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Resenha

Em defesa da democracia

Liberdade, cidadania e ethos democrático: Estudos anti-hobbesianos | Yara Frateschi | Alameda | 396 páginas | R$ 68,00

Liberdade, cidadania e ethos democrático: Estudos anti-hobbesianos, de Yara Frateschi, reúne artigos produzidos ao longo do tempo e apresentados como tese de livre-docência. Exibe, assim, o percurso de formação e maturação de uma pesquisadora de peso, tendo o seu doutorado servido de referência aos estudos subsequentes e como ponto de chegada as lutas feministas e identitárias, das quais a autora se tornou importante porta-voz e referência. O conjunto prima pela clareza de exposição e pela firmeza das posições, numa escrita engajada, de olho no presente e na democracia que se trata de construir entre nós.

O fio condutor é desde logo esclarecido numa longa introdução – o maior e mais recente texto do volume –, amarrando a série de estudos antes dispersos, nos quais autores clássicos como o grego Aristóteles (384 a.C.-322 a.C.), o inglês Thomas Hobbes (1588-1679) e o suíço Jean-Jacques Rousseau (1712-1778), e contemporâneos, como a alemã Hannah Arendt (1906-1975), a turca Seyla Benhabib, os norte-americanos Nancy Fraser e John Rawls (1921-2002), e o italiano Giorgio Agamben, são mobilizados a fim de construir uma leitura contemporânea acerca da democracia e, sobretudo, do ethos que a acompanha.

No eixo da constelação estão Hobbes e Arendt, tendo por base a leitura que Arendt faz de Hobbes em As origens do totalitarismo. A tese do livro poderia ser assim resumida: a física da política de Hobbes tem de ser substituída pela ética da política de Arendt. Daí o subtítulo do livro: Estudos anti-hobbesianos. A ideia é que, no lugar de pensar a(o) política(o) a partir do autointeresse, como fez Hobbes, é preciso pensá-la(o) a partir do que Arendt, Benhabib e a autora conceitualizam nos termos de uma “mentalidade alargada”, uma eticidade construída à medida que se leva em conta o ponto de vista dos outros, em que consistiria no fundamento moral da política, ausente no Leviatã. Frateschi reedita assim a crítica que autores como os britânicos A. A. Cooper, o terceiro conde de Shaftesbury (1671-1713), David Hume (1711-1776) e Adam Smith (1723-1790) endereçaram ao que entendiam ser a moral do egoísmo hobbesiano.

É de se perguntar, contudo, quão anti-hobbesiana a autora é. Pois ela sinaliza mais de uma vez que sociedades plurais, perpassadas por conflitos, não podem contar apenas com a ética, sendo imprescindível recorrer ao direito e à proteção jurídica garantida pelo Estado. Sendo assim, e levando em conta que Hobbes é o teórico do Estado por excelência, parece que não se trata de pensar o ethos democrático em oposição, mas em complemento a Hobbes, em cuja agenda – a autora está certa em apontar – não havia lugar para a participação, a cidadania ativa e a cultura democrática.

É por não abrir espaço para essa agenda que Agamben desponta como o segundo autor a quem Frateschi se contrapõe com veemência. Segundo ela, Agamben abraçou uma “ideologia da ruína” e desprezou os potenciais emancipadores da modernidade – mais precisamente, a possibilidade de alargamento das mentalidades, que, no entanto, poderia responder ao problema posto pela teoria da soberania hobbesiana levantado por ele. Os demais pensadores são mobilizados enquanto apoio, diferentes propostas e modos de pensar o ethos democrático cuja importância se advoga.

O ponto alto é o contraponto (ou somatória?) entre Arendt e Benhabib. Como mostra Frateschi, se Arendt se referencia na Crítica do juízo, do prussiano Immanuel Kant (1724-1804), para pensar a mentalidade alargada, Benhabib a critica por não ter sido suficientemente kantiana e ter deixado de lado o universal. Benhabib pensa em termos de “atualização do universal”, sendo esse o “princípio da reciprocidade igualitária” operando como uma sorte de imperativo categórico da política. Arendt parece caminhar em sentido contrário, atenta ao particular e ao concreto, e entendendo a pluralidade como um acontecimento. Frateschi, por sua vez, quer pensar, com o apoio dessas autoras, as lutas identitárias, para as quais se trata de afirmar as diferenças de perspectivas e a singularidade dos lugares de fala, ao mesmo tempo que institui direitos, em sua pretensão de universalidade. Mais que tudo, o livro convoca a nos engajarmos nessa luta como forma de cultivar a democracia, hoje fortemente ameaçada.

Maria Isabel Limongi é professora de filosofia política na Universidade Federal do Paraná (UFPR)

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