que os resultados da pesquisa tiveram para a consolidação da etnologia americanista sobre os povos da região. Em segundo lugar, merece destaque o grande valor da obra para os acadêmicos indígenas que, desde a instauração das políticas afirmativas nas universidades brasileiras, têm, de modo crescente, adentrado esses espaços não apenas como estudantes, mas como detentores de saberes de valor inestimável para a ciência e para as artes.

Na Universidade Federal de Roraima, mais de mil alunos indígenas, em sua maioria Macuxi, Taurepang, Wapixana e Ye’kwana, frequentam cursos de graduação e de pós-graduação. E em 2019, Vicente Castro Ihuruana, considerado o último grande sábio do povo Ye’kwana, recentemente falecido, ministrou um curso sobre cosmologia e artes de cura para os alunos de antropologia social, abordando muitos dos temas presentes na etnografia de Koch-Grünberg sobre seu povo.

Com a publicação de Do Roraima ao Orinoco em português, os povos indígenas passam a ter acesso a um material de valor inestimável sobre a sua história. A obra deverá contribuir para a formação dos acadêmicos indígenas e para a divulgação dos seus saberes, inclusive entre o público em geral.

Pablo de Castro Albernaz é professor de antropologia social na Universidade Federal de Roraima (UFRR).

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