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Obituário

Enéas Salati, o pai dos rios voadores da Amazônia

Engenheiro-agrônomo e climatologista mostrou a capacidade da floresta de reciclar e exportar chuva

Salati em 2016, em depoimento para vídeo sobre o cinquentenário do Cena-USP, de que foi diretor

CENA/USP

Personagem inovador e agregador nos estudos sobre hidrologia e climatologia, Enéas Salati teve grande influência na ciência brasileira desde o final da década de 1960. A capacidade de atrair e formar profissionais competentes foi fundamental para a consolidação dessa área de pesquisa no país. O pesquisador, que sofria de mal de Alzheimer, morreu no sábado (5/2) aos 88 anos, em Piracicaba, no interior de São Paulo. Deixa viúva e quatro filhos, além de netos, bisnetos e tataranetos.

Engenheiro-agrônomo graduado pela Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz da Universidade de São Paulo (Esalq-USP), em Piracicaba, Salati foi pesquisador do Centro de Energia Nuclear na Agricultura (Cena), vinculado à mesma instituição. Lá, em 1968, criou o Laboratório de Espectrometria de Massa para Elementos Leves. Análises de isótopos, como oxigênio-18 e deutério, permitiram traçar a origem de boa parte da precipitação chuvosa da Amazônia.

No final da década de 1970, Salati foi o primeiro a quantificar a reciclagem de precipitação, um mecanismo de retroalimentação da umidade na floresta amazônica: parte das chuvas que alimentam a floresta vem do subsolo da floresta, captada pelas raízes das árvores, e não com a umidade carregada pelos ventos que sopram do oceano Atlântico. O climatologista José Marengo, coordenador de Pesquisa e Desenvolvimento do Centro Nacional de Monitoramento e Alertas de Desastres Naturais (Cemaden), explica esse sistema: “Por meio de processos de evaporação e transpiração das plantas, a floresta solta umidade na atmosfera, que acaba por cair em forma de chuva; estudos sugerem que entre 25% e 75% da chuva que cai na floresta é gerada por ela própria”.

Marengo conta que foi inspirado a estudar o clima da Amazônia depois de ler um artigo sobre esse processo de reciclagem publicado em 1979 por Salati e colaboradores. Mais tarde, no começo dos anos 2000, o pesquisador do Cemaden trabalhou com Salati em pesquisas sobre os “rios voadores”, expressão metafórica para o vasto volume de umidade atmosférica que sai da floresta, encontra a cordilheira dos Andes e acaba migrando em direção ao centro-sul do continente sul-americano. “Estudando isótopos como traçadores, uma ideia ao mesmo tempo simples e complexa de Salati, podemos estudar a quantidade de chuva em determinada região que foi originada na Amazônia”, afirma.

Embora ainda existam incertezas sobre a quantidade de umidade que a Amazônia exporta para outras regiões da América do Sul, Reynaldo Victoria, orientado por Salati no mestrado e que também foi professor e pesquisador do Cena-USP, afirma que o método de rastreamento de isótopos proposto por Salati mostra que a umidade amazônica, transportada pelos rios voadores, é importante para a geração de precipitação chuvosa nas regiões Centro-Oeste, Sudeste e Sul do Brasil, e até na Argentina.

Victoria avalia que o trabalho do pesquisador foi fundamental para apontar caminhos para uma agropecuária que não exija desmatamento e funcione de forma sustentável em harmonia com a floresta. Conhecer a maneira pela qual a Amazônia influencia o clima em escala continental permite entender como a principal atividade econômica do país pode sofrer com alterações drásticas nos padrões de chuvas, como já indicava pesquisa desenvolvida por Salati na década de 1980. A mudança nesse padrão é uma das prováveis consequências do desmatamento, que explodiu a partir da década de 1970 e cujo ritmo voltou a ser acelerado nos últimos anos.

Um dos mais destacados cientistas brasileiros a estudar as consequências climáticas do desmatamento da Amazônia, o climatologista Carlos Nobre, pesquisador do Instituto de Estados Avançados da USP, esclarece que as pesquisas de Salati mudaram o entendimento da relação entre vegetação e clima. “Ele foi pioneiro em mostrar a floresta como um fator climático importantíssimo para sua própria manutenção. Assim, a Amazônia não é mera resposta ao clima, mas modifica o clima e cria condições próprias para sua permanência”, explica. Mas o desmatamento ameaça essa permanência, alerta Nobre. A participação em projetos de pesquisa de Salati na Amazônia, na década de 1970, inspirou o climatologista a migrar da engenharia eletrônica, em que se graduou, para estudar a relação entre a floresta e o clima.

O perfil um tanto polimático de Salati é digno de nota em uma era de intensa especialização científica, enquanto a discrição foi uma marca pessoal. Marengo o descreve como um pesquisador que sabia não somente sobre clima da Amazônia, reciclagem de umidade e rios voadores, mas também podia trabalhar com extremos climáticos, potencial de energia eólica e créditos de carbono, com uma visão completa do ambiente. “Era ao mesmo tempo intenso no trabalho e uma pessoa muito tranquila, simples, nada arrogante.”

Íntegra do texto publicado em versão reduzida na edição impressa, representada no pdf.

Artigos científicos
SALATI, E. et alRecycling of water in the Amazon Basin: An isotopic study. Water Resources Research. v. 15, n. 5, p. 1250-8. out. 1979.
SALATI, E. & VOSE, P. B. Amazon Basin: A system in equilibrium. Science. v. 225, n. 4658, p. 129-38. 13 jul. 1984.

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