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Pesquisa na quarentena

“Em uma situação dessas, perde-se um pouco o imponderável da pesquisa”

Apesar do avanço da pandemia na Espanha, historiador Julian Bilbao conta por que decidiu permanecer em Madri

Julian Bilbao em frente à Faculdade de Geografia e História da Universidade Complutense de Madri, em registro feito em dezembro

Arquivo pessoal

Estou recluso desde 10 de março. Cheguei a Madri em dezembro, com uma bolsa da Capes [Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior], com duração de seis meses. Faço doutorado em história social na Universidade de São Paulo [USP] e vim para cá porque pesquiso crônicas do século XVI e XVII. O que me interessa nessas crônicas são os registros sobre a Espanha do período, produzidos por eruditos em geral – alguns vinculados ao rei, mas todos relacionados à nobreza de algum modo. Trabalho com manuscritos e impressos que circularam não apenas na Península Ibérica, mas também na Europa. Mais especificamente, com crônicas que tratam dos discursos sobre a origem da Espanha. Foi no mestrado, investigando o conjunto de leis que regiam a região de Biscaia, no século XVI, que me deparei com a história de Tubal, personagem mítico, considerado o primeiro rei e povoador da Península Ibérica. Tubal é filho de Jafé e neto de Noé. Nas crônicas que analiso há uma disputa sobre quem seriam os descendentes de Tubal, daí o título de minha tese – “Disputas pelo neto de Noé: Tubal e as origens da Península Ibérica”.

Até o surgimento dos primeiros casos de Covid-19, no final de fevereiro, eu ia diariamente à biblioteca da Faculdade de História da Universidade Complutense. Lá estão as crônicas e boa parte dos livros que utilizo nessa investigação. Exceto pelos cartazes com orientações sobre como evitar a contaminação pelo novo coronavírus, afixados nos corredores, a vida seguia normal na universidade até minha última ida à biblioteca, em 9 de março. A situação mudou completamente no dia seguinte, quando veio a notícia de que as aulas estavam suspensas em toda a cidade de Madri. A universidade fechou e desde então assim permanece. Minha sorte é que, graças à política de digitalização de todo acervo relevante do país, desenvolvida pela Biblioteca Nacional da Espanha, 95% da documentação que pesquiso pode ser acessada remotamente. Isso não acontece, no entanto, com as fontes secundárias, os dicionários históricos e todo o material de apoio que a Complutense reúne – indisponíveis no Brasil.

Com o agravamento da pandemia, cogitei voltar para casa, em São Paulo. Mas, na esperança de que as coisas pudessem se normalizar de algum modo, cheguei à conclusão de que seria melhor esperar por aqui, inclusive para evitar deslocamentos. Tive receio de pegar avião naquele quadro inicial. Não me arrependo. Soube de casos da doença na universidade, mas não conheço nenhum dos afetados. Passo os dias no pequeno estúdio onde moro. Saio apenas para comprar itens básicos. Há momentos de solidão, que minimizo com a ajuda da tecnologia. Passados dois meses do início da pandemia, aos poucos as coisas começaram a se distender. Recentemente o governo autorizou, por exemplo, o passeio de crianças acompanhadas de um adulto – todos devem usar máscaras –, então as ruas estão menos vazias.

Minha rotina é seguir avançando na pesquisa com o material que recolhi ou fotocopiei e consultando as fontes digitalizadas. É claro que em uma situação dessas perde-se um pouco o imponderável da pesquisa, aquela coisa de pegar um livro na estante e ser surpreendido por uma informação que não imaginava encontrar. O arcabouço bibliográfico fica mais restrito. Com a interrupção da consulta ao acervo, tanto da biblioteca da faculdade quanto do arquivo da Biblioteca Nacional, não é possível, por exemplo, deparar-se com uma citação inesperada que enseje uma análise não prevista, então essa perda é inevitável. Também sinto falta do trabalho em conjunto com Fernando Bouza, meu orientador espanhol. Costumávamos passar horas analisando documentos juntos. Por outro lado, há um convite à introspecção e a um mergulho no material que já foi coletado. O desafio agora é extrair mais do que se tem em mãos. Estou pensando em voltar para o Brasil no começo de maio, quando há previsão para a retomada dos voos entre os dois países. Já estou me preparando para ficar mais um tempo sem sair de casa.

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