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Yara Camillo

Duas vias

Alexandre TelesEle abriu a porta do carro para que ela entrasse.

— A velhice dando passagem à juventude?

— Não: a sabedoria dando vez à pretensão.

Riram. Era uma brincadeira antiga, da época em que se conheceram: ela, preparando a tese. Ele, o orientador que não chegou a sê-lo… A relação aconteceu e, de comum acordo, decidiram que ela procuraria outro professor. Nem por isso a pressão foi menor. Em muitos olhares, o imediatismo rotulava, sem sursis: veterano-estende-as-asas-sobre-a-novata. E poderia ter sido pior; tivesse a “vítima” alguns anos a menos e o crime estaria consumado, não se podia brincar com essas coisas.

— A maré do politicamente correto extrapolou, afrontando os limites do bom senso — dizia ele. — Facilite… E até Lolita e Morte em Veneza acabarão queimados em praça pública.
— Não exagere — dizia ela.

Ele ria:

— E a lei contra os Adônis que enfeitiçam os velhinhos? Deveria existir uma, não?

Ela ria:

— E qual seria o nome desse crime… Gerofilia?

— Sim… Muito próprio. — E ele improvisava a premissa: — Não gerofile, para não ser pedofilado.

— Proponha esta na próxima reunião e estaremos condenados em duas vias, sem direito a habeas corpus.

— Falando em habeas

— Falando em corpus

A brincadeira se repetiu ao longo dos anos, mesmo depois de perder a graça; ela, mais que ele, chamava o riso como tábua de salvação, como refúgio das crises que também se repetiam, indefinidamente.

Passado o espanto geral, que de roldão consumira também certos encantos, as coisas começaram a se acomodar. Ninguém mais estranhava a parceria, nem a ironia que permeava o enredo natural daquele amor: ela, já não bastassem os muitos anos a menos, aparentava ser tão menina… Para entrar no cinema, só mostrando identidade que provasse ao menos dezoito, dos vinte e três já completos. Ele, em contrapartida, já aos dezesseis se passava por “maior”, nos bailes e cinemas da cidade interiorana onde nascera. Cabelos precocemente grisalhos e o sagrado costume da cerveja completavam o quadro, adiantavam o tempo e, aos olhares alheios, alongavam mais ainda a distância entre os dois.

O tempo. O curso. Da universidade e das coisas. E a tese, que não saía nunca.

— Se você não pode ser meu orientador, então não quero mais ninguém — ela dizia. E se por algum tempo esse argumento surtiu efeito, foi também se desgastando, como tudo, como um todo.

— Não era isso — ela confessou, numa das raras noites de cerveja que conseguiram a sós, porque a universidade era um mundo que se estendia para além do campus, até o bar, até a casa, até os amigos e tantas horas compartilhadas. — A Dança seria o princípio e a Geografia, o meio… Sabe? O meio pelo qual a Dança viria a acontecer, sem as amarras das concessões profissionais necessárias à sobrevivência. Mas tudo virou do avesso a Geografia se espalha e não faço outra coisa a não ser projetos.

— Não há lugar para dois, com a Geografia. Ou é ela ou é ela, se é que você me entende, e eu às vezes acho que não.

— Dois corpos não ocupam o mesmo lugar no tempo e no espaço? Nunca, dirá você.

— Nunca, tu o disseste.

— “Salvo quando se amam”, disse o poeta. E se essa verdade não pode harmonizar a Dança e a Geografia, então quero nascer de novo.

— Você já nasceu tantas vezes, lembra… Ou não, não mais?

Ela fechou os olhos, fazia isso quando sentia dor ou acusava o golpe, claro, quantas vezes não dissera “acho que nasci de novo”, depois do amor?

Foi naquele amanhecer que os dois se descobriram de partida, ele para o campus, de corpo e alma, porque aquela era mesmo sua vida, sua escolha, desde antes dela e, com um pouco de sorte, também depois dela — embora no momento ele não soubesse, não tivesse a menor ideia de como faria para sobreviver àquela ausência. E ela enfim para a dança, habeas corpus, habeas anima. Ele, que não acreditava em deuses, acabou maldizendo os desígnios que deram a ela uma bolsa, no ano seguinte, para um estágio fora do país.

Encontraram-se uma vez, na Europa, mas aquela não valeu: ela estava embriagada demais com a liberdade e ele embriagado demais com a alegria de revê-la.

Agora, anos depois, um novo reencontro: ele gostou de achá-la, ainda, bela. Gostou de gostar de vê-la, embora a dor.

— Você ficou bem famoso — ela brincou, recurso que sempre usava para driblar o embaraço. — Ouvi falar, por aí.

— E você?

— Como? Você não ouviu falar de mim?

Ele ficou sério, um segundo antes do riso. Ela riu também, e tudo foi como antes, por um instante.

— Você está dançando?

— Às vezes.

— O que houve?

— O de sempre. Não sou articulada, não me relaciono com as pessoas “certas”, não me enquadro muito nas coisas. — E imitou o tom de voz que ele usava quando queria ser categórico: — Se é que você me entende, e eu acho que não.

Ele riu, de novo, agora sem muita vontade. Ela continuou:

— Mas eu tinha que ver, não é? Eu precisava ir. E fui bem, por uns tempos… E “ir bem”, ainda que por uns tempos, deixa um gosto de “sempre”, quando se trata de Arte.

— Isso me lembra aquela sua velha máxima: “A Arte acima de tudo”.

— Não — ela responde. E ele vê nisso algo de novo. — Não existe acima, nem medida alguma, nesses casos. Só uma sensação de que as coisas têm um sentido.

— Isso você podia ter…

— Você podia. Não eu.

— Então, perdemos uma geógrafa brilhante… para uma bailarina…

— Apenas razoável?

— Eu não disse isso.

— Claro que disse. Mas não faz mal.

— Escute, ainda dá tempo.

— Tempo do que, meu amor?

— Esse “meu amor” me pegou de surpresa.

— O que prova que você continua o mesmo… Surpreen­dendo-se com o óbvio e olhando com cara de velho para o que é realmente novo. Agora me leve daqui para um lugar mais decente, onde se possa tomar um bom vinho.

— Você também não mudou. E isso, não sei por que, me faz bem.

— Não era o que você dizia.

— Não era o que você pedia.

Ele abre a porta do carro, ela sorri:

— A velhice dando vez à juventude?

— Não, o cansaço dando lugar a algo que não quero definir agora.

— E quem disse que é preciso definir?

— Temes definhar ao definir?

— Idiota! — Ela ri. — O fim vai chegar para nós. Para todos nós. Mas não hoje.

— Você não vai acreditar, mas isso, para mim, já é alguma coisa.

“Acredito”, ela quis dizer, mas achou que não seria preciso.

Yara Camillo é formada em comunicações pela Fundação Armando Álvares Penteado (FAAP), com especialização em cinema. É autora de Volições (Massao Ohno Editor, 2007) e Hiatos (RG-Editores, 2004).

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