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Educação

Educação na virada do século

Pesquisas examinam taxas de matrícula e frequência de alunos para mensurar avanços no processo de escolarização no país

Escola Caetano de Campos, em São Paulo, em 1902. Acesso à educação foi ampliado no estado a partir de transformação econômica trazida pela expansão cafeeira

Guilherme Gaensly / BN Digital

Partindo de análises de fontes primárias em arquivos públicos, estudos discutem como investimentos em educação básica na virada para o século XX impactaram no desenvolvimento do sistema de ensino do Brasil. Em pesquisa de livre-docência, o professor de história econômica Renato Perim Colistete, da Faculdade de Economia da Universidade de São Paulo (FEA-USP), identificou que no estado de São Paulo, entre 1885 e 1920, a transformação econômica trazida pela expansão cafeeira, o desenvolvimento urbano e o crescimento da arrecadação tributária permitiram ampliar as matrículas na rede pública. “No entanto, os gastos com instrução primária não acompanharam o respectivo aumento de receitas fiscais, gerado com o boom da economia cafeeira”, afirma.

De acordo com Colistete, até 1880, o estado de São Paulo contava com baixa oferta de matrículas em escolas públicas, se comparado com outras unidades administrativas durante o regime imperial, que vigorou no país até a Proclamação da República, em 1889. A situação mudou nas décadas seguintes, quando o estado se tornou líder em matrículas no país, ao lado de Santa Catarina e do Distrito Federal (na época, o Rio de Janeiro). Colistete explica que a situação reflete o aumento dos investimentos em instrução pública, em anos precedentes. Se em 1855 as despesas per capita com instrução pública na província de São Paulo eram equivalentes a 83% da média brasileira, em 1886 elas superaram em 24% o patamar nacional. Colistete informa que, nas três décadas seguintes, a elevação do investimento no ensino paulista seguiu em ritmo acelerado e, em 1920, São Paulo passou a ser a região com o maior investimento em instrução pública em todo o Brasil.

No entanto, o aumento da receita fiscal do estado durante os primeiros anos da República não foi acompanhado pelo crescimento correspondente do gasto por aluno matriculado. “Se os dispêndios com instrução primária tivessem seguido a curva de crescimento das rendas públicas estaduais, a totalidade das crianças em idade escolar que, naquele período envolviam indivíduos entre 7 e 14 anos, poderia ter sido alfabetizada até o final da década de 1910”, sustenta. Diferentemente disso, naquele ano, mais da metade das crianças nessa faixa etária permanecia sem acesso ao ensino primário. Para chegar a essas conclusões, o economista analisou, entre outros, documentos manuscritos sobre despesas e receitas do governo provincial, anuários estatísticos, relatórios apresentados à Assembleia Legislativa, documentos do governo do estado, anuários de ensino depositados no Arquivo Público do Estado, Acervo Histórico da Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo, Biblioteca Nacional e Biblioteca da Fundação Sistema Estadual de Análise de Dados (Seade).

Além disso, com base em análises de relatórios sobre a frequência escolar mensal de estudantes paulistas entre 1910 e 1920, o economista constatou que cerca de 45% dos matriculados tinham dificuldades para acompanhar as aulas, apresentando faltas frequentes e por períodos extensos. Isso significa que, em fevereiro e março, 90% dos alunos frequentavam as salas de aulas, percentual que, entre julho e setembro, caía para 60%. “Nesse intervalo, muitas crianças se envolviam com a colheita de café. Mesmo famílias que viviam em centros urbanos se deslocavam até as plantações, levando os filhos para ajudar no trabalho”, explica. Segundo ele, após o término da colheita, nem todos voltavam à escola, de forma que o percentual de frequência dos matriculados jamais voltava a superar os 90% observados no início do ano letivo.

“Dados como esse evidenciam que o indicador das matrículas é importante, mas insuficiente para pensar o processo de escolarização, para o qual também deve ser considerada a frequência dos estudantes”, defende o professor José Gonçalves Gondra, da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (Uerj). De acordo com ele, no século XIX, muitas escolas encerravam suas atividades por causa da baixa frequência dos alunos e, nessas situações, o Estado desistia de financiá-las. Conforme Gondra, as primeiras metodologias para mensurar a aprendizagem surgiram nos anos 1920, quando crianças e jovens passaram a ser avaliados pelas próprias escolas. “Na virada do século, a ciência ainda não tinha elaborado ferramentas para medir a qualidade do ensino, de forma que as análises da educação se pautavam pela evolução das taxas de matrícula e frequência”, observa.

BN Digital Investimentos em instrução pública fizeram com que o Rio de Janeiro se tornasse líder em matrículas na rede pública, nas primeiras décadas do século XX, ao lado de outros estados. Foto mostra Escola Rodrigues Alves entre 1911 e 1922BN Digital

Entre o fim do século XIX e começo do XX, assinala Gondra, o sistema educacional do país sofreu intervenções, mas também houve continuidades. Uma das alterações incluiu a mudança de nome de todas as instituições de ensino, com a finalidade de distanciá-las do contexto da educação do período imperial. “O Imperial Colégio de Pedro II, por exemplo, passou a se chamar Ginásio Nacional, enquanto outras escolas receberam nomes de personagens ilustres da história”, comenta, ao destacar que as mudanças mais significativas ganharam legitimidade nas primeiras décadas do século XX, ancoradas nas chamadas pedagogias científicas.

Por meio de análises da evolução das matrículas no país e comparações com o panorama de outras nações, em sua livre-docência Colistete também identificou que, naquele período, seguiu restrito e desigual o acesso à educação primária para a maioria das crianças brasileiras em idade escolar. “O Brasil se manteve entre as nações com os piores indicadores educacionais do mundo, tal como acontecia em meados do século XIX”, sustenta. Em 1900, a taxa de matrícula nas escolas primárias do país era de 29 crianças por mil habitantes, enquanto nos Estados Unidos, Canadá e Alemanha esse número era cinco vezes maior. “Mesmo na América Latina, o Brasil situava-se entre os países com as menores taxas, atrás, por exemplo, da Argentina, Uruguai, Peru, cujas taxas de matrículas por mil habitantes eram, respectivamente, de 98, 79 e 72”, enfatiza.

“Entre 1850 e 1930, lideranças públicas e integrantes da elite participavam do debate internacional sobre a importância dos investimentos em educação básica para o desenvolvimento econômico e social do Brasil”, afirma o historiador Vinicius Müller, do Insper. Em pesquisa de doutorado publicada no livro Educação básica, financiamento e autonomia regional (Alameda Editorial, 2018), ele analisa investimentos públicos em educação em São Paulo, Rio Grande do Sul e Pernambuco, entre 1850 e 1930, a partir do estudo de fontes primárias como relatórios de presidentes de províncias e de inspetorias de instrução pública, livros de tesouraria, balanço de receitas e despesas do Império. Os três estados foram escolhidos por integrarem regiões de distintas características econômicas e sociais.

“Enquanto a economia de Pernambuco estava baseada na exportação de cana, o Rio Grande Sul voltava-se para o mercado interno”, conta. “Na segunda metade do século XIX, por causa da ascensão da economia do café, São Paulo se transformou com a aceleração dos processos de industrialização e urbanização, a chegada massiva de imigrantes e o aumento da arrecadação tributária”, detalha Müller ao explicar que o estudo procurou identificar como essas configurações impactaram no desenvolvimento do sistema de ensino.

Em 75 dos 80 anos analisados, a educação primária no Rio Grande do Sul respondeu pela principal despesa da província, enquanto em São Paulo ela foi a segunda maior despesa, ficando atrás dos gastos com infraestrutura. Já em Pernambuco, em 60 dos 80 anos analisados, as despesas com educação ficaram em quarto ou quinto lugar, mesmo sendo uma província mais próspera do que o Rio Grande do Sul e São Paulo, no final do Império. “Nesse intervalo de tempo, a maior despesa de Pernambuco envolvia o pagamento de funcionários do sistema judiciário”, diz. Na visão de Müller, os investimentos dos estados em educação primária em 1850 ajudam a compreender a situação da educação nas regiões, 80 anos mais tarde. Nesse sentido, ele menciona dados do Censo de 1920, que mostram que 14% das 450 mil crianças de 7 a 14 anos de Pernambuco eram alfabetizadas. Entre a mesma faixa etária no Rio Grande do Sul, que também somava 450 mil crianças, o percentual equivalente era de 34%. Em São Paulo, com cerca de 1 milhão de habitantes nesse patamar etário, o percentual correspondente era de 28%. Atualmente, Müller trabalha na ampliação do escopo da pesquisa, que passou a abranger análise de dados da Bahia e de Santa Catarina no mesmo recorte temporal.

Ao fazer um paralelo com a situação atual, Colistete, da USP, observa que apesar de o Brasil ter universalizado o acesso aos primeiros anos do ensino fundamental, o país permanece entre as nações com baixos indicadores da qualidade do ensino. Nesse sentido, ele menciona os resultados da última edição do Programa Internacional de Avaliação de Alunos (Pisa), verificação do desempenho escolar feita em diferentes países, que ocorre a cada dois anos. Divulgados em 2019, os resultados mostram o Brasil entre 58º e 60º lugar em leitura; entre 66º e 68º em ciências; e entre 72º e 74º em matemática.

Artigo científico
COLISTETE, R. P. Contando o atraso educacional: Despesas e matrículas na educação primária de São Paulo (1880-1920). Dados. On-line. v. 62, n. 2, set, 2019.

Livro
MÜLLER, V. Educação básica, financiamento e autonomia regional. São Paulo: Alameda Editorial, 2018.

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